01 Outubro 2020
“Embora Pompeo provavelmente não ganhará nenhum concurso de popularidade no Vaticano agora, não vamos exagerar: não haverá nenhum dano permanente às relações EUA-Vaticano por causa de suas declarações. Tanto o Vaticano quanto os Estados Unidos precisam investir muito para permitir que isso venha a acontecer”, analisa John L. Allen, em artigo publicado por Crux, 30-09-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Alguém precisa dizer isso para o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo: ele certamente encontrou uma forma criativa de fazer com que a pro forma diplomática do Vaticano se tornasse interessante.
Pela publicação recente de um artigo na revista First Things, alertando o papa Francisco e o Vaticano que suas autoridades morais estavam em risco se renovasse o acordo feito em 2018 com a China sobre a ordenação de bispos, Pompeo injetou um senso de disputa de grandes apostas à sua visita, na qual veremos seu encontro com o cardeal italiano Pietro Parolin, o secretário de Estado do Vaticano, e o arcebispo britânico Paul Gallagher, o principal representante de Parolin nas relações exteriores.
Pompeo também fará um discurso de abertura na conferência sobre diplomacia e liberdade religiosa promovido pela Embaixada dos EUA na Santa Sé, na qual Parolin e Gallagher estão na agenda para discursar. (No espírito de divulgação completa, sou moderador de alguns painéis nessa conferência).
Não que haja algum drama sobre se o Vaticano vai renovar o acordo com a China – ficou claro desde o início que esse era o plano. Como se alguém precisasse ser lembrado, o diretor-editorial do Vaticano, Andrea Tornielli, publicou um artigo ontem citando o cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, no sentido de que “dificuldades à parte, parece-me que foi traçada uma direção que vale a pena continuar; então veremos”.
Enquanto a cortina se levanta com o agito de Pompeo no Vaticano, três pontos estão como pano de fundo.
Embora Pompeo provavelmente não ganhará nenhum concurso de popularidade no Vaticano agora, não vamos exagerar: não haverá nenhum dano permanente às relações EUA-Vaticano por causa disso.
Tanto o Vaticano quanto os Estados Unidos precisam investir muito para permitir que isso venha a acontecer.
Do lado do Vaticano, se quer ser a voz da consciência no cenário global e não pode fazer isso sem estar em conversas com as superpotências (ironicamente, é o mesmo motivo pelo qual está tão determinado a renovar seu acordo com a China como uma entrada de relações diplomáticas plenas). Além disso, precisa da ajuda dos EUA em uma série de suas prioridades de política externa, do Oriente Médio à liberdade religiosa ao redor o mundo e além.
Para os EUA, a política externa sempre teve uma tendência moral clara. Os estadunidenses não são como os chineses, que se sentem confortáveis em dizer em voz alta que projetam poder e fecham acordos sem nenhuma motivação aparente além da realpolitik. Os estadunidenses precisam dizer a si mesmos que buscam não apenas a vitória, mas a virtude, e serem vistos como parceiros do principal soft power do mundo é uma maneira de conseguir isso.
Além disso, os católicos são um quarto da população estadunidense, e a religião é um fator poderoso na política doméstica. Detonar laços com o Vaticano inevitavelmente afastaria parte desses católicos – e agradaria a outros, é claro, mas a matemática política diz que ainda vale a pena ter a chance de uma ocasional foto papal.
Os Estados Unidos e o Vaticano têm relações diplomáticas plenas desde 1984, sob o presidente Ronald Reagan, e desde então papas e presidentes sempre tiveram relacionamentos difíceis.
Na verdade, é um problema de “encaixar quadrado no círculo” – os EUA têm dois grandes partidos políticos, um dos quais concorda com 50 por cento do ensino social católico e rejeita a outra metade, e outro que abraça os 50 por cento rejeitados pelo primeiro partido, mas não o resto. Por definição, presidentes de qualquer partido e papas de qualquer agenda terão problemas.
Embora o recente conflito sobre a China seja a expressão mais recente dessas tensões, dificilmente é a mais séria.
Em meados da década de 1990, por exemplo, quando a ONU patrocinou grandes conferências sobre as mulheres e população, nas quais havia uma pressão para reconhecer o “direito” ao aborto no direito internacional, a Casa Branca e o Vaticano estavam em lados opostos. Em um exemplo de como as coisas se tornaram difíceis, o ex-embaixador dos Estados Unidos na Santa Sé, Raymond Flynn, mais tarde descreveria como demorou uma semana inteira apenas para arranjar um telefonema entre João Paulo II e o presidente Bill Clinton.
Em 2003, quando o presidente George W. Bush decidiu ir à guerra no Iraque, o Vaticano foi o principal crítico moral dessa decisão no cenário global. A certa altura, o então embaixador dos Estados Unidos, James Nicholson, trouxe o intelectual católico americano Michael Novak a Roma para defender a guerra, e ele foi praticamente impedido por altos funcionários do Vaticano.
Evidentemente, esses conflitos ocorreram sob presidentes democratas e republicanos, respectivamente.
Em outras palavras, por mais que seja divertido especular sobre o que Pompeo, Parolin e Gallagher devem dizer a portas fechadas, essa não será a história verdadeira sendo feita. Esse é simplesmente outro solavanco na mesma estrada pedregosa.
Pompeo é, sem dúvida, sincero em sua convicção de que o Vaticano está desperdiçando sua credibilidade moral – embora, com toda a honestidade, as autoridades do Vaticano tenham sido generosas em não apontar que ele serve a um governo que fechou seu próprio acordo comercial maciço com Pequim em janeiro, em um coro de críticas contraditórias, estranhamente semelhantes às mensagens expressadas no artigo de Pompeo.
Ainda assim, o histórico de direitos humanos e liberdade religiosa da China é péssimo, piorou ainda mais nos dois anos desde que o acordo com o Vaticano foi assinado, e essa é, sem dúvida, a principal razão pela qual Pompeo se manifestou.
Ainda assim, com uma eleição daqui a um mês, nenhum alto funcionário do governo provavelmente dirá ou fará qualquer coisa sem pelo menos considerar as consequências políticas. Diante disso, é revelador que o governo Trump aparentemente não sinta que há qualquer preço político a se pagar por repreender publicamente o papa Francisco.
Com toda a honestidade, o tipo de eleitor católico que Trump está procurando provavelmente não concorda com Francisco sobre a China também, ou uma série de outras coisas. Por esse motivo, ver seu principal diplomata perseguir o Papa e o Vaticano provavelmente os torna mais propensos a votar em Trump, e não menos.
Essa é uma dinâmica tristemente previsível da situação polarizada em que nos encontramos, mas não deixe a ironia se perder: à beira de uma eleição em que as pesquisas mostram que Trump está perdendo e precisando correr atrás de sua base religiosa, um presidente estadunidense decide que repreender o Papa não prejudicará e pode lhe ajudar com o “voto católico”.
Em outras palavras, sejam bem-vindos ao outro lado do espelho.
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Enquanto Mike Pompeo chega a Roma, nós atravessamos o espelho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU