26 Agosto 2020
"Não devemos fingir que nada acontece e mesclar de forma irresponsável temas da política regional com os domésticos libaneses. O conjunto de ameaças externas ao Líbano é enorme: Arábia Saudita e EUA, mais os ataques constantes de Israel e as pretensões tutelares da França. Também não se pode negar que a agenda da Síria e Irã incide no país, e nem sempre de forma positiva. Por mais relevante que seja a posição iraniana de defesa da libertação da Palestina e no apoio da resistência libanesa, o passo adiante se faz necessário", escreve Bruno Lima Rocha Beaklini, militante socialista libertário de origem árabe-brasileira e editor dos canais do Estratégia & Análise, a análise política para a esquerda mais à esquerda.
Parece que finalmente as grandes emissoras de TV do Brasil “redescobriram” o Líbano e nossa gigantesca descendência. A enorme colônia foi observada através de um conjunto de virtudes além do embranquecimento de uma classe média, média alta e frações de classe dominante cujos mais notáveis membros formam a “vergonha dos árabes”. No texto que segue fazemos uma correlação entre a missão brasileira para a terra ancestral, o papel da solidariedade à Causa Palestina e uma razoável proposta de arranjo e aproximação diplomática, contando tanto com capitais emigrados como os recursos humanos da diáspora e sua descendência. Desenvolvemos o texto como um esforço, grão de areia na (re)construção da tão sonhada esquerda árabe-brasileira.
No dia 04 de agosto de 2020 houve uma gigantesca explosão no Porto de Beirute, indo pelos ares uma absurda quantidade de quase três toneladas de nitrato de amônia. O fator que acionou o material explosivo estocado de forma irregular e em área densamente povoada, além de muito relevante economicamente, até agora não se pode afirmar. Foi acidente ou ataque de Israel, não se sabe; mas com certeza houve negligência, muita negligência. O fato, inequívoco e irrefutável é: o sistema sectário, o confessionalismo político - herança francesa dos tempos do Protetorado parcialmente revivido pelo presidente francês Emmanuel Macron e sua missão “de amizade” - está esgotado. O país existe porque ao menos quatro grandes agrupamentos culturais-religiosos (cristãos do oriente de maioria maronita, sunitas, xiitas e drusos) dividem entre si os postos de poder e os cargos-chave do frágil aparelho de Estado. O Acordo de Taif, em 1989, serviu para sair do impasse da guerra fratricida, mas definitivamente, para governar não serve. Este país sectário que não dá mais dessa maneira tem na sociedade civil razoavelmente auto-organizada e com uma ira nos protestos semelhante ao que ocorre nas ruas da Grécia, a sua maior esperança.
Eis o paradoxo. Para não cair em nova guerra civil, o Líbano precisa do bom convívio entre ao menos um dos três “partidos” de maioria maronita e o partido hegemônico xiita, o Hezbollah (que supera e muito o poder de alcance da outra grande força shia, a Amal, também sua aliada). De preferência, que a composição deste governo traga consigo algumas parcelas de representação, como um acordo de convivência com o maior partido druso (comandado pelo clã Jumblatt, o PSP), alguma força armênia, composição laica e outras agrupações menores. Em tese, a Aliança de 8 de março dá conta de todos esses fatores.
Mas, de novo, embora seja muito “menos pior” que a Aliança de 14 de março (de fato, a união dos clãs Hariri, sunita, e Gemayel, maronita), opera como força de contenção da ira popular, para além do arranjo confessional e de favores na base do familismo. Tanto há alguma forma de entendimento entre as forças tradicionais que o passo seguinte à tragédia pela negligência foi criar um gabinete de “salvação” e uma lei marcial proibindo os protestos mais que justos. Reforço a ideia: um pacto de convivência evita uma guerra fratricida entre os líderes sectários. Mas, ao mesmo tempo, a governabilidade no sectarismo é a principal razão do descontentamento da massa que protesta em Beirute e sua gigantesca região metropolitana.
E fica a dúvida. Como ser solidário com o Líbano sem entrar nos temas centrais: - como “preservar” o arranjo do confessionalismo político, na verdade reforçado pelo Acordo de Taiff em 1989? – De que forma ajudar o Líbano sem denunciar as agressões de Israel que podem voltar a ocorrer a todo o momento? Por fim, o tema permanente dos refugiados, tanto os palestinos como os vindos da internacionalizada guerra civil da Síria. Sem entrar nesses três temas, o movimento de aproximação da diáspora árabe-libanesa com a terra dos cedros é importante, mas segue apenas tangenciando os problemas centrais.
Não se trata de denúncia, mas de mera constatação. “Normalizando” o crime da ocupação de um país estrangeiro, o programa Esporte Espetacular (revista eletrônica semanal de cobertura esportiva da Rede Globo) manifestou apoio de fato a Ocupação da Cisjordânia e a Anexação da Palestina. Isso ocorreu em matéria que foi ao ar (creio que reprisada), no domingo 26 de julho de 2020.
O repórter Clayton Conservani foi protagonista de uma reportagem da chamada "Maratona Bíblica", organizada pelo Estado de Israel e cujo trajeto se passa mais de 70% na Cisjordânia. A Rede Globo mentiu duas vezes. Primeiro ao não contextualizar a presença de soldados ocupantes em ato de ilegalidade internacional, ferindo a já limitada soberania da Autoridade Nacional Palestina. Ainda teve a cara de pau de afirmar que a área está em "disputa". Na sequência, em lindo cenário de montes de oliveiras, usa o nome de Samaria, o mesmo empregado pelo Comando Central das Forças de “Defesa” de Israel (IDF) buscando uma justificativa bíblica para ferir o direito internacional e arrecadar mais apoio da direita pentecostal dos EUA.
Mesmo quando se posiciona de forma menos incorreta no Brasil, a Globo é a Globo e segue mentindo no noticiário internacional. Já a família Saad, controladora do Grupo Bandeirantes, serve para que mesmo em relação a Causa Palestina e a Unidade Pan-arabista? Somos 16 milhões de árabes descendentes para aturar isso todo dia?
Falamos acima, no subtítulo da “libanidade”, da forte cobertura da emissora líder, a TV Globo, assim como o correto posicionamento solidário – ou de aparente solidariedade – ao Líbano através da família controladora do conglomerado de comunicação criado na esteira do projeto político de Adhemar de Barros. Infelizmente, abundam omissão e desinformação, incluindo o “pop star” Guga Chakra – orientalista do sistema – que dá palpite sobre quase tudo menos o mais importante. No caso da Questão Palestina e da cobertura jornalística que deveria ser correta – aplicando minimamente o critério noticioso, de valor notícia – os ataques de Israel ao Líbano (1978, 1982, a longa ocupação de 1985 a 2000, bombardeios de 2006, 2009, 2017, 2019, 2020) e o mesmo se dá nos ataques contra a Síria e a ocupação ilegal das Colinas de Golan. Mentem, omitem, divergem. Repito: somos 16 milhões para aturar isso?
Parece que os "notáveis" da colônia foram para o Líbano coordenados por dois execráveis golpistas, Paulo Skaf e Michel Temer (ver a lista completa aqui). O ex-presidente ilegítimo se agarrou nesta oportunidade e levou consigo até seu marqueteiro pessoal. Os doze integrantes – todos homens por sinal - levaram dois compromissos de apoio direto: um primeiro avião chegou com medicamentos e grãos (em 13 de agosto), outro com a comitiva além de um navio com quatro toneladas de arroz, uma semana depois. Houve um acórdão visível da aliança de 14 de março (Hariri-Gemayel-Chamoun-Geagea) em terras paulistas e a partir daí a delegação oficializada pelo imbecil fascistoide que anda com a bandeira do Estado inimigo (Bolsonaro e sua bandeira de Israel a tiracolo) só reforça as duas Alianças de Março e nada mais concreto, como o engajamento das forças vivas da descendência árabe-brasileira com ênfase nós árabes de origem libanesa.
O problema de fundo está na diplomacia brasileira. Se o Itamaraty tivesse um comando à altura de sua história, proporia um grupo de trabalho comprometendo o Brasil com um aporte da oferta de grãos que nossa ancestralidade necessita. O arroz abundante poderia ser o começo de um Banco de Alimentos com lastro e garantias em um banco cooperativo captando capitais emigrados e tributando "moralmente" a bilionários como os Slim Helú (Grupo Claro, de família maronita). Expertise de sobra tem o Banco da Palestina (ver aqui), com capitais de origem também vinculados na maior colônia de "baisanos" palestinos no Chile. O fato desta colônia chilena ser de ampla maioria cristã poderia tranquilizar aos ex-falangistas ainda na vassalagem psicológica da França. Um aporte de uma entidade bancária externa poderia dar a tranquilidade necessária para a militância da diáspora que olha com muita desconfiança ao sistema sectário. Um fundo específico com aportes e cotas das colônias e o dinheiro entrava limpo, sem carimbos de esquemas Ponzi, elisão fiscal, evasão de divisas e outras formas suspeitas de gestão financeira (ver aqui).
Uma solução fácil como essa colocaria Brasil, Chile e junto à Argentina no miolo dos eixos diplomáticos do Oriente Médio novamente, pela porta da frente e dando um alívio para a sociedade civil libanesa que quer ir além do arranjo de 1989.
Pelo visto, não faltam ideias razoáveis, mas carece de condições políticas no MRE brasileiro para implementar o óbvio. Cabe aos brimos e brimas, a brimarada por esquerda para forçar alguma saída razoável que não seja exportar a "vergonha dos árabes daqui" para "referendar a mesquinharia de lá".
Não devemos fingir que nada acontece e mesclar de forma irresponsável temas da política regional com os domésticos libaneses. O conjunto de ameaças externas ao Líbano é enorme: Arábia Saudita e EUA, mais os ataques constantes de Israel e as pretensões tutelares da França. Também não se pode negar que a agenda da Síria e Irã incide no país, e nem sempre de forma positiva. Por mais relevante que seja a posição iraniana de defesa da libertação da Palestina e no apoio da resistência libanesa, o passo adiante se faz necessário. Geopolítica é importante, mas a luta popular deve ser superior.
É hora de incentivar Bella Ciao em árabe, canção da revolução civil e anti sectária. Antes que pensem bobagem de incentivo a uma “revolução colorida para troca de regimes a favor do Ocidente”, tenho todo o respeito pelo empenho do Hezbollah em expulsar as forças invasoras israelenses, mas o governo Aoun, onde a força político-militar liderada por Hassan Nasrallah faz parte, manteve péssimos serviços públicos e não conseguiu sequer organizar a coleta de lixo! Sendo que essa é a parte “menos ruim” da política profissional libanesa, imagina sob controle de banqueiros ex-falangistas?!
Logo, viva a sociedade civil auto-organizada do Líbano, já que a única saída dos povos é protagonizar sua própria luta. E, de preferência, que “as ruas árabes” voltem a entoar a unidade pan-arabista na soberania absoluta do Líbano, a libertação da Palestina e o confederalismo, nos termos que a luta conseguir alcançar!
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O Brasil redescobre seu vínculo com o Líbano. Três temas, um apontamento e uma conclusão lógica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU