14 Novembro 2020
A dor não nos é alheia. Nós a conhecemos por atravessá-la em alguma de suas formas, simples ou complexas, com maior ou menor intensidade, consequências, marcas. O sofrimento que provoca uma dor de dente, uma doença crônica, uma perda, um acidente, a tortura, o treinamento exigido ou o sofrimento autoinfligido nas práticas sadomasoquistas. A dor é parte constitutiva de nossa experiência vital. E a pandemia a colocou em primeiro plano, por experiência próxima ou pelas reflexões dos adultos mais velhos, mais confrontados do que nunca com a finitude.
Em seu novo livro Experiencias del dolor. Entre la destrucción y el renacimiento, (Tradução para o espanhol de Carlos Trosman), o professor de sociologia na Universidade de Estrasburgo e membro do Instituto Universitário da França, David Le Breton, decodifica a dor a partir de um enfoque centrado na pessoa e não apenas no organismo. “A dor é 100% física e 100% psíquica”, destacava, dias atrás, em uma conversa-debate organizada pela editora Topía, via Zoom. “Como a doença ou a morte, a dor é o preço que se paga pela dimensão corporal da existência”, destacou.
A entrevista é de Carolina Reymúndez, publicada por Clarín-Revista Ñ, 12-11-2020. A tradução é do Cepat.
A dor apaga a dualidade entre fisiologia e consciência?
Toda dor acarreta consequências na relação com o mundo, implica ressonâncias morais, não se limita ao corpo, transborda a existência. Se a dor de dente com cárie ficasse encerrada no dente, não geraria incômodo. Coloniza toda a existência porque se torna sofrimento. A dor é totalmente física e totalmente psíquica porque mobiliza o corpo e o sentido de maneira indissociável. Está sempre englobada no interior de um sofrimento, é uma agressão mais ou menos viva que é preciso suportar.
Chamo de sofrimento o grau de dureza da dor, sua ressonância íntima, sua medida subjetiva. O sofrimento é o que o indivíduo faz de sua dor através de seus recursos físicos e morais para enfrentar a prova, sua força de resistência, as técnicas médicas e pessoais utilizadas para diminuir a intensidade ou, ao contrário, sua passividade, sua resignação.
A dor faz parte do vocabulário utilizado pelo médico e sofrimento, a do paciente. A dor desqualifica os dualismos, essa herança da tradição metafísica de nossas sociedades: corpo e alma, físico e psicológico, orgânico e psicológico, objetivo e subjetivo... A dor contradiz de cheio o dualismo consuetudinário de nossas sociedades, que isola o corpo da pessoa. Esta entre o corpo e o eu, a carne e a psique, sem estar em um ou no outro.
Que lugar podemos atribuir aos outros na experiência da dor?
Se o indivíduo está instável dentro do tecido social por causa do sofrimento, os outros não sabem como tratá-lo. Todos os pontos de referência estão desorientados. A pessoa com dor porta um poder de erosão do sentido e, por isso, de uma ameaça de contágio a outros. Nem doente, nem sadio, nem si mesmo, nem completamente outro, à margem de sua antiga existência, a pessoa não entra nas classificações tradicionais, está em desequilíbrio com os laços sociais ordinários. É claro, uma presença calorosa, respeitosa e atenta é capaz de neutralizar uma parte do sofrimento e de devolver ao indivíduo ao vínculo social como membro de pleno direito.
Para escapar do sofrimento ou diminuir sua intensidade, são necessários a graça de um rosto, o reconhecimento do outro. Os analgésicos não são o suficiente, caso não sejam acompanhados por uma qualidade de presença. Uma dor mal atendida por um médico indiferente, mal acompanhada por uma equipe de saúde sobrecarregada, aumenta o sentimento de abandono e alimenta o sofrimento: o de não ser tratado como sujeito, mas como “objeto” de cuidados, pois, então, a posição de sujeito se transforma em submissão. No entanto, por ter trabalhado sobre a dor crônica, não me esqueço que tal situação é uma prova para a família, e pode levar a tensões e separações.
A reclusão excessiva e forçada deste ano, sem ternura e com máscara facial, pode gerar acréscimo de sofrimento às pessoas idosas?
Entre os idosos, o isolamento traz uma dimensão extra a um sofrimento de vida, que é ainda mais vivo quando o prazer de viver diminui lentamente. Se não “cuidarmos” deles, se não os reconhecermos em sua existência e valor pessoal, podem se permitir caminhar para a morte ou sofrer mais. A falta de atenção é uma mensagem terrível que insiste em sua insignificância social. O mesmo acontece com as pessoas que sofrem uma deficiência sensorial ou física. Às vezes, são acomodadas para existir nas condições sociais ordinárias, mas é evidente que o confinamento multiplica os obstáculos para as pessoas vulneráveis, seja qual for a sua situação.
Podemos decidir ignorar a dor?
A doença ou a dor introduzem opacidade no corpo e rompem a transparência em relação a si mesmo no curso da vida diária. Como a doença e a morte, a dor é o preço que se paga pela dimensão corporal da existência. A dor é um alerta, ressalta uma ameaça sobre a existência. É uma proteção paradoxal contra as inumeráveis adversidades da vida cotidiana, que recorda com brutalidade os limites que se impõem para não ser destruído. É o privilégio e a tragédia da condição humana ou animal.
Uma vida sem dor é impensável. Às vezes, é útil para apontar um processo patológico, muitas vezes, está ausente para marcar a progressão de uma doença grave descoberta tarde, e às vezes está fora de qualquer necessidade de proteção para desarticular a vida, se torna crônica e nos prejudica. Muitas vezes, a dor é a doença a ser combatida.
O oposto da dor consiste na carência de qualquer percepção dolorosa, já que o indivíduo se fere, lesiona, sem sentir a menor dor. Tampouco é consciente dos transtornos orgânicos que atravessa e que, às vezes, têm graves consequências para sua vida. Longe de ser uma sorte, tal privação do sentido da dor o torna vulnerável a seu ambiente. Não percebe nenhum alerta sobre suas feridas ou suas doenças e se comporta como se nada tivesse piorado seu estado. Estes pacientes com insensibilidade genética à dor são homens ou mulheres comuns, não são nem psicóticos, nem histéricos, simplesmente não sentem as lesões de seu corpo.
É possível voltar da dor?
Sim, claro. É preciso resistir um sofrimento às vezes extremo, não se deixar arrastar pelo abismo que abre em si mesmo. Cada pessoa atormentada pelo sofrimento elabora suas próprias táticas de resistência. É claro, um certo número de moléculas é eficaz para muitos pacientes, mas não para todos. Acredito, também, nas moléculas do sentido, ou seja, nos métodos que empregamos de maneira pessoal para aflouxar as mandíbulas do sofrimento. Eu as chamo de técnicas de sentido. Transformam o significado da experiência, como a hipnose, o relaxamento, a sofrologia, a imagem mental, a escrita, etc.
Muitas pessoas saem do ciclo da dor crônica aprendendo a viver com uma dor aliviada em parte da conotação do sofrimento. Outros encontram neles os recursos de sentido para empurrar o sofrimento e continuar vivendo sem se ver muito afetados. Não é tanto a dor o que dói, mas o significado que reveste. O pior é não ter nenhum controle sobre ela.
A hipnose é uma técnica apaixonante contra a dor já que atua somente sobre o sentido da experiência dolorosa, não há contato físico. Através dos cenários implementados com o hipnoterapeuta, o paciente reformula seus sentimentos dolorosos em uma narrativa, um imaginário que poda sua crueldade. Escapa da sensação de impotência que agravava seu sofrimento. A hipnose intervém aqui, justamente, sobre o significado da experiência.
Por que o amor pode causar tanta dor?
O ponto comum do amor e a dor é que ambos invertem totalmente seu objeto. Mas, é claro, de modo oposto. Quanto mais se pensa em sua dor, mais se investe nela e mais dói, mais energia recebe. O amor compartilhado ou vivido sem dificuldade é outra forma massiva de investimento, mas feliz. Envolve toda a existência, mas a fascina. A dor sofrida reverte toda a existência, mas a destrói, assim como um amor que não é compartilhado.
Você considera que existe outra dimensão da dor: a provocada, como no sadomasoquismo ou nos esportes radicais. Conforme a narrativa de cada um, a dor pode ser menos dolorosa, mais doce, agradável?
O paradoxo do sadomasoquismo é que certas pessoas chegam ao orgasmo somente por meio de cortes, feridas, lacerações, com a condição, é claro, de que esses maus-tratos sejam consentidos. A dor escolhida, essa que faz mal sem induzir ao sofrimento, quase sempre está associada à reafirmação do ser, a recordar o fato de estar vivos, de ser reais e estar presentes (esportes, body art, modificação corporal, etc.). Ao contrário, a dor imposta pela doença ou as sequelas de um acidente, sobretudo, caso dure, rompe as fronteiras do indivíduo, o fragmenta. É sofrimento e se impõe como violência pura que o indivíduo gostaria de rejeitar de todo o seu ser.
Se a dor escolhida oferece uma consciência aguda de si mesmo, uma dor imposta pelas circunstâncias danifica a sensação do eu, a menos que se recorra com êxito a técnicas de distração ou dissociação que rompam a fascinação exercida pela dor. Estas são as técnicas de sentido das quais falava, como a hipnose. O indivíduo sem saber segue sendo o artífice do que vive. Caso se impõe a ele, se dá pelo prisma de sua história pessoal.
O sofrimento é sempre de alguma forma o que o indivíduo faz, não é uma fatalidade. A mesma ferida, a mesma doença, não suscita as mesmas reações para os pacientes segundo seus valores, sua história, seu ambiente... A dor é um fato de significado. Está longe de ser apenas um acontecimento que afeta o sistema nervoso. O sentido potencializa o sofrimento, é a tese do livro apoiada em uma multidão de exemplos e situações diferentes, também através de testemunhos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Viver sem dor é impensável”. Entrevista com David Le Breton - Instituto Humanitas Unisinos - IHU