29 Junho 2018
Será chamada a grande traição. E faz muito tempo que acontece. Mas, a sombria mensagem de Washington aos combatentes opositores a Assad no sul da Síria, que não devem esperar ajuda do Ocidente em sua luta posterior contra o regime de Assad ou os russos, figurará algum dia nos livros de história. É um ponto de inflexão na guerra da Síria, uma vergonhosa traição, caso pertença aos restos do Exército Sírio Livre e seus acólitos ao redor da cidade de Deraa, e uma vitória a mais para o regime de Assad em sua ambição de retomar tudo da Síria rebelde.
A reportagem é de Robert Fisk, publicada por Página/12, 28-06-2018. A tradução é do Cepat.
Os mísseis russos e as bombas sírias já estão apontando para o sul e o leste de Deraa e para fora de Quneitra e Sweida, depois que os combatentes da oposição rejeitaram uma paz negociada, na semana passada. Os refugiados fogem novamente das cidades. Contudo, as palavras da mensagem estadunidense aos combatentes, publicadas pela Reuters e até agora não negadas pelos Estados Unidos, são sombrias e sem esperança.
“Não deveriam basear suas decisões na presunção ou na expectativa de uma intervenção militar nossa. No governo dos Estados Unidos, compreendemos as difíceis condições que enfrentam e ainda se aconselha aos russos e ao regime sírio que não empreendam uma medida militar que viole a zona de desescalada”.
Quando Washington “entende as difíceis condições” que seus milicianos aliados enfrentam e diz que “aconselha” aos russos e sírios a não violar um cessar-fogo – que foi ideia de Moscou em primeiro lugar -, sabe-se que os estadunidenses estão retirando o apoio a outro grupo de aliados. Mas, os Estados Unidos também se dão conta de que seus milhões de dólares em treinamento e armas foram passados a al-Nusra – aliada a al-Qaeda na infâmia do 11-S – e que a frente al-Nusra tem aldeias e posições nas redondezas de Deraa, território nominalmente nas mãos dos conhecidos “moderados” da FSA (cuja força mítica, recordarão, uma vez foi avaliada em 70 bilhões de libras por David Cameron).
Nem o Hezbollah e nem a relativamente menor Guarda Revolucionária iraniana parecem estar envolvidos na batalha pelo sul da Síria; e tenham a segurança de que os estadunidenses e os russos, e portanto o governo sírio, acordaram que isto deveria ser uma ofensiva russo-síria. Tanto Vladimir Putin como quem acredita que fala em nome de Donald Trump devem ter assegurado aos israelenses que esta será uma batalha interna e que não colocará em perigo as Colinas de Golã sírias ocupados por Israel. Supõe-se que o chamado Centro de Operações Militares em Amã (MOC, siglas em inglês) deve armar e financiar o grupo de milícias que ainda lutam no norte da fronteira jordana. Mas, não mais.
Os israelenses até agora atacaram objetivos sírios e iranianos na Síria, mas nunca o culto islamista do Estado Islâmico, nem a al-Nusra/al-Qaeda. Os Estados Unidos, desesperado por não ter conseguido derrotar Assad, agora parece ter abandonado a oposição armada ao governo de Damasco, presumivelmente aconselhando Israel para que regresse ao status quo no Golã que existia antes da guerra síria, quando as forças israelenses e sírias estavam separadas por uma zona de defesa da ONU; é preferível isso que se arriscar a um tiroteio com o Irã ou, de fato, com o exército sírio.
O MOC, segundo um ex-combatente da oposição em Damasco, elegeu controlar todas as atividades rebeldes – em teoria, a FSA – e especificamente se negou a ajudar, há quatro anos, quando os combatentes na capital buscaram morteiros e artilharia para atacar o palácio presidencial. Segundo a fonte, oficiais do MOC – um comandante britânico e um oficial saudita – ofereceram apenas um reabastecimento de armas pequenas. Mas, isto foi apenas uma advertência do que viria. Desde então, os curdos aprenderam o que isto significa no norte da Síria.
Eles, é claro, beberam duas vezes do vil cálice da traição. Kissinger se serviu dele quando fez a paz entre Saddam Hussein e o xá do Irã em 1975, cortando uma operação da CIA de 16 milhões de dólares para ajudar os curdos a atacar o ditador iraquiano. Depois, os estadunidenses viram como Saddam destruía os curdos, em 1991, depois de lhes dizer que se levantaram contra o regime de Bagdá, após a libertação do Kuwait.
A Síria teme que os israelenses agora criem sua própria “zona de defesa” debaixo do Golã, similar em estilo, armamento e crueldade à antiga zona de ocupação de Israel no sul do Líbano. Isto durou 22 anos, mas se desmoronou quando a milícia libanesa local de Israel, o Exército do sul do Líbano, tão ineficiente, indigno de confiança e ocasionalmente tão fictício como o Exército Sírio Livre, retirou-se junto com os israelenses em 2000.
No outro lado do mapa da Síria, no entanto, é o poder do Ocidente o que agora parece estar em retirada. Está disposto a dar as costas a seus antigos aliados no sul da Síria e no norte. Então, a Rússia é a vencedora (assim como Assad) e todas as frágeis milícias que ficam, em Idlib, ao longo da fronteira turca e certamente ao sul, estão condenadas. As instruções dos Estados Unidos a seus aliados na redondeza de Deraa – “a rendição” poderia ser o resumo melhor – podem se apresentar como uma pequena vitória: Washington pode afirmar que manteve o Irã distante de Israel. Mas, também significará que os Estados Unidos e a OTAN abandonaram a derrubada da família Assad.
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Síria. Vergonhosa traição - Instituto Humanitas Unisinos - IHU