24 Outubro 2020
"Como padre que teve o privilégio de ser testemunha em várias cerimônias homossexuais, onde em cada ocasião o casal dava um título próprio àquilo que estava fazendo, eu diria o seguinte: deixe o bolo crescer antes de colocar a cereja em cima dele. O bolo em questão é a nossa cultura e conhecimento compartilhados sobre os casais homossexuais em situação legal e que convivem publicamente", escreve James Alison, padre, doutor em teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte, assumidamente gay, fundou em São Paulo o Grupo de Ação Pastoral da Diversidade, e autor de “Fé além do ressentimento: fragmentos católicos em voz gay” (Ed. É Realizações, 2010), em artigo publicado por The Guardian, 22-10-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eu não tinha nenhum conhecimento prévio do documentário de Evgeny Afineevsky, “Francesco”, ou da entrevista presente nele que contém a nova formulação do Papa Francisco sobre a sua posição anterior sobre as uniões civis do mesmo sexo.
No entanto, não foi uma surpresa para mim. Qualquer pessoa com alguma experiência pastoral sabe que, ao lidar com a personalidade de um indivíduo, você parte de onde ele ou ela está. Dado um episcopado muito gay e muito “fechado no armário” em muitos países, para os quais uma conversa serena e adulta sobre essas coisas era, até recentemente, quase impossível, a questão em geral tem sido esta: quanto tempo levaria para que o bom senso básico da maioria das pessoas católicas e aquilo que elas aprenderam sobre a sexualidade humana impregnasse o andar de cima, de modo que o clero mais velho não precise ter medo disso? E é aqui que o Papa Francisco tem sido tão bom. Ele claramente não tem medo do assunto.
Isso ficou evidente para mim quando ele me telefonou para me reafirmar no meu sacerdócio, anulando uma tentativa que havia sido feita para remover o meu status clerical por eu ser um homem assumidamente gay. “Soy el Papa Francisco”, dizia a voz do outro lado da linha, repentinamente, em uma tarde de julho de 2017. E depois isto: “Quero que você caminhe com profunda liberdade interior, seguindo o espírito de Jesus. E eu lhe dou o poder das chaves. Você entende? Eu lhe dou o poder das chaves”.
Quando amigos começaram a me bombardear com links de notícias para a notícia de que o Papa Francisco havia declarado seu apoio às uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, eu experimentei uma sensação de surpresa em cima de surpresa. A meu ver, o que ele disse não é algo especialmente novo, mas é genuinamente “algo grandioso”. Não é especialmente novo, pois se sabia que, antes de se tornar papa, o então arcebispo Bergoglio havia proposto as uniões civis entre pessoas do mesmo sexo durante o debate sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo na Argentina em 2010. Na época, esse foi um posicionamento muito corajoso: o Vaticano havia proibido específica e publicamente os católicos de apoiarem qualquer forma de reconhecimento das relações entre pessoas do mesmo sexo, mesmo como um “mal menor” em relação ao apoio ao casamento entre pessoas de mesmo sexo. Desde que se tornou papa, Francisco havia se referido ao seu posicionamento em Buenos Aires em entrevistas em várias ocasiões, embora, pelo que eu saiba, não na frente das câmeras.
Então, por que esses comentários mais recentes são significativos? Em parte, porque o Santo Padre está claramente representando essas uniões civis como uma coisa boa e desejável, a serem ativamente promovidas, ao invés de um mal menor. E, segundo, porque ele afirma que é justo que os casais de pessoas do mesmo sexo formem uma família e façam parte da família da Igreja.
Isso evidentemente terá efeito em países onde a homossexualidade é ilegal, assim como provocará dor de cabeça nos estadunidenses conservadores que buscaram isenção legal da contratação de casais do mesmo sexo que entraram em uma união civil. Embora seja apenas aparentemente uma mudança mínima em relação à visão do “mal menor”, a posição de Francisco é inconcebível para alguém que acredita que os atos entre pessoas do mesmo sexo são pecados mortais, que levam os envolvidos para o inferno. Se acreditasse nessas coisas, você procuraria separar esses casais, e não os estabilizar.
A partir disso, podemos deduzir que o Papa Francisco não acredita nessas coisas. E aqui quero expressar a minha surpresa com a surpresa. Acho que o mundo de língua inglesa, com suas pressuposições iluministas e protestantes sobre como funciona o ensinamento religioso, não entende realmente como a discussão sobre as pessoas LGBT na Igreja Católica está se desenrolando. Não há nenhum ponto importante da doutrina em jogo, nem nada dos credos que esteja pondo em risco a forma da nossa salvação. E não há nenhum escrúpulo real em relação aos textos bíblicos aparentemente hostis, uma vez que as leituras fundamentalistas são, em todo o caso, oficialmente desaprovadas pela autoridade eclesial.
A questão atual é antropológica e é bastante simples: ou é verdade que ser gay ou lésbica é uma forma perversa ou patológica de uma humanidade que só é autenticamente heterossexual; ou é verdade que ser gay ou lésbica é simplesmente uma variante minoritária não patológica na condição humana.
Se for a primeira, então “ceder” ao fato de ser gay ou lésbica é seguir o caminho da própria desordem objetiva e, em última análise, excluir-se da graça. Se for a segunda, então tornar-se quem você é algo que começa a partir de quem você acha que é, incluindo a sua orientação sexual, e a humanização apropriada de seu desejo sexual será trabalhada em relacionamentos apropriados ao longo do tempo.
Alguns comentaristas foram rápidos em apontar a distinção entre as uniões civis entre pessoas do mesmo sexo e o casamento, dizendo que as primeiras são possíveis para os católicos, enquanto o outro nunca será. Eu acho que isso é um pouco inexato. Como padre que teve o privilégio de ser testemunha em várias cerimônias homossexuais, onde em cada ocasião o casal dava um título próprio àquilo que estava fazendo, eu diria o seguinte: deixe o bolo crescer antes de colocar a cereja em cima dele. O bolo em questão é a nossa cultura e conhecimento compartilhados sobre os casais homossexuais em situação legal e que convivem publicamente.
O importante tem sido a obtenção de garantias jurídicas para uma vida estável. Em breve, a primeira geração de crianças gays e lésbicas, para as quais o casamento civil nunca foi uma impossibilidade, chegará à idade de se casar. O fato de termos o bolo, e a afirmação do papa de que devemos tê-lo, é maravilhoso. A discussão sobre a forma e a cor da cobertura sem dúvida será tudo isso e muito mais.
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Apoio do papa a uniões gays não é uma surpresa, mas é muito significativo. Artigo de James Alison - Instituto Humanitas Unisinos - IHU