11 Junho 2020
Dados de monitoramento por satélite apontam para nova escalada de fogo e ocupações na Amazônia e outros biomas.
A reportagem é de Herton Escobar, diagramação de Cleber Siquette, publicada por Jornal da USP, 10-06-2020.
O desmatamento consumiu 12 mil quilômetros quadrados (km2) de vegetação nativa do Brasil em 2019, num ritmo devastador de quase 1,5 km2 por hora. E o cenário para este ano é ainda mais preocupante, segundo especialistas.
A conclusão inicial vem de um relatório do Projeto MapBiomas, que revisou e consolidou todos os alertas de desmatamento registrados via satélite no País em 2019, em todos os seis grandes biomas nacionais — Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica, Caatinga, Pantanal e Pampa. Já as previsões para 2020 são baseadas em dados correntes de monitoramento por satélite do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e de outras instituições, acoplados a um cenário de forte turbulência econômica, política e social.
O desmatamento acumulado nos últimos 10 meses (de agosto de 2019 a maio deste ano) na Amazônia Legal já é 72% maior do que o registrado no mesmo período anterior, segundo dados do Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Inpe. E o pior é que a alta temporada de devastação está só começando: junho, julho e agosto são tipicamente os meses com maior índice de queimadas e desmates na região, por causa do tempo seco; o que sugere que essa diferença em relação aos anos anteriores só deverá crescer nas próximas semanas.
“Todos os sistemas de alerta apontam para uma tendência de alta”, diz o geógrafo Marcos Reis Rosa, doutorando na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e coordenador técnico do Projeto MapBiomas, realizado por um consórcio de instituições de pesquisa públicas e privadas, incluindo universidades, empresas e organizações não-governamentais.
Foto: Mayke Toscano/Fotos Públicas
“São números que assustam, porque nem incluem o período de seca, ainda”, diz o pesquisador Ricardo Galvão, professor titular do Instituto de Física da USP e ex-diretor do Inpe (exonerado no ano passado após um embate público com o presidente Jair Bolsonaro, justamente sobre os dados do desmatamento). “Se não houver uma ação contundente do governo, o cenário adiante é bastante preocupante.”
“Se continuarmos com as taxas observadas espera-se que o desmatamento em 2020 supere o observado em 2019; contudo, a efetiva implementação da GLO pode conter esse avanço nos próximos meses”, diz o pesquisador Luiz Aragão, chefe da Divisão de Sensoriamento Remoto do Inpe. A sigla GLO refere-se às missões de Garantia da Lei e da Ordem pelas Forças Armadas, que foi a estratégia usada pelo governo no ano passado para conter o avanços das queimadas na região.
Uma nota técnica preparada por ele e outros dois pesquisadores ligado ao Inpe e ao Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden) alerta ainda para o risco de um agravante climático: “O Oceano Atlântico apresenta um aumento de temperatura acima de toda a média histórica nos primeiros meses de 2020. Este fato preocupa, pois, esta característica tende a causar secas na região sudoeste da Amazônia, principalmente no estado do Acre e regiões adjacentes.”
O que, por sua vez, representa uma ameaça à saúde pública: “A expectativa, seguindo o padrão de longo-prazo, é de que caso não haja uma intervenção incisiva do Estado para coibir os atos ilegais, essas queimadas induzirão o aumento do material particulado emitido para a atmosfera, degradando a qualidade do ar e, consequentemente, aumentando a incidência de doenças respiratórias na população Amazônica. A preocupação conecta-se com a possibilidade de sobreposição entre as queimadas e a pandemia de COVID-19, pois haverá uma maior demanda por tratamento em unidades de saúde, podendo acarretar um colapso destes sistemas nos estados amazônicos, que já operam no limite”, alerta a nota.
“Os três primeiros meses deste ano tiveram um aumento expressivo do desmatamento em relação ao ano anterior. É preciso agir rápido. Caso contrário, a situação de grandes queimadas, com enorme produção de fumaça, poderá impor sérios danos à biodiversidade da região, ao clima e, em especial, à saúde da população local, já grandemente afetada pela pandemia do novo coronavírus”, alerta, também, uma nota técnica do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
As taxas oficiais de desmatamento na Amazônia são calculadas de 1 de agosto a 31 de julho do ano seguinte, por um sistema de alta resolução chamado Prodes. Já o Deter é um sistema que utiliza imagens de satélite para detectar desmatamentos e emitir alertas para as autoridades de fiscalização ambiental. Sua resolução espacial é baixa — só consegue detectar clareiras maiores do que 6 hectares —, mas serve como um “termômetro” do que está acontecendo na floresta. No ano passado (agosto de 2018 a julho de 2019), o Deter registrou alta de 50% no desmatamento; e a variação final — calculada posteriormente pelo Prodes — ficou em 30%. Os dados de ambos os sistemas estão disponíveis publicamente na plataforma digital TerraBrasilis.
O que o projeto MapBiomas fez agora, pela primeira vez, foi juntar todos os alertas do Deter e de outros sistemas de monitoramento por satélite (SAD, do Imazon, e GLAD, da Universidade de Maryland) num único Relatório Anual de Desmatamento, para dar um panorama completo de tudo que aconteceu no ano de 2019, em todos os biomas brasileiros. A ideia é que isso se torne um relatório anual, com dados atualizados mensalmente numa plataforma digital, chamada MapBiomas Alerta, que já está operacional.
“O objetivo é justamente inverter essa tendência de aumento do desmatamento, aumentando a responsabilização dos infratores e garantindo que todo os processos tenham andamento”, afirma Rosa.
Mais de 99% dos quase 57 mil alertas analisados pelo projeto tem alguma irregularidade associada; ou porque o desmatamento foi feito sem autorização legal ou porque avançou sobre alguma área proibida, como unidades de conservação, terras indígenas ou áreas de preservação permamente (APPs). Mesmo com todo esse aparato de policiamento via satélite, porém, ainda são poucos os alertas que resultam em alguma punição legal para os infratores, por causa das várias dificuldades logísticas e jurídicas de se processar crimes ambientais no Brasil. Apenas uma porção ínfima das multas aplicadas são efetivamente pagas, gerando uma sensação de impunidade que serve como combustível para a continuidade do desmatamento, aponta Rosa.
“Apesar de o monitoramento já existir há um bom tempo, ainda são limitadas as ações levadas a cabo, tanto com dados anuais como mensais, seja para prevenir, controlar ou penalizar o desmatamento ilegal em todos os biomas brasileiros”, diz o relatório. “ Segundo dados do Ibama de 2018, estima-se que menos de 1% das áreas desmatadas na Amazônia entre 2005 e 2018 foram repreendidas por multas, ações civis públicas e embargos.”
Como o MapBiomas Alerta pode ajudar a reverter esse quadro? Todos os alertas incluídos na plataforma foram confirmados, qualificados e refinados por meio da comparação com imagens de satélite de altíssima resolução (da empresa Planet) — que não deixam dúvidas sobre a ocorrência do desmatamento — e do cruzamento dessas imagens com diversas plataformas de dados oficiais, que permitem dizer se o desmatamento ocorreu em áreas públicas ou privadas, com ou sem autorização legal, e se ele se sobrepõe a alguma unidade de conservação ou outras áreas de proteção ambiental.
Para cada um desses alertas, portanto, é possível baixar um laudo técnico, com imagens em alta resolução do “antes e depois” do desmatamento, e uma série de outras informações georreferenciadas sobre a área impactada. A ideia é facilitar o trabalho das autoridades e “acabar com a impunidade do desmatamento”, afirma Rosa. Órgãos judiciais e de fiscalização têm, inclusive, a opção de imprimir os laudos já com o logotipo oficial da entidade no topo.
“Temos laudos prontos para 57 mil alertas”, diz o pesquisador. “A missão agora é garantir que eles sejam usados.” O detalhamento do laudo é tão preciso, segundo ele, que seria possível abrir processos remotamente e enviar autuações pelo correio, sem nem precisar visitar o local. Funcionaria como uma multa de trânsito por radar, que chega para o proprietário do veículo via correio, já com foto, data, local e detalhamento da infração cometida. “Se a pessoa quiser recorrer, pode recorrer; mas vai ter que recorrer contra uma imagem de alta resolução”, diz Rosa.
Foto: Victor Moriyama/Greenpeace
A situação no Cerrado também é preocupante. O número de alertas de desmatamento registrados no bioma em 2019 foi de 7 mil, comparado a 47 mil alertas na vizinha Amazônia, segundo o MapBiomas. Ainda assim, a área total desmatada foi de 4 mil km2, mais da metade do que foi desmatado na Amazônia (7,7 mil km2); o que significa que o tamanho médio dos desmatamentos no Cerrado foi bem maior do que no bioma vizinho — 55 hectares versus 16 hectares, segundo o estudo.
O Cerrado tem várias vantagens com relação a Amazônia, que deveriam, em tese, favorecer o controle e a legalidade do desmatamento no bioma: a situação fundiária é bem resolvida (porque grande parte das terras está na mão de proprietários rurais, com titulação definida) e o Código Florestal permite que até 80% da área dessas propriedades seja desmatada legalmente, comparado a 20% na Amazônia. Ainda assim, a maior parte dos desmatamentos no bioma tem sinais de ilegalidade; ou por falta de autorização ou por sobreposição com áreas de preservação, segundo o MapBiomas.
O fato do desmatamento permanecer na ilegalidade, mesmo quando há plenas condições para que ele seja feito de forma legal, “mostra claramente o fracasso da capacidade de gestão e a falta de vontade política para fazer esse sistema funcionar”, diz a pesquisadora Mercedes Bustamante, do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília, especialista em Cerrado. “Era para ser a prova de conceito de que a regularização fundiária é suficiente para controlar o desmatamento ilegal, mas essa prova não está funcionando”, completa ela.
Os números do Deter indicam que o desmatamento no Cerrado este ano, por enquanto, está menor do que no ano anterior; mas isso não significa que a pressão sobre o bioma esteja arrefecendo. Segundo Mercedes, é comum proprietários desmatarem grandes áreas num mesmo ano, quando as condições são propícias (como foram no ano passado), e irem ocupando essas áreas gradativamente ao longo dos anos seguintes, conforme a necessidade. Historicamente, cerca de metade da cobertura vegetal original do Cerrado já foi desmatada, e a metade que resta está bastante fragmentada, comprometendo a conservação da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos do bioma presta para a sociedade, alerta a pesquisadora.
Na Mata Atlântica, o último Atlas produzido pela Fundação SOS Mata Atlântica, em parceria com o Inpe, registrou um aumento de 27% no desmatamento do bioma no ano passado, após dois anos consecutivos de queda. Foram 145 km2 de floresta derrubada entre outubro de 2018 e setembro de 2019; uma área irrisória se comparada à do desmatamento na Amazônia ou no Cerrado, mas muito relevante para um bioma que já perdeu quase 90% de sua cobertura vegetal original.
“É uma ordem de grandeza que assusta”, diz o pesquisador Jean Paul Metzger, professor titular de ecologia no Instituto de Biociências da USP. “Minha expectativa para os próximos anos é bastante negativa; não vejo perspectiva de melhora a curto prazo”, completa ele, referindo-se aos rumos da política ambiental no país.
Na Mata Atlântica, assim como no Pampa e no Pantanal, o número de queimadas observado nos primeiros cinco meses deste ano já está bem acima do registrado no mesmo período de 2019, segundo o programa de monitoramento de queimadas do Inpe.
O bioma é protegido desde 2006 pela chamada Lei da Mata Atlântica, que restringe a abertura de novas áreas e exige a recomposição das matas que foram derrubadas de 1993 até agora. O discurso político do governo Bolsonaro, porém, vai no sentido oposto do espírito da lei, segundo pesquisadores e ambientalistas.
Um despacho do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, publicado no início de abril, praticamente anistiava desmatamentos realizados em áreas de preservação ambiental dentro do bioma até 2008, determinando que as regras do Código Florestal (de 2012) deveriam se sobrepor às da Lei da Mata Atlântica. O Ministério Público Federal, em parceria com a Fundação SOS Mata Atlântica e a Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público do Meio Ambiente (Abrampa), entrou com uma ação civil pública contra o despacho, que acabou sendo revogado pelo ministro no início deste mês.
Os alertas usados pelo MapBiomas para a Mata Atlântica, Caatinga, Pantanal e Pampa são provenientes do sistema GLAD (Global Land Analysis and Discovery), da University de Maryland, nos Estados Unidos. Trata-se de um sistema de monitoramento global, sem adaptações específicas para a detecção de desmatamentos nesses biomas (que possuem, cada um deles, características distintas de cobertura vegetal), além de não fornecer uma varredura constante dessas áreas. Por isso, diz o relatório, “o número de alertas e as áreas identificados pelo MapBiomas Alerta constituem um valor conservador que ainda subestima a área total desmatada” nesses biomas.
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Pesquisadores alertam para explosão de desmatamento em 2020 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU