A renda básica universal precisa ser incondicional, defende o economista
A crise social e econômica que atingiu milhares de trabalhadores em todo o mundo em decorrência da pandemia de Covid-19 trouxe à tona novamente a discussão sobre a necessidade e as possibilidades de instituir um programa de transferência de renda universal. Os especialistas, contudo, divergem acerca de quem poderia receber este benefício do Estado e de quais são os mecanismos disponíveis para estabelecer um programa desse tipo.
Entre os intelectuais contemporâneos que defendem a instituição de uma renda universal incondicional está o economista italiano Andrea Fumagalli, que participará do evento "Renda Básica Universal. Para além da justiça social", promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, com a palestra intitulada "Renda Básica Universal. Novos modelos econômicos, de proteção social e de reapropriação do comum", na manhã de hoje, 21-10-2020, às 10h, com transmissão online pelo YouTube e pela plataforma Teams.
Em entrevista à IHU On-Line em abril deste ano, intitulada "Enfrentamento da pandemia requer um Estado que crie condições de bem-estar e a reapropriação coletiva dos bens comuns", o economista ressaltou o retorno do debate sobre a renda universal em decorrência dos efeitos da crise pandêmica. "A questão da renda está hoje tão no centro do debate que as denominações se multiplicaram, cada uma de acordo com o próprio interesse político e a autorreferência. Atualmente, na Itália, além da renda de cidadania já existente (que se revela completamente insuficiente diante dessa emergência), se discute sobre renda de emergência para os cidadãos que ficaram pobres em razão da pandemia; renda de quarentena para os cidadãos que não podem agora ir trabalhar; renda de cuidado para os cidadãos que cuidam de alguém e do meio ambiente; e, por último, mas não menos importante, a renda universal proposta pelo Partido Democrático para os cidadãos pobres, mas também para aqueles que estão se tornando pobres", exemplifica.
Apesar da diversidade de propostas apresentadas hoje para assegurar uma renda mínima aos mais necessitados, Fumagalli adverte que as "propostas correm o risco de se canibalizarem entre si" pelo fato de não levarem em conta que "a verdadeira renda básica não é apenas um instrumento de assistência, mas também de remuneração e de reconhecimento de nossa vida hoje posta em valor". Por isso, argumenta, ao defender uma proposta de transferência de renda, "deve ser usado o atributo 'incondicionado'". E adverte: "Hoje falta a coragem para reivindicar uma única medida de renda incondicionada que incorpore e generalize todas as outras".
Andrea Fumagalli (Foto: Reprodução/Youtube IHU)
Ao analisar os efeitos da crise pandêmica na sociedade, Fumagalli é enfático: "Essa epidemia apagou para sempre a ilusão de que a economia capitalista possa prescindir do Estado". Apesar desta constatação, o economista nos convida a refletir sobre qual deve ser o papel do Estado hoje. "A pergunta que devemos nos fazer, porém, é a seguinte: de que Estado precisamos? Um Estado que atue diretamente no sistema econômico como ator empreendedor (portanto, por meio de processos de nacionalização) ou um Estado que crie as condições de 'bem-estar' para a autodeterminação das pessoas e favoreça a reapropriação coletiva dos bens comuns e dos serviços sociais básicos que foram expropriados para o benefício da especulação financeira?" E ele próprio oferece uma resposta: "Sou mais favorável à segunda hipótese, embora acredite que alguns serviços sociais (justiça, saúde, educação, transporte, infraestruturas de Tecnologia da Informação - TI) devem ser geridos diretamente pelo Estado".
Em sua trajetória acadêmica, há mais de duas décadas Andrea Fumagalli vem questionando a centralidade do capitalismo financeiro e seus efeitos nas democracias liberais, na constituição do trabalho e na vida diária dos cidadãos. No Cadernos IHU ideias No. 246, intitulado "O conceito de subsunção do trabalho ao capital: rumo às subsunção da vida no capitalismo biocognitivo", publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU em 2016, ele menciona que "nos últimos 40 anos, o atual processo de acumulação e valorização capitalista assumiu nomes diferentes", e o mais comum deles é também o mais antigo: pós-fordismo. Esse termo, explica, além de conter "ambiguidades", se caracteriza "pela presença conjunta de mais modelos produtivos", e desde a primeira Guerra do Golfo é possível observar que "as inovações nos campos de transporte, linguagem e comunicação (TICs) começaram a se reunir em torno de um novo paradigma único de acumulação e valorização". Desde então, "a nova configuração capitalista tende a identificar no 'conhecimento' e no 'espaço' (geográfico e virtual) como mercadorias um novo fundamento para as aptidões dinâmicas da acumulação".
Cadernos IHU ideias
Segundo ele, hoje vivemos sob o paradigma de acumulação do capitalismo cognitivo, o qual é constituído de duas novas economias de escala: economias aprendentes, que "estão ligadas ao processo de geração e à criação de conhecimento novo (baseado em novos sistemas de comunicação e tecnologias da informação)", e as economias em rede, que "se derivam das modalidades organizacionais de cada distrito (redes territoriais ou áreas sistêmicas), que não são mais usadas apenas para produção e distribuição, mas, em grau crescente, como veículo de difusão (e controle) de conhecimento e progresso tecnológico".
O paradigma do capitalismo cognitivo tem sido discutido por teóricos como Fumagalli desde o estouro da bolha econômica da internet e suas especulações no início dos anos 2000 e, ainda com mais intensidade, a partir da crise do subprime em 2008 e 2009, ao perceberem que "o novo paradigma cognitivo, por si só, é incapaz de proteger o sistema socioeconômico da instabilidade estrutural que o caracteriza", como ele próprio afirma.
Neste contexto de crises financeiras e da emergência do capitalismo cognitivo, Fumagalli também tem refletido sobre a relação trabalho-salário e a crise da sociedade do trabalho assalariado, na qual a renda universal incondicional surge como uma das formas de garantir a subsistência dos cidadãos. Na entrevista intitulada "O conceito de trabalho é cada vez mais caracterizado pelo 'saber' e é permeado pelo tempo de vida", concedida à IHU On-Line em 2017, ele reconhece que a "crise do trabalho assalariado, contudo, não abre perspectivas de superação da condição laboral; ao contrário, fragmenta-a e deprime-a ainda mais. É sintomático, a esse respeito, a atual tendência à anulação da remuneração monetária de um número crescente de desempenhos laborais diretamente produtivos e não assimiláveis ao arquipélago do trabalho voluntário e ‘livre’ (free)”.
Nessa entrevista, o economista também explicita as principais mudanças que ocorreram no capitalismo após a globalização, dando destaque para três pontos. "O primeiro diz respeito à natureza do processo de acumulação e a consequente valorização que se seguiu, depois do colapso financeiro e dos Produtos Internos Brutos – PIBs no biênio 2008-2009", diz. A crise do subprime ocorrida entre 2008 e 2009, explica, é "resultado de um descolamento entre um processo de exploração de uma atividade laboral ainda interna a uma governança do mercado de trabalho (que previa a existência de uma remuneração cada vez mais precária e comprimida) e um processo de valorização financeira de uma estrutura de propriedade privada que se queria cada vez mais difundida, embora cada vez mais empobrecida".
A crise financeira abriu caminho para o capitalismo biocognitivo. "O prefixo bio, nesse caso, é resolutivo. Ele indica que a acumulação capitalista atual sempre se identifica com a exploração da vida na sua essência, indo além da exploração do trabalho produtivo certificado como tal e, portanto, remunerado. O valor-trabalho deixa cada vez mais espaço para o valor-vida. Trata-se de um processo, ao mesmo tempo, extensivo e intensivo", afirma.
O segundo ponto, acrescenta, "diz respeito à constatação de que o capitalismo biocognitivo é acompanhado por uma aceleração do progresso tecnológico". Neste contexto, ocorre o fenômeno da "hibridação entre máquina e humano", em que a automação propõe substituir o ser humano de algumas de suas funções relevantes. "Os setores da inteligência artificial, as biotecnologias, as nanotecnologias, a construção de tecidos humanos com a experimentação genética, as neurociências, a indústria da elaboração de massas de dados cada vez mais complexos e individualizados (big data) mostram-nos um caminho no qual o devir-humano da máquina se conjuga com o devir-maquínico do humano. Além da dinâmica futura que tais trajetórias vão tomar, mesmo assim rumo à construção de um pós-humano, o que nos interessa observar é como a separação entre homem e maquínico desaparece", pontua. A junção entre homem e máquina também gera efeitos no mundo do trabalho e não só a relação entre trabalho abstrato e trabalho concreto sofre uma torção, mas "a relação entre capital constante e capital variável, entre trabalho morto e trabalho vivo, tende a se modificar cada vez mais até uma nova metamorfose entre capital e trabalho", assegura.
O terceiro ponto, continua, "diz respeito à investigação da nova composição social do trabalho que derivou daí". A impossibilidade de identificar uma composição social de classe homogênea, a coexistência de formas não salariais, de formas de trabalho não pago, de formas de semiescravidão, de formas de trabalho autônomo de terceira geração, de formas de autorrealização e de autoempreendedorismo, "tornam dificilmente codificável tanto a composição técnica quanto política do trabalho", diz. Todas essas transformações, conclui, nos conduzem a refletir sobre a necessidade de "uma nova forma de remuneração que não é definida pela forma 'salário'. Assistimos, assim, a novas modalidades de remuneração do trabalho, caracterizadas por elementos cada vez mais simbólicos, relacionais e imateriais". E acrescenta: "Daí a exigência de inserir no processo de financeirização, de modo cada vez mais difuso, a vida dos indivíduos mediante o devir-renda de porções crescentes do salário".
Diante do crescimento da produção de riqueza no mundo, mas também do aumento das desigualdades, o economista sugere que seja feita uma análise das novas fontes da riqueza e dos rendimentos crescentes no capitalismo biocognitivo, a fim de encontrarmos novas formas de garantir o acesso à renda. "Tais fontes derivam da crise do modelo de divisão técnica e social gerado pela primeira revolução industrial e levado às suas consequências extremas pelo taylorismo e são alimentados pelo papel e pela difusão do saber que obedece 'a uma racionalidade social cooperativa que foge da concepção restritiva do capital humano'. Segue-se daí que é posto em causa o tempo de trabalho imediato como principal e único tempo produtivo, com o efeito de que o tempo efetivo e certificação de trabalho não é mais a única medida da produtividade e a única garantia de acesso à renda", conclui.
Fumagalli também tem refletido sobre como o capitalismo cognitivo se transformou no motor da economia e sua interferência direta na política, sendo uma de suas consequências a privatização dos serviços sociais. Um exemplo disso pode ser visto na crescente privatização dos sistemas de saúde, com o respaldo e incentivo dos governos nacionais. Na entrevista concedida à IHU On-Line em 2010, intitulada "Os impactos da financeirização sobre o sujeito", o economista advertia que os mercados financeiros "representam o lugar onde valoriza-se, ao mesmo tempo, a produtividade intangível e cognitiva e executa-se a privatização dos serviços sociais. Canalizando de modo forçado parte crescente da renda do trabalho (pensões e indenizações, além de renda que, por intermédio do estado social, traduzem-se nas instituições de proteção da saúde e da educação pública), substituíram o Estado como segurador social. Desse ponto de vista, representam a privatização da esfera reprodutiva da vida. Exercitam, portanto, o biopoder".
Outro exemplo da privatização da saúde pode ser visto em nível global na crise pandêmica deste ano. "A privatização do sistema de saúde e o fechamento de unidades de saúde territoriais foram um dos fatores que contribuíram para a velocidade de disseminação da infecção, como aconteceu na Lombardia, no norte da Itália, onde mais de 11.000 pessoas morreram (6% do total mundial!)", relata ao comentar os efeitos da privatização da saúde na Itália durante a pandemia de covid-19. Apesar dos efeitos desastrosos, o economista diz que a crise pandêmica "pode representar uma oportunidade" para que "se tome mais consciência da importância da saúde pública e de um Estado de bem-estar universalista".
Ele diz ainda que "a crise de Covid-19 também é o resultado do modelo de produção do capitalismo contemporâneo e da crise ecológica que o atravessa. A exploração intensiva da natureza, da criação animal intensiva ao desmatamento, está levando a uma ruptura na relação ser humano-natureza, da qual a covid-19 é uma das consequências. Trata-se, em primeiro lugar, de uma crise ecológica e de acumulação econômica que deu origem a uma crise sanitária. Essa crise de saúde terá pesadas repercussões na sociedade humana e, portanto, está destinada a se tornar uma crise social".
Dando sequência à discussão sobre renda básica universal, na semana passada a Profa. Dra. Leda Lavinas ministrou a conferência "Renda Básica Universal e proteção social. Possibilidades de financiamento e coexistência", disponível no canal do IHU no YouTube.
Na próxima segunda-feira, 26-10-2020, o economista francês Gaël Giraud ministrará a palestra "Renda universal e justiça socioambiental. Fundamentos econômicos, éticos e teológicos", que compõe os ciclos "Renda Básica Universal. Para além da justiça social" e "Emergência Climática. Ecologia integral e o cuidado da nossa casa comum", promovidos pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Mais informações sobre o evento que será transmitido às 10h pelo YouTube e pela plataforma Teams podem ser adquiridas aqui.
FUMAGALLI, Andrea. Economia politica del Comune. Sfruttamento e sussunzione nel capitalismo bio-cognitivo [Economia política do Comum. Exploração e subsunção no capitalismo biocognitivo]. (Roma: Derive Approdi, 2017).
_____. Lavoro, male comune. Milão: Editore Mondadori Bruno, 2013. _____. La crisi economica globale. Mercati finanziari, lotte sociali e nuovi scenari politici. Verona: Ombre corte, 2009.
_____. Bioeconomia e capitalismo cognitivo. Verso un nuovo paradigma di accumulazione. Roma: Carocci Editore, 2007.
_____. Il lavoro. Nuovo e vecchio sfruttamento. Milão: Punto Rosso, 2006.
_____. Finanza fai da te. Borsa e risparmi nel mercato globale. Roma: DeriveApprodi, 2001.