25 Julho 2020
"Os agricultores e as agricultoras não se sentem mais conquistadoras que subjugam a natureza, mas parte integrante do meio ambiente, com um papel primordial de recuperar os ecossistemas. Desse modo, se dá uma nova simbiose entre a fauna, a flora e as pessoas reconectas à verdadeira agri-cultura. Uma boa notícia em tempos de pandemia. Vale à pena comemorar isso no dia da agricultora e do agricultor", escreve João Inácio Wenzel, formado em filosofia e mestre em teologia. Publicou, entre outros, O cuidado acima de tudo: Justiça socioambiental e resistência profética. São Leopoldo: CEBI, 2019. Reside em Tomazina, PR.
Os trabalhadores e as trabalhadoras rurais, responsáveis por mais de setenta por cento dos alimentos consumidos pelo povo brasileiro, mereciam um destaque bem maior no dia dedicado a eles e a elas, 25 de julho. Geralmente, o destaque dado pela grande mídia, costuma ser a bênção de carros e de caminhões, em comemoração a São Cristóvão, padroeiro dos motoristas.
A revolução agrícola começou há doze mil anos com a domesticação de algumas plantas e animais. Isso possibilitou que mais pessoas pudessem viver num território menor, mas tornou a sua vida mais dura, e empobreceu a sua dieta que no tempo dos coletores e caçadores era variada e bem mais rica em nutrientes. Estes sabiam que frutas colher em que época do ano e em que local, seguindo seu mapa mental. Conheciam também o movimento migratório dos animais silvestres.
Hoje, mais de 90% das calorias consumidas no mundo são oriundas de algumas plantas domesticadas por nossos ancestrais entre 9500 e 3500 a.C., como trigo, cevada, milho, arroz, batata e mandioca. Os cientistas se perguntam: quem domesticou quem? Foi o ser humano que domesticou o trigo e o boi, ou foi o trigo e o boi que domesticaram o ser humano? O fato é que as pessoas que vivem da agricultura ficaram cada vez mais presos à sua roça e aos seus animais domésticos, ao passo que o trigo e o boi conquistaram o mundo.
O sucesso nas mídias de documentários sobre ursos, leões, girafas, pinguins, onças, aves, entre outros, podem nos dar a falsa impressão de que ainda reinam no planeta. Mas se pegarmos a estrada pelo mundo afora, o que mais vemos são fazendas sem fim de gado, soja, milho e a algodão, e alguns animais silvestres atropelados à beira da estrada. Nessas terras, há mais boi do que gente: 213 milhões de cabeças de gado ocupam dois terços das terras agriculturáveis no Brasil. E quantas onças pintadas ainda sobrevivem? Ninguém sabe ao certo. No bioma da mata atlântica, talvez algumas centenas, e no bioma da Amazônia alguns milhares.
A extinção de espécies da fauna e da flora teve um avanço acelerado nos últimos 50 anos com a assim chamada “revolução verde”. Significou o avanço da agricultura sobre milhões de hectares de florestas, substituídos por monoculturas de grande extensão e a substituição da adubação orgânica por insumos químicos e agrotóxicos. Até o nome mudou. A agricultura virou agronegócio. O agricultor, produtor. Com propaganda capciosa querem nos convencer que “agro é tech, agro é pop, agro é tudo”, mas, na verdade, é tudo menos agricultura. A cultura foi subtraída da agricultura e substituída pelo negócio. A monocultura da soja, do milho e do algodão... são commodities, meras mercadorias vendidas na bolsa de valores. Assim, também, os bois e as vacas, os porcos e a galinhas não são mais reconhecidas como animais que tem hábitos sociais, que brincam, desenvolvem habilidades. São meras mercadorias destinadas à alimentação humano, sem nenhum direito a subjetividade.
As consequências são terríveis: perda dos ecossistemas, perda do solo fértil lavado pela erosão, assoreamento dos rios e contaminação das águas com resíduos de fertilizantes químicos e agrotóxicos. As plantas e insetos criam resistências à ação dos venenos. Ruim para os produtores, ótimo para os vendedores de venenos que oferecem novos produtos, mais fortes e mais caros. Cresce o tamanho das propriedades e cresce a dependência dos produtores, cada vez mais amarrados à indústria agroquímica dominada por grandes corporações.
Não são somente as plantas o os insetos que resistem a esse modelo agrícola devastador. Os consumidores e as consumidoras também. O mercado de orgânicos cresce em torno de 20% ao ano. As grandes corporações reagem de olho nesses novos nichos, oferecendo novos pacotes tecnológicos de produtos biológicos. A natureza agradece, pois deixa de ser agredida com venenos, mas os consumidores pagam o preço e os agricultores e agricultoras continuam dependentes dos pacotes tecnológicos. No entanto, não precisa ser assim. E não é.
As camponesas e os camponeses, com o apoio de pesquisadores e pesquisadoras ligados, sobretudo, às universidades públicas, estão recuperando a verdadeira cultura da agricultura. Desenvolvem um sistema de produção abundante e saudável, e, ao mesmo tempo, recuperam o solo e os ecossistemas. Melhor ainda, sem depender dos pacotes tecnológicos das grandes corporações. Eles se fundamentam na sabedoria de nossos ancestrais, associada aos conhecimentos científicos de ponta, tendo a natureza como aliada. Aprendem que a relação das plantas entre si são relações de cooperação e não de competição, como costumam ser as relações capitalistas entre os humanos. Aprendem que não existem plantas daninhas, mas que as plantas espontâneas são plantas indicadoras da qualidade do solo e saneadoras do mesmo solo. Aprendem que o solo não pode ficar nu. Precisa estar coberto com plantas ou com matéria orgânica obtida pelo roçado e poda das árvores. Aprendem a cultivar os micro-organismos tão necessários para o desenvolvimento das plantas, a fazer o seu próprio adubo, chamado aqui no Paraná de adubo da independência; a fazer o seu próprio biofertilizante, caríssimo no mercado, simples e barato quando feito com os recursos da própria propriedade. Aprendem a atrair insetos amigos que fazem o controle de “pragas”. Aprendem que o segredo está no solo. Como dizia a engenheira agrônoma brasileira nascida na Áustria, Ana Maria Primavesi: “solo doente, planta doente, povo doente; solo saudável, plantas saudáveis e pessoas saludáveis”. Aprendem também a comercializar o produto diretamente com os consumidores e consumidoras, criando novas relações sociais e alianças com pessoas comprometidas com a “ecologia integral”.
Há aqueles e aquelas que dão um passo ainda maior: desenvolvem agricultura em meio a sistemas agroflorestais: árvores nativas, árvores para madeira comercial, árvores frutíferas, milho, arroz, feijão, plantas alimentícias não convencionais (PANCs) e todos os tipos de hortaliças cultivados no mesmo território. Os agricultores e as agricultoras não se sentem mais conquistadoras que subjugam a natureza, mas parte integrante do meio ambiente, com um papel primordial de recuperar os ecossistemas. Desse modo, se dá uma nova simbiose entre a fauna, a flora e as pessoas reconectas à verdadeira agri-cultura. Uma boa notícia em tempos de pandemia. Vale à pena comemorar isso no dia da agricultora e do agricultor.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens – Uma breve história da humanidade. -48. Ed. - Porto Alegre, RS: L&PM, 2019.
MARCUSO, Stefano. Revolução das plantas: um novo modelo para o futuro; São Paulo: Ubu editora, 2019.
PRIMAVESI, Ana. Manejo ecológico do solo: a agricultura em regiões tropicais. 7ª ed. São Paulo (SP): Nobel, 1984.
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Dia da trabalhadora e do trabalhador rural: retorno à agroecologia e muita história para contar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU