12 Novembro 2020
“Para muitos católicos nos bancos da igreja, no entanto, uma questão importante permanece: como esse comportamento continuou sem controle por tantos anos, e como McCarrick foi autorizado a subir tão longe na hierarquia da Igreja Católica, apesar dos persistentes rumores de má conduta? E o que sua ascensão diz sobre a supervisão do papa João Paulo II? É o suficiente simplesmente dizer 'o Papa não acreditou nos boatos'?”, escreve James T. Keane, em artigo publicado por America, revista dos jesuítas norte-americanos, 10-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A publicação tão esperada do “Relatório McCarrick” pelo Vaticano proveu informações significativas sobre os abusos de menores e seminaristas adultos cometidos por Theodore McCarrick, assim como uma longa e vergonhosa história de líderes da Igreja que ignoraram acusações sobre McCarrick. Também emergiram as inevitáveis questões de quem sabia o que e quando, incluindo a respeito de três Papas: João Paulo II, Bento XVI e Francisco. João Paulo II foi canonizado por Francisco em 2014, menos de dez anos depois de sua morte.
McCarrick, que já foi padre e bispo auxiliar da arquidiocese de Nova York, serviu como primeiro bispo da diocese de Metuchen em Nova Jersey de 1981 a 1986, como arcebispo de Newark de 1986 a 2000 e como arcebispo de Washington de 2000 a 2006. Ele foi feito cardeal pelo papa João Paulo II em 2001.
Em junho de 2018, ele foi removido do ministério depois que a arquidiocese de Nova York considerou uma alegação de que ele havia abusado de um coroinha décadas antes. Nas semanas seguintes, surgiram novas alegações de comportamento impróprio com menores e adultos, incluindo seminaristas, e funcionários da arquidiocese de Newark e da diocese de Metuchen admitiram que ambos haviam chegado a acordos financeiros com as supostas vítimas de McCarrick mais de uma década antes. Ele foi finalmente removido do estado clerical pelo papa Francisco em fevereiro de 2019, após um julgamento canônico e uma apelação malsucedida de McCarrick do veredicto de culpado.
O relatório evita em grande parte culpar o papa Francisco e o papa emérito Bento XVI pela falta de supervisão e restrições sobre McCarrick, dizendo que Bento e Francisco presumiram que João Paulo II determinou que McCarrick não era culpado de nenhum crime.
No caso de João Paulo II, o relatório argumenta que ele suspeitava naturalmente das acusações de má conduta sexual contra os bispos porque tinha visto táticas semelhantes usadas em sua Polônia natal sob o governo soviético. “Vários prelados familiarizados com o pensamento de João Paulo II opinaram que o Papa acreditava que as alegações de má conduta sexual contra clérigos importantes eram muitas vezes falsas e que essa crença se baseava em sua própria experiência anterior na Polônia”, afirma o relatório, “onde rumores e insinuações tinha sido usado para prejudicar a reputação dos líderes da Igreja”.
Uma justificativa semelhante foi oferecida por muitos líderes da Igreja no caso de Marcial Maciel, o fundador da Legião de Cristo, que foi afastado do ministério pelo papa Bento XVI em 2006 após várias alegações de abuso sexual de menores, repetidos casos com mulheres adultas e décadas de prevaricação financeira enquanto serviam como chefe da ordem religiosa. O padre Maciel era próximo de João Paulo II, que beatificou o tio do padre Maciel, Rafael Guízar (o papa Bento XVI canonizou Guízar, em 2006), e o padre foi um doador financeiro proeminente ao Vaticano durante muitos anos.
O relatório McCarrick observa que, apesar das inúmeras tentativas de determinar a natureza dos crimes de McCarrick, nenhuma delas resultou em qualquer ação significativa. Em 1999, quando o papa João Paulo II estava pensando em tornar McCarrick o arcebispo de Washington, o cardeal John O’Connor, de Nova York, escreveu ao Papa para expressar suas dúvidas sobre McCarrick, dizendo que sentia “uma grave obrigação” de advertir contra a nomeação de McCarrick devido a uma acusação anônima de que ele abusou de um menor, rumores de casos com outros padres e alegações de que McCarrick se comportou de maneira inadequada com seminaristas, embora o cardeal O’Connor também tenha dito que apoiaria uma eventual indicação de McCarrick se João Paulo II achasse uma boa escolha.
Como a alegação de abuso sexual de um menor foi feita anonimamente, foi ignorada no Vaticano; da mesma forma, as queixas sobre comportamento impróprio com adultos foram rejeitadas porque o padre que fazia as acusações era ele próprio um abusador sexual condenado. O papa João Paulo II pediu a quatro bispos de Nova Jersey que investigassem as alegações de que McCarrick estava compartilhando uma cama com seminaristas em sua casa de férias em Nova Jersey, mas “três dos quatro bispos americanos forneceram informações imprecisas e incompletas à Santa Sé” a respeito das atividades de McCarrick, de acordo com o relatório.
Após a publicação do relatório do Vaticano, George Weigel, autor da biografia mais vendida de João Paulo II, ‘Witness to Hope’, falou com o cardeal Timothy Dolan no programa de rádio Sirius XM do arcebispado de Nova York. Weigel rejeitou a conclusão de que João Paulo II merecia a culpa por desempenhar um papel na ascensão de McCarrick na hierarquia da Igreja Católica.
“Theodore McCarrick enganou muitas pessoas”, disse Weigel. “Ele enganou muitos leigos. Ele enganou a mídia por anos. Ele enganou seus irmãos bispos e enganou João Paulo II de uma forma que é apresentada de maneira quase bíblica neste relatório”.
Para muitos católicos nos bancos da igreja, no entanto, uma questão importante permanece: como esse comportamento continuou sem controle por tantos anos, e como McCarrick foi autorizado a subir tão longe na hierarquia da Igreja Católica, apesar dos persistentes rumores de má conduta? E o que sua ascensão diz sobre a supervisão do papa João Paulo II? É o suficiente simplesmente dizer “o Papa não acreditou nos boatos”?
A maioria dos historiadores e dos vaticanistas reconhecerão que o papa João Paulo II não fez grandes esforços para expurgar os abusos sexuais do sacerdócio ou responder rapidamente e com compaixão às vítimas; mesmo assim, seus defensores mais apaixonados admitirão que era um ponto cego no seu papado. Mas a influência financeira de McCarrick (quem, como o padre Maciel, foi um generoso patrono de muitos oficiais do Vaticano e um arrecadador de fundos prodigioso) criou a infeliz aparência que o Vaticano tem um motivo ulterior para ignorar qualquer rumor ao seu a redor. Depois de ser nomeado arcebispo de Washington, ele deu mais de 600 mil dólares em cinco anos para vários oficiais do Vaticano e colegas bispos de uma conta conhecida chamada de “Fundo Especial do Arcebispado”.
O relatório de hoje nega fortemente qualquer influência, dizendo que “a pesquisa não revelou evidências que o costume de doações de McCarrick tenha impactado em decisões significativas feitas pela Santa Sé em relação a McCarrick”, mas entre os que receberam a generosidade de McCarrick durante seus seis anos como arcebispo de Washington foram o papa João Paulo II (90 mil dólares) e Bento XVI (291 mil dólares), de acordo com um artigo do Washington Post. Um ex-secretário pessoal de João Paulo II disse que as doações para o Papa eram enviadas para a Secretaria de Estado do Vaticano, e deveriam ser repassadas para caridades papais.
Para ser claro, a Igreja Católica não ensina que os santos eram perfeitos em vida. Algumas de nossas figuras mais sagradas fizeram alguns desvios sérios no caminho para a santidade. Afinal, Santo Inácio de Loyola assassinou um homem em um duelo; e milhões de católicos americanos esperam a eventual canonização de Dorothy Day, uma pessoa reverenciada por sua santidade e testemunho e que também fez um aborto. Ao mesmo tempo, o relatório McCarrick – e os horríveis danos causados a inocentes detalhados em suas 461 páginas – tornaram-se uma terrível mancha no legado de um homem que há apenas seis anos foi nomeado santo.
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O Relatório McCarrick e o papa João Paulo II: confrontando um legado manchado de um santo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU