28 Julho 2020
Um livro de Oswald Bayer investiga sinteticamente a grande quantidade de escritos teológicos do frade agostiniano Martinho Lutero. Nos textos tardios, emerge a sua dura aversão aos judeus, vistos como inimigos da Palavra de Deus.
A opinião é do cardeal Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 26-07-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em 1991, o historiador estadunidense Martin E. Marty, da Universidade de Chicago, renomado estudioso do fundamentalismo cristão, escrevia que, naquela data, ele havia registrado no mundo nada menos do que 21.104 denominações “protestantes”: elas aumentavam em pelo menos cinco novas unidades a cada semana.
Trinta anos depois, não somos capazes de quantificar esse fenômeno que, apesar das extinções, certamente revelará um saldo ativo. No entanto, é importante se desembaraçar nesse delta ramificado e subir novamente o rio, superando todas as curvas e os desvios para alcançar a fonte genuína principal, a da Reforma inaugurada pelo frade agostiniano alemão Martinho Lutero (Eisleben, Saxônia-Anhalt, 10 de novembro de 1483 – 18 de fevereiro de 1546), através de uma trilogia de etapas constitutivas: a sua chamada “experiência da torre” (1513-1514), a fixação das 95 teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg em 1517, a basilar “Confissão de Augsburgo” de 1530. Também se deve reconhecer que, muitas vezes, essas filiações confessionais subsequentes conservam muito pouco das águas primordiais da Reforma.
A literatura sobre Lutero é interminável, assim como a sua produção teológica foi imponente: a edição crítica das “D. Martin Luthers Werke”, publicada pelo editor Hermann Böhlau, de Weimar, a partir de 1883, durante um século inteiro até 1983, inclui 60 volumes, aos quais se somaram, até 2007, nada menos do que 12 volumes de índices.
Deve-se aproximar de tudo isso seções específicas editadas à parte, referentes ao epistolário (13 volumes, dois de suplementos, três de índices), a Bíblia alemã (15 volumes) e os “Discursos à mesa” (seis volumes).
Percorrer esse oceano textual é uma tarefa árdua, especialmente quando se deve extrair dele um suco temático disponível a leitores comprometidos, mas não estritamente especialistas.
Foi o que fez Oswald Bayer, professor emérito da Universidade de Tübingen, com a sua síntese sobre a “Teologia di Martin Lutero”, publicada em alemão em 2007 e traduzida agora por Franco Ronchi para a editora valdense Claudiana, de Turim.
O autor confessa na abertura: “Neste livro, confluem 40 anos de trabalho sobre e com Lutero. Esse patrimônio pode ser comparado a uma cinemateca dentro qual se pode escolher as peças a serem projetadas durante as minhas aulas na Faculdade de Teologia da Universidade de Tübingen”. Assim se explica o caráter didático do ensaio e, portanto, também a sua utilidade para um público bastante amplo.
Uma tarefa árdua, não só pela quantidade das páginas luteranas a serem examinadas, mas também pela sua polimorfia, que inclui os gêneros mais díspares, quase criando uma biblioteca muito heterogênea (há até poesias, hinos, fábulas), bem diferente, por exemplo, da arquitetura em catedral da “Summa Theologiae” de Tomás de Aquino.
Neste ponto, só podemos delinear o mapa adotado por Bayer, definido de acordo com um díptico de portas, não estritamente paralelas e homólogas, porém.
A primeira tábua, de fato, é uma espécie de guia preliminar para não naufragar o navegador no mar textual de Lutero: indicam-se as noções capitais a serem sempre mantidas como bússola, sobretudo no que diz respeito à estrutura básica da teologia do Reformador e à sua hermenêutica das Sagradas Escrituras.
Assim equipados, pode-se enfrentar a segunda tábua do díptico, a mais vasta e marcada por uma dezena de registros temáticos específicos. São capítulos interessantes, porque captam as encruzilhadas do pensamento teológico luterano: da relação entre Igreja, economia e política, entre poder espiritual e regime secular, até a antropologia, onde nos deparamos com a famosa identificação do “servo-arbítrio”, ou seja, da natureza humana radicalmente corrupta; a ela, contrapõe-se a poderosa teofania da graça que salva “por meio do Filho Jesus Cristo, nosso Senhor”; da dialética entre fé e obras, chegamos à Igreja com os sacramentos e, sobretudo, o ministério da Palavra, enquanto, no horizonte, eleva-se o afresco último da escatologia.
Naturalmente, não podemos aprofundar tal perspectiva tão majestosa. Anexaremos apenas um pequeno acréscimo sobre um detalhe dessa visão que vai da criação ao fim da história. Ele diz respeito aos escritos tardios de Lutero contra os judeus, vistos como inimigos da Palavra de Deus, rotulados com “julgamentos absolutamente insustentáveis”, como escreve Bayer, que devem ser contextualizados e desmistificados, porém. O que, no entanto, nem sempre aconteceu na história posterior à Reforma (obviamente um tratamento à parte merece o antijudaísmo católico).
É o que está documentado em um volume muito articulado de um professor sueco que ensina em Uppsala, Anders Gerdmar, que já havia se capacitado no exame da exegese bíblica sob o nazismo e pós-Auschwitz. O título do seu ensaio é lapidar, “Bíblia e antissemitismo teológico”, enquanto o âmbito em exame é o alemão, a partir do século XVIII iluminista até o advento do Terceiro Reich.
É um desfile de autores cujos textos, em muitos sentidos, foram fundamentais para a exegese, sobre os quais nós, cultores das ciências bíblicas, estudamos, que às vezes demarcaram marcos e que, muitas vezes, citamos nas nossas bibliografias como referências necessárias. Certamente, não faltam personagens de destaque mais geral, como o filósofo Schleiermacher, cujo discurso sobre a religião incrusta justamente o judaísmo como uma pérola negra, visto como o estandarte de um particularismo estreito.
Assim também se encontra novamente aquela espécie de neolítico da cristologia a-histórica representada pelos vários Strauss, Baur, De Wette, mas também não faltam os oásis onde se reconhece uma certa continuidade entre judaísmo e cristianismo, com a inserção de Israel na história da salvação (entram em cena nomes relevantes como Tholuck, Beck, Delitzsch, Strack).
Mas, com a irrupção da “nova Alemanha” nazista, eis que entram em cena – entre os muitos que são levados em consideração, muitas vezes com atitudes ambíguas como a do célebre Rudolf Bultmann (1884-1974), suspenso “entre liberalismo e antijudaísmo” – alguns altíssimos expoentes da exegese que se erguem em defesa de teses desconcertantes, apesar da sua extraordinária competência judaica.
Um retrato completo é reservado para Gerhard Kittel (1888-1948), o artífice daquele “Grande Léxico do Novo Testamento” (traduzido para o italiano pela Paideia, da Bréscia), que está em todas as bibliotecas teológicas privadas e públicas: ele havia se dedicado ao serviço da Judenfrage nazista, fundamentando teoricamente as razões para combater o Unheil, a doença judaica.
Os horrores infligidos aos judeus seriam um efeito coerente da maldição lançada sobre eles por Deus, embora se devesse reconhecer que judaísmo e cristianismo são inconciliáveis entre si ou, melhor, alternativos, com o resultado – sustentado por um colega importante dele como Walter Grundmann (1906-1976) – de desjudaizar não apenas o cristianismo, mas o próprio Jesus.
Como escreve Gerdmar, “purificava-se a esfera germânica e nórdica de tudo o que era judeu e se promovia e favorecia uma Igreja germânica total em um Reich total”. Uma viagem, portanto, para o passado, para extrair dele uma lição para o presente, com a insurgência renovada de bolhas incandescentes de racismo e antissemitismo, não raramente envolto de defesa dos valores cristãos, desfraldados como estandarte religioso e político.
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O teólogo Lutero e o seu antissemitismo. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU