21 Outubro 2020
Desenvolvimento e emprego rural e não agrícola, mudanças nos mercados de alimentos e seus efeitos nos sistemas agroalimentares e o papel das cidades médias e pequenas são alguns dos temas em que trabalha há três décadas Julio Berdegué, vice-diretor-geral da FAO e representante regional para a América Latina e o Caribe, desde 22 de abril de 2017.
No marco do Dia Mundial da Alimentação e da Conferência FAO Américas, que reunirá governos de 33 países da América Latina e do Caribe, de 19 a 21 de outubro, Berdegué conversou com DW sobre alguns dos temas que serão abordados neste encontro.
A entrevista é de Judit Alonso, publicada por Deutsche Welle, 16-10-2020. A tradução é do Cepat.
Há 41 anos, todo dia 16 de outubro é celebrado o Dia Mundial da Alimentação com o objetivo de reduzir a fome no mundo. Que evolução houve no alcance desse objetivo?
Este ano, o Dia Mundial da Alimentação coincide com a fundação da FAO, que comemora 75 anos. A FAO foi criada como resposta da comunidade internacional, no final da Segunda Guerra Mundial, para enfrentar os problemas da fome. Em razão de uma grande pandemia, 75 anos depois, enfrentamos uma situação de crise e insegurança alimentar.
Até 2014, nossa região reduziu muito os índices de fome e grave insegurança alimentar. Em 2014, esse ímpeto foi perdido e nos últimos cinco anos regredimos. Nossa projeção é que adicionamos 9 milhões de pessoas, nos últimos quatro anos, na condição de fome, e, se olharmos a situação de insegurança alimentar, estamos com 62 milhões de pessoas na América Latina. Há três anos, tínhamos 51 milhões, ou seja, mais de 10 milhões se somam a esta condição.
As economias da América Latina e do Caribe, nos últimos anos, reduziram sua taxa de crescimento. Na América Latina, não há fome por falta de alimentos, há fome por falta de renda e pela desigualdade econômica sofrida por milhões de pessoas. Quando a economia cai, o emprego diminui, a renda diminui e os índices de fome aumentam em nossa região. A pandemia sem dúvida agravará esta situação. Estimamos que pode haver até 28 milhões de pessoas a mais em risco de cair em uma situação de insegurança alimentar severa ou de fome.
Quais são os países mais afetados por este problema? Que ações a FAO está realizando neles?
Estamos realizando ações concretas em todos os países membros da FAO. Em todos existem níveis de insegurança alimentar. Poucos países apresentam níveis baixos, apenas Uruguai, Cuba e Brasil, antes da crise. Todos os outros países têm problemas de insegurança alimentar.
Um país que nos preocupa muito é a Venezuela, que baixou os índices de fome em 2012, 2013 e 2014, e agora há um retrocesso muito forte. Também vimos, nos últimos três anos, um aumento muito importante na Argentina, um país que é uma grande potência mundial na produção de alimentos. O governo lançou um programa muito ambicioso, em nossa opinião, muito bem elaborado, denominado "Argentina sem fome".
Também nos preocupa muito os países que compartilham o Corredor Seco: Guatemala, Honduras e El Salvador. Os fatores associados à mudança climática têm impacto ali: secas e inundações que se combinaram, nos últimos anos, com uma queda muito acentuada do preço do café, que é um produto muito importante da economia de milhões de famílias.
Cerca de metade da população do Haiti vive em condições de insegurança alimentar severa. É um problema muito estrutural, de muitas décadas e muito difícil de resolver. Finalmente, também é preocupante a situação dos migrantes venezuelanos na Colômbia e no Equador.
Como o recente Prêmio Nobel da Paz concedido ao Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (PMA) pode contribuir para atingir o objetivo de fome zero?
O Prêmio Nobel é um reconhecimento ao trabalho heroico daqueles que vão a lugares extraordinariamente difíceis para que meninos e meninas tenham uma refeição. O prêmio lembra a humanidade, mais uma vez, que não vencemos a fome no século XXI, tendo todos os meios para isso. Sabemos como erradicar a fome, quais são as políticas e medidas, mesmo assim, temos centenas de milhões de pessoas com fome.
É um conjunto de políticas públicas, das quais sabemos que, se aplicadas de forma consistente e com tempo suficiente, acontecerá o que houve na América Latina: os indicadores de fome caem fortemente e rápido. Muitos programas de proteção social. Na América Latina, inventamos programas de transferência condicional e incondicional, como o programa Bolsa Família no Brasil, Prospera no México, que depois se expandiram.
Outras medidas são o apoio à agricultura familiar, programas de desenvolvimento rural e programas de alimentação escolar. Só na América Latina, existem 84 milhões de meninos e meninas que comem nas escolas todos os dias. Essa é uma diferença radical na alimentação infantil.
Por fim, o Prêmio Nobel é um reconhecimento ao multilateralismo, num momento em que ouvimos discursos que clamam que cada país sozinho resolva seus próprios problemas. Problemas como a fome requerem uma resposta multilateral.
O outro lado da moeda da fome é a obesidade, de acordo com o relatório ‘Panorama de Segurança Alimentar e Nutricional de 2019’, a obesidade em adultos na América Latina e no Caribe triplicou, desde 1975, e atualmente afeta um em cada quatro adultos na região. Por que a América Latina é a região onde as vendas de alimentos ultraprocessados mais cresceram?
A alimentação é uma causa muito importante dessa epidemia de sobrepeso e obesidade. Na América Latina, a obesidade mata muito mais pessoas do que o crime, o delito e a delinquência. A que se deve? Mudanças nos sistemas alimentares que nos levaram a comer mal hoje: alimentos pouco nutritivos, pouco saudáveis, muito ricos em gordura, muito ricos em sódio, muito ricos em calorias e açúcares adicionados. São alimentos altamente processados, muito baratos e fáceis de consumir, mas não são nutritivos. E, paradoxalmente, como diz o relatório, verifica-se que a América Latina e o Caribe são a região do planeta onde é mais caro se alimentar de forma saudável.
A América Latina e o Caribe é uma região que produz alimentos suficientes para alimentar os 650 milhões de pessoas que aqui vivem, e ainda nos sobra 200 milhões a mais, para outras regiões do planeta. Entretanto, nós comemos essa comida. Nossos dados indicam que uma refeição saudável, na média mundial, custa 3,75 dólares por pessoa por dia, na América Latina, quase 4 dólares por pessoa por dia. Existem 104 milhões de latino-americanos e caribenhos que nunca poderão pagar 3,98 por pessoa por dia para uma alimentação saudável. Com muita dificuldade, mal podem pagar 1,06 dólares por dia para uma refeição que mal fornece calorias suficientes.
Acaba de ser aprovada no México uma nova lei de rotulagem de alimentos para que as pessoas pelo menos saibam o que estão comendo. Informa ao consumidor que este produto é rico em sódio, rico em gordura, rico em açúcar. Se um produto tiver vários desses símbolos, não pode ser anunciado para crianças, não pode ser vendido em escolas e assim por diante. E isso levou a algo muito positivo. Muitas empresas formulam seus produtos para escaparem dos rótulos. Não há solução para a obesidade e o sobrepeso sem a indústria de alimentos, mas precisamos entender que um esforço significativo deve ser feito para garantir que seus produtos não tenham níveis críticos desses ingredientes.
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“Na América Latina há fome por falta de renda e pela desigualdade econômica sofrida por milhões de pessoas”. Entrevista com Julio Berdegué - Instituto Humanitas Unisinos - IHU