12 Novembro 2020
Em um relatório explosivo que questiona a tomada de decisão de três Papas, o Vaticano revelou uma série de falhas institucionais que levaram a repetidas promoções do agora ex-cardeal Theodore McCarrick, apesar dos rumores sobre a sua má conduta sexual com adolescentes no início dos anos 1990.
A reportagem é de Joshua J. McElwee, publicada por National Catholic Reporter, 10-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O Vaticano coloca uma grande responsabilidade sobre o papa João Paulo II, quem indicou McCarrick como arcebispo de Washington em 2000 e o fez cardeal em 2001.
O relatório revela que o pontífice, agora um santo católico, fez essa indicação apesar de ter sido alertado em 1999 pelo então cardeal de Nova York John O’Connor que McCarrick era acusado anonimamente de abusos e de convidar seminaristas para dormir na mesma cama que ele.
O resumo executivo do extenso texto de 450 páginas sugere que João Paulo pode ter ficado cego por sua própria amizade anterior com McCarrick na década de 1970 e por sua experiência na Polônia comunista, onde as autoridades às vezes lançavam falsas acusações contra bispos para tentar e prejudicar a reputação da igreja.
“Embora não haja nenhuma evidência direta, parece provável, pelas informações obtidas, que a experiência anterior de João Paulo II na Polônia com relação ao uso de alegações espúrias contra bispos para degradar a posição da Igreja desempenhou um papel em sua disposição de acreditar nas negações de McCarrick”, diz o resumo.
Além do Vaticano, o texto também atribui uma grande culpa a quatro bispos católicos com ligações com Nova Jersey, onde McCarrick servia como arcebispo de Newark antes de ser nomeado para Washington.
Consta que os quatro bispos foram questionados em junho de 2000 sobre as acusações contra McCarrick. Embora o resumo não nomeie os prelados, o relatório completo sim: James McHugh, Vincent Breen, Edward Hughes e John M. Smith.
“O que agora se sabe é que três dos quatro bispos americanos forneceram informações imprecisas e incompletas à Santa Sé sobre a conduta sexual de McCarrick com jovens adultos", afirma o resumo do relatório. “Esta informação imprecisa parece provavelmente ter impactado as conclusões dos assessores de João Paulo II e, consequentemente, do próprio João Paulo II”.
A divulgação do relatório do Vaticano sobre a carreira de McCarrick foi muito aguardada por mais de dois anos.
O papa Francisco primeiro prometeu um “estudo completo de toda a documentação” presente nos arquivos do Vaticano sobre o ex-cardeal em outubro de 2018, após a revelação chocante em junho de que uma alegação de abuso sexual de McCarrick havia sido considerada “confiável e comprovada”.
A promessa do Papa de uma investigação também veio dois meses depois que o arcebispo Carlo Viganò, que serviu como embaixador do Vaticano nos Estados Unidos entre 2011-16, fez uma série de acusações infundadas contra dezenas de antigos e atuais funcionários de alto escalão, alegando encobrimento de acusações contra McCarrick.
O novo relatório revela, no entanto, que Viganò, como embaixador, não seguiu as instruções do Vaticano para investigar as acusações contra McCarrick.
Agora com 90 anos, McCarrick foi por muito tempo um dos prelados mais influentes da Igreja Católica dos Estados Unidos. Ele foi bispo auxiliar em Nova York de 1977-81 antes de liderar a diocese de Metuchen de 1981-86, a arquidiocese de Newark de 1986-2000 e a arquidiocese de Washington de 2000-06.
Francisco confirmou a remoção de McCarrick do sacerdócio, após uma condenação pela Congregação do Vaticano para a Doutrina da Fé, em fevereiro de 2019.
O relatório sobre a ascensão de McCarrick foi preparado pela Secretaria de Estado do Vaticano, que afirma na introdução do texto que “nenhum limite foi colocado no exame de documentos, no interrogatório de indivíduos ou no dispêndio de recursos necessários para realizar a investigação”.
A secretaria diz que, para preparar o relatório, revisou a documentação disponível sobre a carreira de McCarrick em cinco escritórios do Vaticano e na embaixada do Vaticano nos Estados Unidos. Ela afirma que também conduziu mais de 90 entrevistas com testemunhas com atuais e ex-funcionários do Vaticano, prelados e bispos dos EUA funcionários da conferência e vários secretários de McCarrick.
O cardeal Pietro Parolin, o prefeito da secretaria, disse em um comunicado de 10 de novembro que seu escritório está divulgando o relatório “com pesar pelas feridas que esses eventos causaram às vítimas, suas famílias, à Igreja nos Estados Unidos e à Igreja Universal”.
“A investigação, como se sabe, levou dois anos de trabalho e agora que o texto foi divulgado é possível entender por que demorou”, afirma Parolin.
“A leitura do documento mostrará que todos os procedimentos, inclusive a nomeação dos bispos, dependem do compromisso e da honestidade das pessoas envolvidas”, continua o cardeal. “Nenhum procedimento, mesmo o mais detalhado, está isento de erros porque envolve a consciência e as decisões de homens e mulheres”.
A introdução de 14 páginas ao relatório resume como Francisco e seus três predecessores imediatos, Bento XVI, João Paulo II e Paulo VI, lidaram com McCarrick.
O único Papa entre os quatro que parece sair ileso é Paulo VI. O resumo afirma simplesmente que, quando Paulo VI nomeou McCarrick como bispo auxiliar em Nova York em 1977, “ninguém relatou ter testemunhado ou ouvido falar de McCarrick em qualquer comportamento impróprio”.
O resumo foca principalmente sobe a decisão de João Paulo II nomear McCarrick para Washington em 2000.
Afirma-se que no momento da nomeação haviam três tipos de acusações contra McCarrick: de um padre anônimo de Metuchem, quem reclamou ter visto McCarrick ter engajamento sexual com um outro padre em junho de 1987; cartas anônimas enviadas à Embaixada do Vaticano e a “vários” cardeais estadunidenses “acusando McCarrick de pedofilia” e que McCarrick pedia para dividir a cama com seminaristas.
O’Connor, que serviu como arcebispo de Nova York de 1984 até sua morte em maio de 2000, sintetizou as alegações em 28 de outubro de 1999, em uma carta que foi compartilhada com João Paulo II, conforme revela o relatório.
“A informação a respeito da conduta de McCarrick leva a conclusão que seria imprudente transferi-lo de Newark para outra sede por três motivos”, atesta o documento, identificando que McCarrick foi preterido para vagas em Chicago e Nova York, e foi inicialmente preterido quando João Paulo II estava procurando alguém para substituir o cardeal James Hickey em Washington.
A decisão de João Paulo II de prosseguir com a nomeação de McCarrick para Washington veio depois que os quatro bispos com laços com New Jersey foram solicitados a contribuir com as alegações pelo arcebispo Gabriel Montalvo, então embaixador do Vaticano nos EUA, em junho de 2000.
O relatório completo deixa claro que Montalvo considerou a resposta de Hughes, que chefiou a diocese de Metuchen de 1987-97, como a mais direta. Hughes havia avisado que seria “insensato considerar o arcebispo para qualquer promoção ou honra adicional”.
Em agosto de 2000, McCarrick escreveu uma carta ao então bispo Stanislaw Dziwisz, secretário pessoal do papa João Paulo II.
Nessa carta, McCarrick prometeu a Dziwisz, agora cardeal arcebispo emérito de Cracóvia, Polônia: “Nos setenta anos da minha vida, nunca tive relações sexuais com qualquer pessoa, homem ou mulher, jovem ou velho, clérigo ou leigo, jamais abusei de outra pessoa ou tratei com desrespeito”.
O resumo atesta: “A negação de McCarrick foi acreditada e sustentada, se as alegações contra McCarrick se tornassem públicas, McCarrick seria capaz de refutá-las facilmente”.
Na época da nomeação de Washington, continua o resumo, “em parte devido à natureza limitada das próprias investigações anteriores da Santa Sé, a Santa Sé nunca tinha recebido uma reclamação direta de uma vítima, seja adulta ou menor, sobre a má conduta de McCarrick”.
“Por essa razão, os apoiadores de McCarrick poderiam plausivelmente caracterizar as acusações contra ele como ‘fofoca’ ou ‘rumores’”, afirma.
O relatório diz que a alegação do padre não identificado de Metuchen, que acusou McCarrick de se envolver sexualmente com um terceiro padre, originalmente não foi acreditada, em parte porque o acusador “já havia abusado de dois adolescentes”.
Mas afirma que “novos detalhes” sobre essa alegação surgiram após a morte de João Paulo II em 2005, o que levou Bento XVI a solicitar que McCarrick deixasse o cargo de arcebispo de Washington em 2006.
“Nos dois anos seguintes, os funcionários da Santa Sé lutaram para descobrir como abordar as questões relacionadas ao cardeal McCarrick”, afirma o resumo do relatório.
Viganò, então funcionário da Secretaria de Estado, afirma, escreveu dois memorandos, um em 2006 e outro em 2008, sobre as alegações em torno de McCarrick. O cardeal Tarcisio Bertone, então prefeito da secretaria, levou o assunto a Bento XVI.
“No final das contas, o caminho de um processo canônico para resolver questões factuais e possivelmente prescrever penalidades canônicas não foi seguido”, afirma o resumo. “Em vez disso, a decisão foi tomada para apelar à consciência e ao espírito eclesial de McCarrick, indicando a ele que ele deveria manter um perfil mais baixo e minimizar as viagens para o bem da Igreja”.
Em 2006, o cardeal Giovanni Battista Re, então prefeito da Congregação para os Bispos, instruiu o arcebispo Pietro Sambi, então embaixador do Vaticano nos EUA, “para transmitir essas indicações oralmente a McCarrick”. Mais tarde, em 2008, Re “transmitiu as indicações a McCarrick por escrito”.
O Vaticano reconhece que, embora essas medidas tenham sido aprovadas por Bento XVI, “as indicações não continham o imprimatur explícito do Papa, não se baseavam em uma constatação factual de que McCarrick realmente cometera má conduta e não incluíam uma proibição ao ministério público”.
“Na ausência de sanções canônicas ou instruções explícitas do Santo Padre, McCarrick continuou suas atividades”, afirma o resumo.
Perto do final do papado de Bento XVI, o resumo diz que outro padre Metuchen não identificado informou Viganò de um processo alegando má conduta sexual entre o padre e McCarrick em 1991 (Viganò substituiu Sambi como embaixador do Vaticano nos EUA em 2011).
O cardeal Marc Ouellet, então e atualmente chefe da Congregação para os Bispos, instruiu Viganò “a tomar certas medidas, incluindo uma investigação com funcionários diocesanos específicos e [o sacerdote] para determinar se as alegações eram críveis”, afirma o resumo.
“Viganò não deu esses passos e, portanto, nunca se colocou em posição de verificar a credibilidade [do padre]”, afirma. “McCarrick continuou ativo”.
Dirigindo-se ao papa Francisco, o resumo diz que o atual pontífice nunca retirou ou modificou as “indicações” que foram dadas a McCarrick por Re em 2006 e 2008. Embora Viganò tenha afirmado que falou com Francisco sobre McCarrick em 2013, “nenhum registro apoia Viganò e o que ele disse é fortemente contestada”, afirma.
“Até 2017, ninguém forneceu ao papa Francisco qualquer documentação relativa às alegações contra McCarrick”, continua.
“O papa Francisco ouviu apenas que houve alegações e rumores relacionados à conduta imoral com adultos ocorrida antes da nomeação de McCarrick para Washington”, consta no resumo.
“Acreditando que as alegações já haviam sido revisadas e rejeitadas pelo papa João Paulo II, e bem ciente de que McCarrick estava ativo durante o papado de Bento XVI, o papa Francisco não viu a necessidade de alterar a abordagem que havia sido adotada nos anos anteriores”.
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Relatório McCarrick do Vaticano é explosivo e responsabiliza João Paulo II - Instituto Humanitas Unisinos - IHU