15 Agosto 2017
Quase 30 projetos sobre combate ao desperdício de alimentos tramitam na Câmara.
A reportagem é de Débora Brito, publicada por Agência Brasil, 14-08-2017.
Desperdício na cadeia de produção de alimentos foi tema do Caminhos da Reportagem, da TV Brasil. (Foto: Divulgação)
O Brasil ainda não tem uma política nacional que regule iniciativas de combate ao desperdício de alimentos e defina o destino de sobras do processo de produção, comercialização e consumo, mas, na Câmara dos Deputados, tramitam atualmente quase 30 projetos de lei com esse objetivo. No entanto, divergências em torno de alguns pontos impedem o avanço das propostas.
A maioria dos projetos em análise na Casa pretende acabar com a punição civil e criminal de doadores de alimentos. Hoje, supermercados ou empresas distribuidoras de produtos alimentícios podem ser responsabilizados caso doem algum produto e este cause algum mal-estar ou problema de saúde à pessoa que o recebeu.
Para pesquisadores do tema, essa restrição, que consta dos Códigos Penal e Civil, é um dos entraves ao aumento das doações de sobras de alimentos no país.
“No Brasil, temos uma situação muito estranha: restaurantes, empresas processadoras de alimentos não podem doar alimentos que sobram, porque a responsabilidade é delas, se houver qualquer tipo de problema de saúde. É uma legislação que vai no sentido do desperdício, porque impede o reaproveitamento”, diz o professor Sérgio Sauer, da Universidade de Brasília (UnB).
Um estudo feito pela consultoria legislativa do Senado Federal mostra que o risco jurídico imposto aos doadores é um dos principais gargalos da legislação relacionada a iniciativas de promoção da segurança alimentar, ao lado das ineficiências técnicas de todas as etapas do processo produtivo.
“Embora o problema da perda e desperdício de alimentos ocorra ao longo de toda a cadeia produtiva, da produção agrícola ou pecuária até o consumo final, estudos demonstram que só é possível promover alterações legislativas ou inovações no marco regulatório relativo ao processo de doação de alimentos. Porque, em tese, as cadeias produtivas já têm os incentivos necessários para promover boas práticas de produção, comercialização, industrialização que levariam à redução de perdas”, afirma o consultor legislativo do Senado Marcus Peixoto.
Ele ressalta que não é possível reunir de forma detalhada, em apenas uma lei ordinária, todos os aspectos relacionados à perda e ao desperdício de alimentos. Por isso, há várias propostas em tramitação, mas Peixoto destaca que o foco do Congresso deve estar na regulamentação do processo de doação.
Uma das primeiras propostas elaboradas com o objetivo de mudar essa situação é o Projeto de Lei (PL) 4.747, que tramita há 19 anos na Câmara e é conhecido como Lei do Bom Samaritano. Pelo projeto, pessoas físicas ou empresas que, por intermédio de entidades sem fins lucrativos, doarem a pessoas carentes alimentos industrializados ou preparados ficam isentas de responsabilidade civil ou penal, em caso de dano ou morte causados ao beneficiário pelo consumo do bem doado.
A isenção depende, porém, de ficar comprovado que não houve dolo ou negligência da parte do doador. A proposta aguarda aprovação dos deputados desde 1998. Nesse período, outros projetos com teor parecido foram criados e também aguardam avanço na tramitação.
Em junho deste ano, a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara aprovou, por unanimidade, parecer favorável ao Projeto de Lei 5.958/2013, que permite a “reutilização de alimentos preparados para fins de doação”. A proposta incrementa o Decreto 986/69, que institui normas básicas sobre alimentos e permite a doação para instituições beneficentes de alimentos industrializados que tenham sido interditados para venda por apresentar algum tipo de avaria, embora mantenham condições de consumo.
Doze projetos foram apensados à proposta. Um deles é o PL 6898/17, que propõe a criação da Política Nacional de Combate ao Desperdício de Alimentos. Já aprovada no Senado, a proposta permite a doação de alimentos conforme regras a serem regulamentadas e isenta o doador de responsabilidade jurídica. O projeto não considera a doação como relação de consumo entre o doador e o beneficiado.
Existem ainda propostas mais amplas. que visam à instituição de uma política nacional de erradicação de alimentos, na qual é incluída a questão do desperdício.
Um dos últimos projetos que tiveram movimentação na Câmara, o PL 3.070/2015, de autoria do deputado Givaldo Vieira (PT-ES), inclui entre os princípios da Política Nacional de Resíduos Sólidos o estímulo à redução do desperdício de alimentos e retira a punição aos potenciais doadores. Segundo Givaldo, a proposta difere das outras por incorporar a questão do desperdício na legislação ambiental. O projeto acrescenta à Lei de Resíduos Sólidos um tratamento diferente do que é dado aos resíduos de alimentos.
“Em vez de criar uma lei isolada, fomos à Lei de Resíduos Sólidos, uma lei ambiental forte, e fizemos alterações, dando um tratamento diferenciado aos resíduos de alimentos e uma destinação, que seria a doação para humanos, uso animal, compostagem e, em último caso, geração de energia com a massa orgânica não aproveitada para consumo humano ou animal e compostagem”, disse o deputado à Agência Brasil.
Para organizar a destinação dos resíduos ainda com condições de consumo, o projeto prevê a criação da plataforma nacional de oferta de alimentos. Na ferramenta, que seria online, potenciais doadores e aqueles capazes de captar a doação fariam um cadastro sob supervisão de um órgão federal. O deputado explica que o objetivo é estimular a criação dos chamados bancos de alimentos, instituições públicas ou administradas em parceria com organizações sociais que fazem a intermediação do processo de doação de alimentos sociais.
A proposta legislativa já passou por três comissões e foi aprovada em julho na de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Apesar de pronto para ser votado em plenário, o projeto deve aguardar uma longa fila de medidas provisórias e propostas de maior impacto político e econômico que tramitam na Casa, como as reformas política e da Previdência.
“Minha expectativa é neste semestre tratar com as lideranças partidárias e com o presidente da Câmara para ver se a gente consegue um consenso para pautar no plenário, o mais rápido possível, e dar um passo importante para o marco legal de combate ao desperdício. Se aprovado, iria para o Senado, onde poderia ser enriquecido de maneira que, quem sabe ao longo do próximo ano, o país possa ter uma lei que vise objetivamente combater ao desperdício de alimentos, sobretudo nesse momento grave de crise econômica”, ressalta Givaldo Vieira.
Se a proposta for aprovada no Congresso, ainda deve passar por regulamentação. Precisariam ser regulamentados os pontos que tratam das questões sanitárias e os que definem os critérios para que o alimento seja doado. O assunto já tem sido debatido com a Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Enquanto não é aprovada uma política nacional de combate ao desperdício de alimentos e de aproveitamento das sobras do processo de produção, alguns estados buscam regulamentar a questão. No Distrito Federal, por exemplo, foi sancionada no ano passado lei distrital que obriga os supermercados de Brasília a doar alimentos que estejam prestes a perder a validade. O descumprimento da medida pode resultar em multa de R$ 10 mil ao estabelecimento.
Alguns projetos do Congresso Nacional também previam a possibilidade de punição para o produtor ou distribuidor de alimentos que não adotasse medidas de combate ao desperdício. Tais propostas, no entanto, não avançaram ou foram modificadas sob pressão de parlamentares representantes do setor produtivo e agrícola.
Para os especialistas, o problema do desperdício não será resolvido com aumento da produção de alimentos, nem com políticas punitivas. Eles defendem mais campanhas educativas e debate sobre mudanças culturais e de comportamento.
“Hoje, o desafio maior do que aumentar produção de alimentos é criar mecanismos para evitar o desperdício, que é muito genérico, tem várias faces. Tem, por exemplo, comida em excesso. Outro ponto, muito comum no Brasil, é o desperdício de alimentos que estragam por estar mal-acondicionados, ou mal-armazenados, ou por se perder no transporte, ou na hora de serem processados. É o que eu chamo de cultura do desperdício, é um conjunto de situações em que se exigiriam até mudanças de hábitos alimentares”, afirma o professor Sérgio Sauer, da Universidade de Brasília (UnB).
Para o pesquisador da Embrapa Alimentos Murillo Freire, a punição não é a melhor forma de combater o problema. Freire diz também que as propostas em tramitação no Congresso precisam ser revistas em alguns pontos técnicos, como as que não incluem critérios para garantir a segurança química e biológica do produto doado. Ele questiona ainda as iniciativas que pretendem garantir benefícios fiscais para empresas que possam criar máquinas processadoras de alimentos, ou propostas que tratam da isenção de até 5% parte da alíquota do Imposto de Renda sobre o lucro das empresas como uma forma de incentivo à doação.
“Algumas empresas e supermercados posicionaram-se dizendo que isso não resolve. Se o supermercado doar o alimento, está tendo prejuízo, porque aquilo não entra no lucro líquido, não é descontado no imposto. Existem detalhes que os deputados não estão vendo. Os projetos de lei ainda são falhos e não abordam aspectos importantes. Com isso, a coisa não anda, vai e volta. Continuamos jogando comida fora. Hoje em dia já tem doação de alimentos e não tem lei, é tudo à margem da lei”, critica Freire.
De acordo com os pesquisadores, também faltam sugestões mais concretas para reaproveitamento de alimentos que não são comercializados por estarem fora dos padrões estéticos, como vegetais defeituosos, mas que ainda têm condições nutricionais seguras para consumo. A consultoria legislativa do Senado já elabora uma proposta específica para este ponto a pedido de um senador.
Todo esse conjunto de projetos legislativos está sendo analisado pela Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), composta por representantes do governo federal e do Congresso e por especialistas da área de produção de alimentos. São atribuições da Caisan elaborar e indicar diretrizes para executar a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que tem como uma de suas metas “estabelecer marco legal para a redução das perdas e desperdício de alimentos abrangendo os bancos de alimentos”.
Na próxima reunião da Caisan, marcada para o dia 24 deste mês, o levantamento das propostas legislativas deve ser consolidado em um relatório que apontará o papel de cada ator na construção da política nacional de combate ao desperdício.
“É um processo que tem de ser constante de educação, capacitação, conscientização das pessoas a respeito da importância do combate ao desperdício. Ainda assim, para evitar o desperdício em algumas situações, é preciso acionar os últimos elos do processo, que são aqueles que levam a doação de alimentos para populações mais carentes. Então, é um grande gargalo jurídico esse da doação de alimentos”, diz consultor legislativo do Senado Marcus Peixoto.
Uma das principais estratégias é o fortalecimento da atuação dos bancos de alimentos como intermediadores entre os doadores e receptores dos produtos que sobram. Levantamento da Rede Brasileira de Bancos de Alimentos mostra que o país tinha 218 bancos de alimentos em funcionamento até o ano passado. As unidades arrecadaram no último ano quase 60 mil toneladas de alimentos, das quais 59.610 foram distribuídas para mais de 17 mil entidades sociais. O processo beneficiou em torno de 6 milhões pessoas em situação de insegurança alimentar.
Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social, o governo disponibilizou R$ 5 milhões para apoiar os municípios que pretendem modernizar seus bancos de alimentos. A seleção das cidades aptas está sendo feita por edital público, do qual estão participando bancos em funcionamento há mais de dois anos, em municípios com mais de 150 mil habitantes.
Os recursos poderão ser usados para ampliação das unidades, compra de veículos de transporte dos alimentos, aquisição de geladeiras, computadores e material de escritório. O dinheiro, no entanto, não poderá ser destinado ao pagamento de funcionários e de contas de luz e aluguel.
A meta da rede é contar com a adesão dos 218 bancos em funcionamento para promover a qualificação da gestão dessas unidades. O Ministério do Desenvolvimento Social também deve começar ainda neste semestre a desenvolver manuais educativos para orientar as equipes técnicas.
Murillo Freire alerta, no entanto, que o incentivo ao aperfeiçoamento dos bancos de alimentos não deve ofuscar iniciativas que combatam o desperdício desde o início do processo. “Quando se fomenta banco de alimentos, que vive de doação, é porque a cadeia produtiva atrás não está bem. Algum problema tem. Então, não é também uma saída ficar incentivando o banco de alimentos. É melhor construir toda a infraestrutura da cadeia desde a época do plantio, conscientizar o consumidor na sua casa a planejar a compra para não jogar fora, arrumar a geladeira, além de campanhas de comunicação. É consertar a causa, e não a consequência, pondera Freire.
Os especialistas ressaltam que o último marco na política de segurança alimentar foi a promulgação pelo Congresso Nacional da emenda à Constituição que introduziu a alimentação entre os direitos fundamentais, em 2010. O marco anterior, de 2006, foi a criação do Sistema Integrado de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), que envolve ministérios da área social e programas do governo.
“Do ponto de vista formal, institucional, [a PEC e o Sisan] foram avanços importantes, pelo menos no sentido de reconhecer que, no Brasil, o direito à alimentação é um direito humano, antes não tinha nem isso”, destaca o professor Sauer, que foi relator do direito humano à terra e alimentação da DhESCA Brasil – Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais.
Depois da promulgação, o Brasil intensificou as políticas de combate à pobreza, o que resultou na saída do país do Mapa da Fome, em 2014. Ainda em 2002, o Brasil já tinha atingido a meta de reduzir a fome, conforme os Objetivos do Milênio, estabelecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2000. Para o país, o desafio agora é erradicar a fome até 2030, uma das metas dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, também estabelecidos pela ONU.
No entanto, o direito à alimentação previsto na Constituição é mais amplo do que simplesmente comer. O direito só é efetivo se a pessoa estiver livre da fome e da desnutrição e tiver acesso a uma alimentação adequada e saudável. No Brasil, cerca de 8 milhões de pessoas ainda passam fome, diz a ONU. E, com a crise econômica atual, os especialistas temem que o problema se agrave e possa levar o país de volta ao Mapa da Fome.
“É importante aquele mapa, mas o fato de o Brasil ter saído dele significa que não temos mais problemas? Não, nós saímos do Mapa da Fome mas ainda tinha muito a ser feito. Por exemplo, o auxílio do Bolsa Família deu um alento, mas não solucionou o problema. Agora, com o limite para os gastos públicos e essa combinação entre recessão e desemprego, que gera pobreza e gera fome, infelizmente, há um risco bastante real de o Brasil, se não voltar para o Mapa da Fome, ter uma quantidade maior de famílias em vulnerabilidade social e alimentar”, afirma Sauer.
A redução pela metade do índice de desperdício de alimentos per capita mundial e as perdas ao longo do processo produtivo até a chegada do alimento ao consumidor também está entre as metas da ONU para 2030. Segundo a FAO, órgão das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, o mundo perde ou desperdiça entre um quarto e um terço dos alimentos produzidos anualmente. O volume equivale a cerca de 1,3 bilhões toneladas de alimentos, o que inclui 30% dos cereais, entre 40% e 50% das raízes, frutas, hortaliças e sementes oleaginosas, 20% da carne e produtos lácteos e 35% dos peixes.
O Brasil não tem estimativa real sobre desperdício de alimentos, o que pode dificultar ainda o cumprimento da meta da ONU de redução das perdas ao longo do processo produtivo. Murillo Freire lembra que é preciso conhecer os números de hoje para reduzir metade daqui a 10, 20 anos.
“Não existe uma meta quando não se tem os dados iniciais. Ainda não temos uma metodologia padrão para avaliar perdas e desperdícios. Qualquer perda e desperdício que se tenha, deve-se considerar várias coisas para incluir nesse resultado. Em que ano se fez essa pesquisa de produção? Que produto foi? É cultivado, melhorado? É resistência à praga e doença? Em qual ano se plantou? Foi na chuva ou na seca, no verão ou no inverno? Qual o nível tecnológico usado, adubação, fertilização? Tem treinamento de mão de obra? Não tem? Tudo isso ocasiona perdas adiante ou produto de má qualidade”, questiona o pesquisador.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Combate ao desperdício de alimentos e aproveitamento das sobras do processo de produção exigem políticas públicas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU