"Quem é 'luterano' não deveria esquecer que carrega 'liberdade', uma liberdade muito especial, que foi liberto e que não deveria se deixar escravizar novamente", escreve Martin Dreher.
Martin Norberto Dreher é pastor luterano, professor e historiador brasileiro. Cursou teologia na Faculdade de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - IECLB, é doutor em história da igreja pela Ludwig-Maximilians Universtät, de Munique, na Alemanha. Foi professor de Teologia e pastor em diversas paróquias da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil. Entre seus livros publicados, destacamos De Luder a Lutero (São Leopoldo, RS: Sinodal, 2014), 190 anos de imigração alemã no Rio Grande do Sul: esquecimentos e lembranças (São Leopoldo, RS: Oikos, 2014) e História do povo de Jesus. Uma leitura latino-americana (São Leopoldo, RS: Sinodal, 2013).
Os cristãos que se designam de “luteranos” muitas vezes mal sabem o que a expressão que utilizam envolve. Não se trata apenas de um derivado do sobrenome do reformador Martim Lutero, mas de palavra central do anúncio do Evangelho de Jesus Cristo e está ligada à expressão central do texto de Gálatas 5.1: “Cristo nos libertou para que nós sejamos realmente livres. Por isso, continuem firmes como pessoas livres e não se tornem escravos novamente”.
Quando o reformador Lutero se matriculou na Universidade de Erfurt, no Curso de Direito, em 1501, o livro de registro de matrículas o inscreveu com o nome de Martinus Ludher ex Mansfeld (Martim Ludher, natural de Mansfeld). Cuide-se da letra “d” no sobrenome. Ludher pode ser derivado de Lothário, nome de um dos imperadores alemães, mas também pode significar “vagabundo” ou outras expressões desqualificadoras. Desde 1518, porém, o reformador passa a assinar “Martinus Eleutherius”, Martim Liberto. O que havia acontecido?
Lutero e seu mundo tinham muito em comum com o nosso mundo de 2021. Esse comum pode ser resumido na palavra “medo”. Havia medo de Deus, dos turcos que avançavam sobre a Europa cristã, da morte causada por epidemias, das transformações econômicas (o capitalismo estava a emergir), das transformações sociais (todos os camponeses estavam sendo reduzidos à servidão/escravidão), das transformações científicas (a terra não era mais o centro do universo, mas o sol; desde as viagens de Colombo e de Vasco da Gama, a terra era definitivamente redonda), das transformações geográficas (o mundo ficara mais amplo e as doenças do mundo invadiam a Europa, como a sífilis; mas a Europa também exportava suas doenças, como a tuberculose). Muitas dessas transformações pareciam estar anunciando o final dos tempos. O medo de Lutero, no entanto, era o medo de Deus.
Esse “medo de Deus” pode ser exemplificado num alto-relevo que se encontrava afixado na parede externa da igreja de Wittenberg, cidade em que Lutero atuou como professor universitário e onde está sepultado. Nele se vê um Cristo assentado sobre o arco-íris, com as mãos apoiadas sobre os joelhos, tendo na boca uma espada de dois gumes. De seus olhos saem raios mortais. É o Cristo-Deus juiz. Este Cristo-Deus juiz é Deus que aterroriza, frente ao qual o ser humano é chamado a imolar tudo o que tem para que Deus lhe seja favorável, se agrade dele e frente ao qual sempre de novo está a perguntar: já fiz o suficiente para que ele se agrade de mim? Se eu morrer amanhã, será que ele me recebe?
Lutero e seus contemporâneos realmente sacrificaram o que de melhor tinham ante esse Deus. Viam-no como Deus justo que recompensa quem faz o suficiente para lhe agradar e castiga a quem fica em débito para com ele.
Lutero entrou no mosteiro para que Deus se agradasse dele. A sociedade desfazia-se de bens para comprar de corretores religiosos a garantia de acesso ao céu, por meio de letras de câmbio, à época designadas de indulgências. Na realidade, esses corretores abusavam do medo, da credulidade de cristãos e eram representantes de um cristianismo que monetarizara a fé e perdera o real significado do Evangelho e eliminava a necessidade de arrependimento ao anunciar que “quando o dinheiro retine na caixinha a alma salta do purgatório para o céu”.
Nem mesmo os frutos da fé se faziam necessários. Foi por isso que o professor universitário Lutero resolveu promover um debate para esclarecer se as letras de câmbio religioso podiam eliminar a necessidade de arrependimento e de frutos de uma fé ativa no amor.
Seu convite para este debate aconteceu em 31 de outubro de 1517, por muitos hoje comemorado com Dia da Reforma da Igreja. Ao assim agir, Lutero nem sequer desconfiou que estava a se meter em discussão de grandes proporções. Foi denunciado como suspeito de heresia, pois atacava a ordem religiosa dos dominicanos que vendiam as indulgências. Seu arcebispo não gostou de seu debate, pois necessitava vender urgentemente indulgências para pagar a dívida que contraíra junto à casa bancária para pagar a compra de seu terceiro bispado. Finalmente, o papa Leão X necessitava do dinheiro da venda das indulgências para construir a bela basílica de São Pedro.
Acusado, Lutero foi para a ofensiva e tornou-se centro de grande debate e discussão. Sua ofensiva não se deu sem profundo estudo de uma fonte que é cara até os dias atuais: a Sagrada Escritura. Foi no estudo da Bíblia que descobriu seu centro: Jesus Cristo. E chegou a afirmar que a Bíblia é uma manjedoura, na qual Cristo está deitado. Se não o encontrarmos, só temos palha!
Mas, descobriu mais ainda: Este Cristo é o Cristo crucificado e ressurreto. Deus tem o rosto do crucificado. Jesus Cristo é o Deus que sai das alturas e vem em busca do ser humano para libertá-lo de todos os seus temores, da morte, do poder do diabo que sempre de novo tenta subverter a mensagem do amor incondicional de Deus pelo ser humano e reduzi-lo à servidão de todos os temores que possamos nos imaginar.
A morte não tem a última palavra por causa da ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos. Não é através da compra ou da venda de garantias que podemos ter certeza desse amor incondicional de Deus. A coisa é muito, muito mais simples: basta abrir os olhos e receber em confiança, em fé, esse amor e reconhecer: Deus nos aceita e tira de nós os temores, em Jesus, de graça. Só existe, pois, um lugar para o qual devemos olhar em nossa vida de cristãos: Jesus Cristo.
Menos de um ano após a publicação de suas 95 teses de 31 de outubro de 1517, Lutero estava mais convicto do que nunca de que foi para a liberdade que Cristo nos libertou. A pessoa cristã pode ser alegre e expressar isso em hinos: “Cristãos alegres jubilai, felizes exultando...”. “A minha força nada faz, sozinho estou perdido...”.
Lutero falava da “liberdade”, da qual fala o apóstolo Paulo na carta aos Gálatas. Ali liberdade é escrita com a palavra grega “eleutheria” que, no Brasil, serve de nome para pessoas: Você conheceu o “seu” Eleuthério ou a “dona” Eleuthéria? Conheci a ambos. Note que Eleutheria, Eleuthério e Eleuthéria são escritos com “th”. Pois, o professor Ludhero, desde 1518, passou a assinar “Eleutherio”, “Luthero”. Era pessoa liberta pelo evangelho de Jesus Cristo. Quem é “luterano” não deveria esquecer que carrega “liberdade”, uma liberdade muito especial, que foi liberto e que não deveria se deixar escravizar novamente.
Quem é “luterano” também jamais deveria esquecer outra palavra central da carta aos de Gálatas. A fé da pessoa que foi libertada por Deus em Jesus Cristo é “ativa no amor”. Ela não fica mais olhando para o céu como os discípulos que estavam com Jesus no monte da transfiguração; já sabe que o céu lhe foi dado de graça. Por isso, desce do monte da transfiguração, com Jesus, e produz boas obras de salvação do mundo que é e continua a ser boa criação de Deus e não é das bruxas.