22 Outubro 2020
“A [Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil - IECLB], neste final de semana, tem a oportunidade de decidir se assume o compromisso evangélico, e suas consequências na sociedade, como Lutero o entendeu, ou continua silenciosa, em cima do muro. Até aqui, como IECLB, temos sido todos 'luderanos'”, escreve Edelberto Behs, jornalista, que atuou na Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil - IECLB de 1974 a 1993, como repórter e editor do Jornal Evangélico e depois como assessor de imprensa.
“Hier bin ich und kann nicht anders. Gott helf mir” (Aqui estou e não posso de outra maneira. Que Deus me ajude, amém). Essa foi a resposta que Lutero deu à pergunta do oficial do arcebispo de Tréveris e perante o imperador Carlos V, na Dieta de Worms, em janeiro de 1521, se ele revogava os seus escritos contra as indulgências e o papado. Preso à Palavra de Deus, “não posso nem quero revogar qualquer coisa”.
A essas alturas já tinha sido expedida a bula de excomunhão de Lutero e em 8 de maio de 1521 o imperador assinou o Edito de Worms, declarando o monge agostiniano proscrito. A ordem era prender Lutero e seus adeptos, e a divulgação de seus livros foi proibida. A posição de Lutero perante Carlos V foi de extrema coragem.
Em uma biografia nada ufanista do reformador, o historiador Martim Norberto Dreher relata a passagem de Luder a Lutero, que dá título ao seu livro. De casa ele era Luder, derivado do nome “Lothar”, “Lotário”, um imperador alemão, que podia ser grafado como Luder ou Lüder. No alemão moderno, Luder significa “vagabundo”.
“Na epístola de São Paulo aos Gálatas – conta Dreher – (Lutero) verificou que liberdade, libertação é ELEUTHERIA. Ao expor sua teologia da cruz, escreveu carta a amigo e assinou-a Martinus Eleutherius, Martim Liberto ‘pelo evangelho de Deus crucificado’. Daí em diante, o ‘th’ da Eleutheria passou a substituir o ‘d’ de seu sobrenome, que paulatinamente foi se transformando em programa”. Luthero passa a assinar assim a partir de 1518.
Foi na busca de um Deus misericordioso, justo, que Lutero encontrou o Deus da graça, da Palavra, e passou a olhar o mundo ao seu redor. O monge se sentiu, então, autorizado a debater a virtude e o valor da indulgência. Ele queria provocar um debate acadêmico e por isso pregou as 95 teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg, localidade onde era professor na Universidade local.
Luder não tinha em mente bater na igreja. “O que, porém, ocorreu não foi uma discussão acadêmica sobre a questão. Foi uma questão política, que logo se tornou pública. Mesmo que não houvesse clareza quanto ao significado da indulgência, ela se transformara numa questão política. Ela se tornou importante na história da igreja, quando utilizada para promover a primeira cruzada”, escreve Dreher. Lutero entendia que “melhor é ajudar necessitados” e só depois fazer doações para a igreja.
Agora Luthero, o liberto, passou a se manifestar a sobre vários temas, motivado pela Palavra, que vão além do espectro eclesial e religioso. No escrito “Da Autoridade Secular”, de 1522, ele afirma, atendendo uma solicitação do pastor Wolfgang Stein e do duque João Frederico da Saxônia, que Deus “enlouqueceu nossos príncipes. Eles pensam que podem fazer e determinar a seus súditos o que quiserem. Também os súditos se enganam quando acreditam que são obrigados a cumprir tudo isso inteiramente”.
No mesmo escrito, assinala que as autoridades seculares “deveriam governar exteriormente o país e o povo. Mas não fazem isso. Não sabem fazer mais nada senão esfolar e ralar. Cobram imposto em cima de imposto, taxa atrás de taxa. Aqui soltam um urso, ali um lobo. Além disso, não conhecem fidelidade nem verdade”. A crítica do reformador é feroz: “Você deve saber que, desde o começo do mundo, príncipe sábio é coisa rara. Mais raro ainda é um príncipe honesto. Geralmente são os maiores tolos e os piores tratantes da terra”. Mais adiante ele pede que príncipes e autoridades “deixem de crimes e violência e pensem em agir com justiça”.
Seguidores de Lutero passaram a ser chamados de “protestantes” desde 1529. Com a tradução do texto sagrado para o alemão, para a linguagem que o povo entendia e falava no dia-a-dia, “a Bíblia tornou-se próxima. Não era apenas uma doutrina que ensinava como herdar o céu. Tornou-se slogan, instrumento para exigências de transformação social. Todos os movimentos sociais da época buscavam fundamentação na Bíblia, inspiravam-se nela”, arrola Dreher.
Ainda como monge, seu preceptor no convento, Usingen, tirou de Lutero a Bíblia encadernada em couro vermelho, argumentando que lesse os antigos mestres, que já haviam destilado o suco da verdade bíblica. “A Bíblia só provoca rebeliões”, foi o argumento de Usingen. “A expressão é verdadeira. Valia para o passado e era antevisão do futuro. O trato da Bíblia até hoje divide opiniões. Qual é a base da fé: a Bíblia, a tradição ou as revelações proféticas?” – indaga Dreher.
Esse é o quadro presente em boa parte nas igrejas históricas, entre elas a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). De um lado, há os que defendem uma igreja mais profética, que se posicione ante os desmandos do governo necrófilo de Jair Bolsonaro, como o descaso do governo para com populações indígenas, quilombolas e ribeirinhas, ou o cancelamento da aquisição de vacinas da Coronavac, de imunização ao covid-19. De outro lado, os que propugnam um Cristo preso ao templo, sem “se meter em questões políticas”, que veem no “mito” um presidente “cristão” e o defendem.
Com essa divisão como pano de fundo, a IECLB se reunirá, virtualmente, de 23 a 25 de outubro, no 32º Concílio Geral, organismo máximo da instituição. A carta pastoral da presidência da igreja, para o mês de outubro, afirma que “a Palavra de Deus estimula uma cidadania responsável lá onde vivemos”.
“Desde a sua origem, a IECLB é caracterizada pela diversidade de pensamentos. Diversidade, quando acompanhada do diálogo, possibilita crescimento. O diálogo acompanhado pela Palavra de Deus cria e mantém a unidade. Que possamos dialogar e procurar acolher opiniões distintas. Isso é parte da riqueza da IECLB”, expressa a carta pastoral.
Ela tem, neste final de semana, tem a oportunidade de decidir se assume o compromisso evangélico, e suas consequências na sociedade, como Lutero o entendeu, ou continua silenciosa, em cima do muro. Até aqui, como IECLB, temos sido todos “luderanos”.
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Somos todos “luderanos”. Artigo de Edelberto Behs - Instituto Humanitas Unisinos - IHU