06 Fevereiro 2020
“Junto à escassez dos minerais com os quais os fertilizantes químicos são fabricados, especialmente o fósforo, acrescenta-se uma longa lista de recursos não renováveis (do petróleo ao carvão e o urânio) que marcam um limite físico para a manutenção de modelos atuais de produção, consumo e modos de vida. Uma verdadeira crise civilizacional que tem sua origem na lógica capitalista que impulsiona o crescimento contínuo”, escreve Helios Escalante, geógrafo e técnico florestal, em artigo publicado por El Salto, 02-02-2020. A tradução é do Cepat.
A crescente preocupação com as mudanças climáticas e, em menor grau, com o esgotamento dos combustíveis fósseis, direcionou o foco do debate público para os impactos e a disponibilidade dos recursos energéticos. No entanto, os problemas de escassez que as sociedades industriais terão de enfrentar nas próximas décadas afetam muitas áreas diferentes.
Um dos que se destaca por sua gravidade, e que permanece relativamente desatendido no debate público, é o da produção de alimentos. Sob o atual modelo agrícola, esta depende de enormes aportes externos de energia, mas também de outros insumos que se tornaram igualmente imprescindíveis: os fertilizantes químicos. A história da agricultura moderna é, em grande parte, a história dessa dependência. Uma das chaves do seu sucesso inegável é também uma das principais causas de sua ruína.
O solo é uma fina camada formada pela acumulação e interação de partículas minerais, matéria orgânica e pequenos seres vivos, que permite o crescimento das plantas. Embora demore centenas ou milhares de anos para se formar, seus nutrientes podem ser esgotados muito rapidamente, e a necessidade de reabastecê-los tem sido uma preocupação constante, consciente ou não, desde o surgimento da agricultura.
Antes da química moderna do solo explicar detalhadamente seu funcionamento, já estavam ocorrendo em todo o mundo práticas que reduziam ou compensavam a perda de nutrientes: pousio, rotação de cultivos e, principalmente, a vinculação entre pecuária e agricultura, o que garantia a reposição de parte desses elementos mediante o uso do esterco.
O desenvolvimento capitalista no século XIX, com suas enormes necessidades de abastecimento de fibras e alimentos para as cidades e indústrias, acelerou o consumo e a dispersão desses nutrientes do solo, além de sua capacidade de renovação. Marx apontou esse fenômeno, indicando que a produção capitalista e a concentração urbana gerada por ela “perturbam o metabolismo entre o homem e a terra, ou seja, o retorno à terra dos elementos consumidos pelo homem na forma de alimentos e roupas, que constitui a eterna condição natural sobre a qual repousa a fecundidade permanente do solo”.
Essas observações vieram após o estudo da obra do químico alemão Justus von Liebig, que expôs o caráter fundamental de três compostos minerais para o desenvolvimento de plantas: nitrogênio, fósforo e potássio, os quais constituem a base dos modernos fertilizantes químicos (a conhecida fórmula NPK).
A escala dessa perda de nutrientes levou as potências industriais do momento, principalmente a Inglaterra, a encontrar maneiras de compensá-la mediante a importação de fertilizantes de diferentes partes do mundo. Um dos mais cobiçados e valiosos foi o guano, resultado do acúmulo de fezes de aves marinhas e morcegos. Como explicaram diferentes autores, como Bellamy Foster e Brett Clark, ao desenvolver o conceito de “fratura metabólica”, durante a segunda metade do século XIX, milhões de toneladas desse recurso foram extraídas no Peru e embarcadas principalmente para a Inglaterra e os Estados Unidos, mas também para a Holanda, Bélgica, França, Suécia, etc.
Grande parte dessa extração foi realizada utilizando trabalhadores chineses em condições de semiescravidão, muitos dos quais morreram devido às terríveis condições de trabalho. A extração do guano foi seguida dos nitratos. A disputa pelo controle dos depósitos de nitratos do Atacama e de guano de Antofagasta provocou uma guerra entre o Chile, por um lado (com o apoio da Inglaterra), e a aliança formada pela Bolívia e pelo Peru, por outro: a chamada “Guerra do Salitre ”, que se estendeu entre 1879 e 1884.
A vitória chilena garantiu à Inglaterra um suprimento estável desses recursos, que, desde então, entraram em constante declínio: não apenas foram extraídos em um ritmo muito maior que não permitiu sua reposição, mas que, no caso dos guanos, este foi impossibilitado fisicamente: as aves que originaram essa substância com suas deposições foram exauridas ou espantadas durante o processo de extração.
Na década de 1840, John Lawes descobriu o processo de fabricação de superfosfatos mediante aplicação de ácido sulfúrico a rochas fosfatadas: foi o primeiro fertilizante artificial, que logo começou a ser fabricado industrialmente. Para seu desenvolvimento na escala vertiginosa em que requeria a agricultura europeia, não eram suficientes as reservas europeias dessas rochas, e logo começaram a ser exploradas as minas de fosfato na Flórida, e décadas mais tarde no Marrocos e no Saara. De fato, o controle desse recurso foi uma das principais motivações do colonialismo francês e espanhol no norte da África.
Posteriormente, a criação de indústrias nacionais de fertilizantes na URSS e na China levou à exploração de outros depósitos desses minerais, localizados nas áreas do Ártico, Cazaquistão e Jordânia.
Quanto ao potássio, até a generalização do uso de potássio mineral, a principal fonte artificial havia sido a cinza vegetal, utilizada em vários lugares ao longo da história. Autores clássicos gregos e romanos, como Virgilio, Estrabón e Columela, já se referiam a esse uso pelos agricultores de sua época. Durante o século XVIII, havia um mercado florescente de cinzas de bétula provenientes do norte e leste da Europa, bem como de algas e plantas costeiras ricas em sais na região do Mediterrâneo. A crescente demanda levou a elevadas taxas de desmatamento, até que em 1861 abriu suas portas a primeira fábrica de potássio mineral, a partir da exploração dos recém-descobertos depósitos de potássio de Stassfurt. Posteriormente foram explorados outros depósitos importantes, como os da Alsácia, então sob controle alemão, e os de Suria, na Catalunha. Atualmente, a maioria das reservas mundiais está concentrada no Canadá, Bielorrússia, Rússia, China e Israel.
No início do século XX, o químico alemão Fritz Haber descobriu como extrair nitrogênio do ar, sintetizando a amônia. Até então, a única maneira como esse elemento passava para o solo era por meio de descargas elétricas de raios ou pela fixação que fazem diversos microrganismos. O vínculo de alguns deles com plantas leguminosas (como soja, ervilha e o trevo) torna seu cultivo útil para o aporte desse mineral.
Karl Bosch aperfeiçoou o método de Haber para obter amônia sintética, que se espalhou pelo mundo após a Primeira Guerra Mundial e ficou conhecido como “processo Haber-Bosch”. Esse procedimento permitiu dispor de uma fonte abundante de fertilizante artificial, mas significou ao mesmo tempo que a produção de alimentos dependia absolutamente de combustíveis fósseis, uma vez que a matéria-prima utilizada para proporcionar o hidrogênio necessário na reação é fundamentalmente o gás natural, e em menor grau, o petróleo.
Essa dependência foi exacerbada dramaticamente após a Segunda Guerra Mundial e, principalmente, após a chamada “Revolução Verde”, o pacote tecnológico promovido pelos Estados Unidos, a partir de 1960, que incluía a utilização de sementes híbridas, extensão da mecanização, uso massivo de pesticidas (muitos deles derivados diretamente do petróleo) e irrigação. Tudo isso acompanhado pelo estabelecimento de fluxos alimentares cada vez mais globais, absolutamente dependentes de combustíveis fósseis para transporte, embalagem e refrigeração.
A universalização do uso de fertilizantes químicos a partir da fórmula simplificada NPK aumentou consideravelmente a produção de alimentos em todo o mundo, permitindo alimentar bilhões de pessoas com um incremento da terra cultivável relativamente modesto. No entanto, o custo social e ambiental dessa conquista foi gigantesco. Mais da metade dos produtos utilizados acabam dissolvidos nas águas do planeta, gerando vários tipos de poluição. Uma das mais conhecidas, a eutrofização, é o desenvolvimento massivo de algas que acabam afogando outras formas de vida, tal como tem acontecido nos últimos anos no Mar Menor de Múrcia.
Mas existem muitos outros: da intoxicação de mulheres grávidas e bebês causada pela chamada “Síndrome da Criança Azul” (uma anomalia na hemoglobina que dificulta o transporte de oxigênio, causado pelo excesso de nitratos na água) até a aumento das emissões de gases do efeito estufa.
Ao bloquear outros micronutrientes, esses fertilizantes acabam empobrecendo o solo, que necessita de doses cada vez maiores para manter estáveis os níveis de produção. Uma espiral que implica tanto um aumento no custo, que afeta o endividamento e a concentração, próprios da agricultura industrial, quanto a poluição. Mas a generalização do uso de fertilizantes químicos (e, em geral, o uso de combustíveis fósseis) também criou uma situação incomum na história: que a agricultura se torna dependente da mineração e de outras atividades extrativas, ou seja, que a o fornecimento global de alimentos dependa do fornecimento de recursos limitados e desigualmente distribuídos. É, portanto, totalmente vulnerável à sua escassez e esgotamento.
Nesse sentido, o potássio não tem perspectiva de restrições imediatas de abastecimento. Segundo a pesquisadora Alicia Valero, seu ápice de extração, ou seja, o momento a partir do qual o nível das reservas começaria a descer, não seria atingido até os anos 2070, enquanto continuarem sendo explorados novos depósitos. Isso também significa aumentar os impactos ambientais desse tipo de extração, bem como a contaminação da água por resíduos ou o acúmulo de resíduos salinos. Um dos exemplos mais conhecidos desse problema em nossa geografia é a montanha salgada de Cogulló, em Sallent (Barcelona), com 500 metros de altura e uma área de 50 hectares, formada por toneladas de resíduos de minas de potássio.
O destino do nitrogênio, por sua vez, está ligado ao dos combustíveis fósseis, não apenas pelo fornecimento de gás natural necessário como matéria-prima, mas também pela quantidade de energia que deve ser usada no mencionado “processo Haber-Bosch”. Juntos, quase um terço da energia do setor agrícola é destinado à fabricação de fertilizantes inorgânicos. O pico do gás natural está muito mais próximo do que o potássio e se situa entre a década em que entramos agora, 2020, e a próxima. Sua disponibilidade para a fabricação de fertilizantes será condicionada pela competição com outros usos, tais como a produção de eletricidade. Nos últimos anos, a demanda por esse objetivo vem crescendo significativamente, acompanhada de uma propaganda que o apresenta como fonte energética “limpa”, ou pelo menos “de transição”.
O macronutriente inorgânico que está mais próximo da exaustão é o fósforo, que o escritor Isaac Asimov chamou de “o efeito gargalo da vida”, devido à sua importância para o crescimento das plantas. Tal como Asimov salientou insistentemente, não existe outro nenhum outro elemento que possa substituir seu uso. Já em 1938, o presidente estadunidense, Franklin Roosevelt, havia enfatizado sua importância fundamental em uma mensagem dirigida ao Congresso, na qual defendia que a administração de depósitos de fosfato deveria ser considerada uma questão de interesse nacional.
Atualmente, existe um debate científico sobre o momento em que se alcançará seu pico de extração, o máximo global de produção a partir do qual suas existências irão decrescendo. Alguns autores consideram que isso ocorreu no final do século XX, outros que ocorreu em algum momento desta década. Seja como for, a conscientização de que as reservas são cada vez mais escassas está ganhando terreno, o que não implica em nenhuma medida séria para reduzir seu uso, que continua aumentando em todo o mundo.
Após uma breve queda em 2008, devido à desaceleração econômica internacional, segundo a FAO, o consumo mundial de fertilizantes fosfatados aumentou de 35 milhões de toneladas para 45 milhões, em 2017. Assim como outros recursos limitados, a tendência observada em vista de suas perspectivas de escassez e esgotamento não é o questionamento de seu uso (o que implicaria, por sua vez, outros questionamentos mais profundos do modelo social e econômico vigente), mas a ampliação das fronteiras extrativistas, na tentativa de acelerar todas as reservas possíveis.
Uma das áreas de interesse estratégico nesse sentido é o norte da África. Mais de 80% dos recursos mundiais de fosfato são encontrados no Saara Ocidental, cuja importância é um dos principais interesses da ocupação marroquina, assim como eram para o colonialismo francês e espanhol na região. Nas proximidades, as minas argelinas atraíram recentemente o interesse das empresas chinesas por sua exploração em conjunto com a companhia energética estatal da Argélia, Sonatrach, enquanto a produção da Tunísia já entrou em declive. Na Síria, os depósitos de fosfato desempenharam, pelo que parece, um papel no conflito que é mantido desde 2011. De fato, as empresas russas assinaram contratos com o governo sírio, nesses anos, para sua extração e processamento.
A preocupação com o fornecimento desse recurso chegou ao ponto de multiplicar os pedidos de projetos para a exploração de reservas subaquáticas, em diferentes partes do planeta, da África do Sul à Baixa Califórnia Mexicana. Até o momento, grande parte das licenças desse tipo foi rejeitada devido a seus impactos ambientais, incluindo os que afetam os recursos pesqueiros, mas, à medida que as dificuldades no fornecimento de fosfato se tornam mais agudas, as pressões para permiti-los serão maiores.
Isso equivale à busca de depósitos “não convencionais” (areias petrolíferas, fracking, pesquisas subaquáticas etc.) no caso de combustíveis fósseis, muito mais caros, poluidores e ineficientes: mais uma prova de que recursos baratos e fáceis de extrair são coisas do passado.
Junto à escassez dos minerais com os quais os fertilizantes químicos são fabricados, especialmente o fósforo, acrescenta-se uma longa lista de recursos não renováveis (do petróleo ao carvão e o urânio) que marcam um limite físico para a manutenção de modelos atuais de produção, consumo e modos de vida. Uma verdadeira crise civilizacional que tem sua origem na lógica capitalista que impulsiona o crescimento contínuo.
Somente uma transformação completa da agricultura mundial, que retorne às práticas agroecológicas de fechamento dos ciclos de nutrientes em escala local e regional, que sustente a fertilização em fontes orgânicas e regenere os solos, pode evitar o desastre que o corte no fornecimento de fertilizantes químicos significaria para milhões de pessoas, assim como evitar os tremendos impactos de seu uso. Ainda é possível, em um mundo com centros urbanos cada vez maiores e uma agricultura camponesa ameaçada?
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A agricultura mundial na corda bamba dos fertilizantes químicos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU