19 Agosto 2020
"Justamente em um contexto de crise econômica, uma das estratégias do capital para recuperar a taxa de lucro consiste em privatizar ecossistemas e transformar 'o vivo' em mercadoria”, escreve Eduardo Camín, jornalista uruguaio credenciado na ONU-Genebra, analista associado do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica, em artigo publicado por CLAE, 16-08-2020. A tradução é do Cepat.
A transição para uma economia de zero emissões de carbono poderia criar 15 milhões de novos empregos na América Latina e no Caribe até 2030. Para apoiar uma recuperação sustentável da Covid-19, a região precisa urgentemente criar empregos decentes e construir um futuro mais sustentável e inclusivo.
Um estudo pioneiro, realizado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID e a Organização Internacional do Trabalho - OIT, revela que a transição para uma economia de zero emissões causaria o desaparecimento de cerca de 7,5 milhões de empregos no setor energético gerado pelos combustíveis fósseis, extração de combustíveis fósseis e produção de alimentos de origem animal.
No entanto, diz o estudo, esses empregos perdidos são mais do que compensados por novas oportunidades de emprego: seriam criados 22,5 milhões de empregos na agricultura e na produção de alimentos procedentes de plantas, energia renovável, silvicultura, construção e manufatura.
O relatório destaca o potencial existente, durante essa transição, para criar 15 milhões de empregos, até 2030, em setores como a agricultura sustentável, silvicultura, energia solar e eólica, manufatura e construção.
Por meio de medidas projetadas de maneira adequada para garantir que esses empregos sejam decentes e que aqueles que saiam perdendo na transição recebam proteção e apoio, os planos de recuperação também podem interromper a emergência climática, na medida em que impulsionam o crescimento, enfrentam a desigualdade e avançam para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Coincidência ou não, a Comissão Econômica para a América Latina - CEPAL, órgão dependente da ONU, por meio de sua secretária executiva Alicia Bárcena, fez um apelo ao aprofundamento da integração na América Latina, afirmando que é “fundamental para sair da crise econômica resultante da pandemia, que levará o comércio exterior da região a despencar 23%, em 2020, o maior número em uma década” (…).
“O volume do comércio da região cai muito mais do que o comércio mundial, é algo que temos que olhar com atenção. É preciso fortalecer os blocos regionais e resgatar a visão de um mercado latino-americano integrado”, apontou Bárcena.
Em julho passado, a CEPAL estimou que o Produto Interno Bruto (PIB) regional cairá este ano 9,1% e que a taxa de desemprego aumentará para 13,5%, por causa da pandemia. Trata-se da pior contração da atividade econômica, desde que se tem registros, e levará o número de pessoas em situação de pobreza de 185,5 milhões, em 2019, para 230,9 milhões, em 2020, o que equivale a 37,3% de população regional.
A América Latina e o Caribe, com 626 milhões de habitantes e considerada a mais desigual do mundo, enfrenta a pandemia em um momento de fragilidade de sua economia, com um crescimento que mal atingiu a taxa de 0,1%, no ano passado.
É verdade que a devastação da Covid-19 forçou famílias, empresas e governos a repensar como se relaciona o ambiente natural com suas economias e sociedades. Hoje, os déficits de trabalho decente, as desigualdades e a dependência das exportações de combustíveis fósseis tornam a América Latina e o Caribe particularmente suscetíveis aos efeitos sociais e econômicos da pandemia.
Em resposta à pandemia, o estudo conjunto do BID-OIT propõe que uma transição justa para zero emissões possa corrigir os efeitos econômicos e sociais adversos da crise global e, ao mesmo tempo, oferecer uma oportunidade de criar empregos e enfrentar a desigualdade e impulsionar o crescimento inclusivo.
Descarbonizar a economia, ou chegar a zero emissões de carbono, significa reduzir as emissões de carbono das atividades humanas, tal como a utilização de combustíveis fósseis, e equilibrar as emissões restantes, por exemplo, plantando árvores em grande escala. A América Latina e o Caribe podem alcançar prosperidade livre de carbono por meio de ações imediatas e paralelas em torno de cinco pilares (BID e DDPLAC, 2019):
- Eliminar gradualmente a geração de energia a partir de combustíveis fósseis e substituí-la por fontes livres de carbono, como energia eólica e solar;
- Utilizar eletricidade em vez de combustíveis fósseis para transporte, preparação de alimentos e aquecimento;
- Aumentar o transporte público e o não motorizado;
- Deter o desmatamento e plantar árvores, o que exigirá uma mudança na alimentação, substituindo os alimentos de origem animal por alimentos de origem vegetal;
- Reduzir os resíduos em todos os setores, reciclar materiais e começar a usar materiais de construção sustentáveis, como a madeira ou o bambu.
As transformações necessárias vão além da primeira rodada de Contribuições Determinadas a Nível Nacional (NDC, em sua sigla em inglês) que os países apresentaram, mediante o Acordo de Paris.
É de amplo conhecimento que as NDC são insuficientes para alcançar zero emissões até 2050, bem como para atingir o objetivo geral do Acordo de Paris: limitar o aquecimento global entre 1,5 a 2 graus acima dos níveis pré-industriais.
O estudo aponta que a descarbonização também traz benefícios imediatos, além do fato de que a energia renovável costuma ser mais barata do que as alternativas baseadas em combustíveis fósseis e é uma solução para levar energia para áreas rurais remotas e atender às populações pobres e marginalizadas.
O transporte público eficiente pode aumentar a produtividade do trabalhador e reduzir os efeitos socioeconômicos e de saúde da poluição do ar, ruído e acidentes. E podemos mudar as dietas das populações com menos carne e laticínios mais saudáveis.
A impertinência do realismo mágico reaparece em nosso subcontinente, nesse voltar ao começo, nesse crime perfeito que constitui o sistema da dívida externa. Novamente, o quintal é convocado para o laboratório do ecossistema, cujo pano de fundo é o espectro do desemprego em massa.
Desta forma, somos lembrados de que os organismos internacionais proporcionam um marco para construir um futuro com melhores empregos, maior equidade e um ambiente saudável. Sem dúvida, é importante levar em conta o caráter cada vez mais grave dos desequilíbrios ecológicos, o avanço da erosão dos solos e também os efeitos climáticos.
A oportunidade econômica, graças aos seus ricos recursos e à relativamente baixa pressão populacional, torna a região bem equipada para fazer uma transição para zero emissões.
Mas sob uma torrente de palavras, de promessas, descobre-se a irracionalidade da exploração do trabalho para devastar o planeta em nome da liberdade de mercado. Na realidade, precisamos estar atentos porque essas retóricas em momentos de muita vulnerabilidade na região acontecem longe do habitat natural dos povos e caminham lado a lado com a política de fatos consumados.
A grande maioria dos compromissos assumidos até agora em relação à mudança climática é de médio e longo prazo, fixando metas para anos como 2030 e 2050, mas isso não significa que não seja necessário agir imediatamente. Paradoxalmente, entre os países que se comprometeram a descarbonizar suas economias até meados do século, não estão presentes nem os Estados Unidos, nem a China e a Índia, os estados com maior volume de emissões do mundo.
Os interesses que se escondem por trás do poder financeiro global e do sistema de dívida, em sua posição dominante, sempre foram variados. As pesquisas para o desenvolvimento de energias "limpas", adjetivadas como alternativas, renováveis e de zero emissão, desempoeiram tratados que o núcleo central dos países ricos evita, como resposta ou pretexto dentro do marco de uma economia social de mercado globalizada.
A elite política e as empresas transnacionais, donas da produção de energia, estão em busca de novos mercados, com empresários comprometidos com o futuro das novas gerações. Mas a realidade é mais prosaica, pois são múltiplas as empresas privadas que veem no aquecimento do Planeta um grande negócio e por isso promovem estudos e megaprojetos no campo das energias renováveis com o único desejo de obter dinheiro em troca de promessas.
Um exemplo claro é precisamente a América Latina. Seus promotores são aqueles que conduziram à situação de crise em que nos encontramos: grandes empresas transnacionais, com o apoio ativo de governos e instituições internacionais, compartilham um bom pedaço do bolo, da Patagônia ao Orinoco, passando pelo Caribe, a Amazônia e a floresta subtropical.
Aquelas empresas que monopolizam o mercado de energia (Exxon, BP, Chevron, Shell, Total), do agronegócio (Unilever, Cargill, DuPont, Monsanto, Procter & Gamble), o farmacêutico (Roche, Merck, Bayer), o químico (Dow, DuPont, BASF) são os principais motores da economia verde. Seu sistema se fundamenta no consumo atrelado à rentabilidade. Procuram tirar o máximo proveito da energia, seja solar, eólica, aquífera ou proveniente da biomassa.
Uma das habilidades do capitalismo é transformar um problema em um ativo financeiro, com o objetivo de ganhar dinheiro. Seja tangível como a água ou invisível como o dióxido de carbono.
Sem dúvida, o verde vende, mas está imerso em uma economia que, ao contrário do que seu nome sugere, não tem nada de “verde”, além da cor dos dólares que aqueles que a promovem esperam ganhar.
Mas essa lógica de novos/velhos estudos fazem parte de sua maquiagem. Essa ideia de progresso linear, típica da fase atual do capitalismo, deve ser questionada, pois a partir dela a ordem política atual levanta seu mito de irreversibilidade histórica.
É que a nova ofensiva do capitalismo global para privatizar e comercializar massivamente os bens comuns tem na economia verde seu maior expoente e principal sócio. Justamente em um contexto de crise econômica, uma das estratégias do capital para recuperar a taxa de lucro consiste em privatizar ecossistemas e transformar “o vivo” em mercadoria.
Às vezes, o desejo de acreditar é tão poderoso que desloca os critérios usuais do realismo e da lógica. Independentemente das fontes de comunicação, ou de seu prestígio, assistimos a um novo ataque aos bens comuns do planeta, legitimando algumas práticas de uma economia que se pinta de verde, mas que em definitivo se mancha de vermelho.
Tememos muito que os cantos de sereia de zero emissões tragam muita dívida, “soberana” que soa melhor.
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Zero emissões de carbono, pandemias neoliberais, sofismo ecológico e dívidas “soberanas”. Artigo de Eduardo Camín - Instituto Humanitas Unisinos - IHU