“Não vamos voltar ao mundo que tínhamos antes”. Entrevista com Muhammad Yunus

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20 Abril 2020

"A extensão dos desastres causados pela pandemia de coronavírus no mundo é devastadora. Apesar disso, e apesar dos enormes danos, estamos enfrentando uma oportunidade sem precedentes", escreve o economista de Bangladesh Muhammad YunusNobel da Paz, em artigo publicado por La Repubblica, 18-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Neste momento, o mundo inteiro deve encontrar uma resposta para uma grande pergunta. Não se trata de reiniciar a economia porque, felizmente, já sabemos como fazê-lo. As experiências vividas no passado nos ajudaram a desenvolver uma terapia genérica para revitalizar a economia. Não, a grande questão que precisamos responder é outra: trazemos o mundo de volta à situação em que estava antes do coronavírus ou redesenhamos tudo de novo? A decisão só cabe a nós.

 

Inútil dizer que, antes do coronavírus, o mundo não estava indo bem. Até o momento em que todas as manchetes passaram a ser dedicadas inteiramente ao coronavírus, em todos os lugares as pessoas gritavam em alta voz alta anunciando as terríveis calamidades que estavam prestes a acontecer. Estávamos literalmente contando os dias até o planeta inteiro se tornar inabitável devido à catástrofe climática. Falávamos sobre a gravidade da ameaça de desemprego em massa causada pela inteligência artificial e como a concentração de riqueza nas mãos de poucos estava atingindo um nível explosivo. Lembrávamos constantemente que esta década é a última à nossa disposição. No final dela, de fato, todos os nossos esforços levarão a resultados apenas parciais, inadequados para salvar nosso planeta.

 

Devemos voltar a esse mundo? Cabe a nós a escolha.

 

De repente, o coronavírus mudou radicalmente o contexto das coisas e os fatos do dia a dia. Abriu possibilidades temerárias diante de nossos olhos que nunca haviam sido considerados antes. De repente, aqui estamos diante de uma tábula rasa. Podemos ir em qualquer direção que quisermos. Que liberdade de escolha incrível!

 

Antes de começarmos de novo, precisamos decidir que tipo de economia queremos. Em primeiro lugar e acima de tudo, a economia é uma ferramenta que pode nos ajudar a perseguir os objetivos que nós mesmos estabelecemos. Não deve nos fazer sentir atormentados e impotentes. Não deveria agir como uma armadilha letal armada por algum poder divino para nos infligir uma pena. Nunca devemos esquecer, nem por um instante, que a economia é um instrumento criado por nós, homens. Portanto, devemos continuar a projetá-lo e reconfigurá-lo até que nos deixe a todos felizes. É uma ferramenta desenvolvida para alcançar a máxima felicidade coletiva possível.

 

Se, em determinado momento, tivermos a sensação de que não está nos levando aonde queremos ir, imediatamente sabemos que há algo errado com o hardware ou software que estamos usando. Tudo o que precisamos fazer é arrumá-lo. Não podemos nos eximir simplesmente dizendo "desculpem, não podemos alcançar nossos objetivos porque nosso software e hardware não nos permitem". Seria uma desculpa patética e inaceitável. Se quisermos criar um mundo de zero emissões de dióxido de carbono, construiremos o software e o hardware certos para isso. Se queremos um mundo em que o desemprego não exista, faremos o mesmo. Se queremos um mundo em que não haja nenhuma concentração de riqueza, faremos o mesmo. É tudo uma questão de ajustar o hardware e software certos. Nós temos as capacidades. Nós podemos fazer isso. Quando os seres humanos decidem fazer algo, o fazem e pronto. Nada é impossível para os homens.

A notícia mais empolgante ligada à crise do coronavírus é que está nos oferecendo oportunidades inestimáveis para um novo começo. Podemos começar projetando o hardware e o software em uma tela praticamente em branco.

 

A retomada pós-coronavírus deve ser uma recuperação impulsionada por uma conscientização social. Para nos ajudar de modo substancial é preciso uma decisão global unânime: vamos deixar claro, não queremos absolutamente voltar ao mundo de antes. Em nome da retomada, não queremos pular na mesma panela de óleo fervente de antes.

 

Os governos devem garantir aos cidadãos que esse programa de retomada será completamente diferente daqueles do passado. A próxima retomada não será implementada para trazer as coisas de volta para onde estavam antes. Será a recuperação das pessoas e do planeta. Devem ser criadas empresas capazes de tornar isso possível. O ponto crucial para o lançamento de um programa pós-coronavírus consistirá em colocar uma nova consciência social e ambiental no centro de todas as decisões e todos os processos políticos de tomada de decisão. Os governos terão que garantir que nenhum dólar acabe no bolso de alguém a menos que haja garantia de que, comparado a qualquer outra opção, esse dólar dado a alguém trará o máximo benefício social e ambiental possível para a sociedade como um todo. Tudo o que será feito na retomada deve levar à criação de uma economia consciente para cada país e para o mundo inteiro nos níveis social, econômico e ambiental.

 

Chegou a hora

 

Começaremos como recomendado pelas terapias do passado com os bailout, pacotes de salvação in extremis, mas desta vez vamos usá-los para projetos e intervenções estimulados pela conscientização social. Devemos ajustá-los agora, em plena crise, porque, quando ela acabar, haverá um tumulto de velhas ideias e velhos exemplos direcionados a intervenções em uma determinada direção. Haverá quem argumente enfaticamente para inviabilizar as novas iniciativas e dirá que são políticas nunca testadas. (Quando propusemos definir as Olimpíadas como empresas sociais, os opositores utilizaram exatamente essas palavras. Agora, os Jogos Olímpicos de Paris de 2024 são entendidos nesse sentido, e o entusiasmo está aumentando.) Precisamos nos preparar antes que o corre-corre geral comece. Chegou a hora. O momento é agora.

 

Empresa social

 

Neste meu artigo, ilustro uma série de políticas que eu conheço muito bem e nas quais confio. Isso não exclui que existem muitas outras opções criativas e eficazes. Portanto, também encorajo outras pessoas a apresentarem suas recomendações, tendo sempre em mente que elas deverão atender aos requisitos de um programa de retomada impulsionado pela conscientização social e ambiental. Todos nós podemos trabalhar juntos para aproveitar a oportunidade que nos é apresentada.

 

No NRP (New Recovery Programme, Programa da nova retomada) que estou propondo, atribuo um papel fundamental a uma nova forma de empresa chamada empresa social. É uma empresa criada exclusivamente para solucionar os problemas das pessoas, uma empresa que não gera lucro pessoal para os investidores, exceto apenas a recuperação do investimento inicial. Após o retorno do investimento original, todos os lucros subsequentes devem ser reinvestidos na empresa.

 

Os governos terão muitas oportunidades para incentivar, priorizar, abrir espaço para as empresas sociais se engajarem em responsabilidades crescentes e de amplo alcance pela retomada. Ao mesmo tempo, os governos terão que levar adiante os programas com os quais devem se comprometer em qualquer caso, por exemplo, assistência aos pobres e desempregados, graças aos programas tradicionais de assistência social, restauração dos programas de assistência sanitária e com eles todos os serviços necessários, apoiando todas as empresas de todos os setores em que as opções para o social business ainda não tenham progredido.

 

Na frente das empresas sociais, os governos podem criar Social Business Venture Capital Funds, fundos no nível central e local; podem estimular o setor privado, fundações, instituições financeiras e fundos de investimento a fazer o mesmo; podem incentivar as empresas tradicionais a se transformarem em empresas sociais ou a fazer acordos com parceiros, empresas e sócios que operam nesse nível, para que todas as empresas sejam incentivadas a ter uma divisão que trate de social business ou a criar empresas sociais que operam em joint venture com outras empresas desse tipo.

 

Com base no NRP, os governos poderão financiar as empresas sociais para adquirir outras empresas e aliar-se àquelas em dificuldade para transformá-las por sua vez em empresas sociais. O banco central poderá dar prioridade a estas últimas na alocação de financiamentos por instituições financeiras, a serem investidos no mercado de ações ou para injetar investimentos de empresas sociais fortes. Grandes oportunidades surgem em toda parte: os governos deveriam envolver o maior número possível de atores engajados nas empresas sociais.

 

Quem investe nas empresas sociais?

 

Quem são os investidores nas empresas sociais? Onde podem ser encontrados? Eles estão por toda parte. Nós não os vemos por que os livros textos de economia em circulação não reconhecem sua existência. Como resultado, nossos olhos não estão acostumados a identificá-los. Apenas recentemente, foram planejados cursos de economia para abordar algumas questões nesse sentido, como as empresas sociais, o empreendedorismo social, os investimentos de impacto social, as organizações sem fins lucrativos e também algumas questões inspiradas na popularidade global do Grameen Bank e do microcrédito.

 

Enquanto a economia continuar sendo uma ciência para maximizar os lucros, não poderemos confiar nela para desenvolver um programa de relançamento e retomada com base na conscientização social e ambiental. Mas não poderemos girar o interruptor e desligar a economia tradicional da noite para o dia. Enquanto ela continuar suas atividades, os governos terão que criar cada vez mais espaço para que as empresas sociais façam valer sua confiabilidade e eficiência. O sucesso das empresas sociais se tornará tangível quando constatarmos que aqueles que maximizam os lucros para sua própria vantagem não apenas coexistirão com empresários interessados em ter zero lucros pessoais - e nascerão amizades e formas de colaboração - mas também quando cada vez mais empresários e investidores interessados no ganho pessoal criarão empresas sociais por conta própria ou vinculando-se em parceria com outras atividades sociais. Esse talvez será o começo de uma economia impulsionada pela conscientização social e ambiental.

Assim que a política do governo começar a reconhecer os empreendedores e os investidores na empresa social, eles se apresentarão com entusiasmo para assumir o importante papel social que será necessário naquele momento. Os empreendedores das empresas sociais não pertencem a uma pequena economia de "pessoas que fazem o bem". Aqui falamos sobre um ecossistema global significativamente grande, que inclui as grandes multinacionais, os grandes fundos das empresas sociais, os tantos administradores talentosos, bem como instituições, fundações, trust com muitos anos de experiência nas áreas de finanças e gestão empresas sociais globais e locais.

Finalmente, quando o conceito básico e a experiência das empresas sociais começarem a receber a atenção dos governos, muitos inamovíveis empreendedores interessados no ganho pessoal terão prazer em mostrar a parte mais desconhecida de seu talento, tornando-se por sua vez empresários de empresas sociais de sucesso e desempenharão papéis de importância inestimável em tempos de crise social e econômica, como a crise das mudanças climáticas, a crise do desemprego, a crise de concentração da riqueza e assim por diante.

 

Os seres humanos nascem empreendedores, não candidatos a postos de trabalho

 

O NRP deve quebrar a divisão tradicional do trabalho entre os cidadãos e o governo. Supõe-se como certo que a tarefa dos cidadãos seja cuidar de suas famílias e pagar os impostos, e que é responsabilidade do governo (e, até certo ponto, do setor sem fins lucrativos) cuidar de todos os problemas da coletividade, como o clima, o mundo do trabalho, a saúde, a educação, a água e assim por diante. O NRP deve derrubar esse muro divisório e incentivar todos os cidadãos a avançar, a demonstrar seus talentos na solução de problemas através da criação de empresas sociais. Sua força não reside no tamanho de suas iniciativas, mas em seu número. Uma pequena iniciativa multiplicada por um grande número se transforma em uma ação nacional significativa.

 

Um dos problemas que os empreendedores de empresas sociais poderão enfrentar e resolver imediatamente será o do desemprego causado pelo colapso da economia. Quem quiser investir nas empresas sociais poderá tratar de criá-las para produzir postos de trabalho em cascata para os desempregados. Também pode optar por transformar os desempregados em empresários por sua vez, e demonstrar ao fazer isso que os seres humanos nascem empresários, não candidatos a emprego. As empresas sociais poderão trabalhar em conjunto com o sistema do governo para criar um sólido sistema de saúde.

Quem investe em uma empresa social não precisa necessariamente ser uma pessoa física. Pode ser uma instituição, por exemplo, ou um fundo de investimento, uma fundação, um trust, uma companhia de gestão ou administração de empresa social. Muitas dessas instituições sabem muito bem como trabalhar de maneira amigável com os empresários tradicionais.

 

Um convite profícuo lançado pelo governo para o desespero e a situação de emergência do período pós-coronavírus pode desencadear uma onda de atividades até agora desconhecidas. Será um teste decisivo para a liderança demonstrar como o mundo pode ser feito renascer de maneiras inéditas e totalmente novas, começando com os jovens, as pessoas de meia idade e os idosos, homens e mulheres.

Não haverá um lugar para se esconder

 

Se não conseguirmos nos empenhar de um programa de retomada econômica pós-coronavírus impulsionado pela conscientização social e ambiental, inevitavelmente tomaremos um caminho muito pior do que a catástrofe provocada pelo coronavírus. Para nos defendermos do coronavírus, podemos nos trancar em nossas casas, mas, se não dermos respostas adequadas às questões globais em constante agravamento, não teremos lugar para nos esconder da Mãe Natureza zangada conosco e das massas de pessoas zangadas em todo o planeta.

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