20 Março 2020
Assim como o Ocidente viu uma oportunidade ideológica no início da crise, agora a China está contra-atacando, argumentando que o vírus era algum tipo de maquinação estadunidense.
O artigo é do sinólogo italiano Francesco Sisci, professor da Universidade Renmin, em Pequim, na China. O artigo foi publicado por Settimana News, 18-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No dia 16 de março, a União Europeia restringiu todas as viagens não essenciais à região por pelo menos 30 dias. Foi uma medida oficial depois de dias de limites não oficiais às travessias da fronteira, que, de fato, suspendeu o seminal Acordo Schengen da União, que abolira as fronteiras internas para os cidadãos em grandes áreas do continente.
Em uma videoconferência no mesmo dia, os ministros da Economia da zona do euro encarregaram o fundo de resgate do bloco – o Mecanismo Europeu de Estabilidade (ESM, na sigla em inglês), com um montante de 410 bilhões de euros e que foi estabelecido após a crise financeira de 2008-2009 – de levar em consideração formas de combater as consequências econômicas do surto.
O pronunciamento foi impressionante: “Faremos o que for preciso e mais para restaurar a confiança e apoiar uma recuperação”, disse o presidente do Eurogrupo, Mario Centeno, ecoando o ex-presidente do Banco Central Europeu (BCE), Mario Draghi, que, com seu discurso sobre “o que for preciso” de julho de 2012, provocou a maré de especulação contra o euro.
Desta vez, porém, a crise é diferente, assim como parece ser o compromisso da União Europeia. De fato, por enquanto, os ministros evitaram pedir especificamente que o ESM desempenhe um papel no enfrentamento da crise, e, diferentemente do BCE, que pode tomar decisões por conta própria, o Eurogrupo é um órgão consultivo.
Quatro semanas após a centelha da crise do vírus na Itália, a União Europeia não conseguiu se unir até agora. O governo italiano acusou a União Europeia e seus Estados membros de serem lentos em ajudar o país devido à epidemia do coronavírus. Neste momento, vários países adotaram abordagens individuais muitas vezes em desacordo umas com as outras.
Além disso, a Alemanha e a França estão entre os países da União Europeia que impuseram limites à exportação de equipamentos médicos de proteção, enquanto a China se ofereceu para vender 1.000 respiradores, 2 milhões de máscaras, 20.000 roupas de proteção e 50.000 kits para testes de coronavírus.
As diferenças não estão surgindo apenas na União Europeia. A Itália, atualmente o país com a pior crise de saúde depois da China, está envolvida em constantes disputas. O primeiro-ministro, Giuseppe Conte, tem estado frequentemente na TV pedindo responsabilidade e apoio mútuo. No entanto, os governadores da Lombardia e do Vêneto, as regiões do norte mais atingidas pela epidemia, reclamaram que Roma tem sido lenta e ineficaz, e decidiram tomar iniciativas por conta própria.
Existem também interesses políticos diferentes. Na Itália, Conte representa um partido, o M5, que, no Parlamento, tem cerca de 33% das cadeiras, relativamente a maioria, mas os pesquisadores dizem que agora receberão cerca de 10% dos votos. Por outro lado, a Lombardia e o Vêneto são governados pela Liga, partido de direita, com cerca de 17% do Parlamento, mas com mais de 30% de apoio nas pesquisas de opinião. Essas duas forças contrastantes estão aprofundando a antiga divisão Norte-Sul da Itália, nunca remendada.
Neste momento de confusão total, com uma série de vozes contraditórias, a Itália ficou estupefata diante das imagens do papa, que, no domingo, 15 de março, prestou homenagem solitária na Igreja de Santa Maria Maior, famosa porque sua Virgem Maria pôs fim à epidemia do século XVII.
A habilidade do papa de liderar a Itália com um gesto é muito importante, mas também arriscada. O Estado Pontifício nasceu no século VI, a partir da autoridade em ruínas do imperador romano. A preocupação com os Estados Pontifícios amarrou o papa ao destino da península italiana e da Europa ocidental durante séculos.
Se a ordem política na Itália e na Europa enfraquecesse, e a Igreja tivesse que intervir, isso minaria o esforço atual da Santa Sé de ser universal e de estar desvinculada de quaisquer interesses políticos específicos. No entanto, se a Itália mergulhasse em uma situação de crescente caos, isso minaria o ambiente político pacífico local necessário para a Igreja cuidar de si mesma e dos assuntos universais.
Em maior escala, o mesmo vale para a União Europeia. Muitos países europeus estão cansados e não têm mais nenhuma paciência com as constantes brigas internas e o amadorismo político da Itália. No entanto, esse sentimento europeu comum sobre a Itália não leva a mais coesão. Cada país é conduzido pelas suas próprias prioridades internas, pois as eleições domésticas, não as pan-europeias, determinam o destino de cada político.
Em suma, a Europa está desmoronando, e a Itália está rachando.
A criação da União Europeia não foi um produto europeu; foi uma ideia estadunidense. No fim da Segunda Guerra Mundial, os EUA queriam impedir futuras guerras destrutivas como as duas que haviam devastado o Velho Continente, e tentaram interromper o avanço da URSS para o Ocidente. No início dos anos 1990, a União Europeia definiu uma mesma moeda, o euro, contra a vontade estadunidense, e depois ampliou-se para o Oriente, para países do antigo bloco soviético, desta vez seguindo os desejos estadunidenses.
O alargamento ajudou a impedir a crescente divisão entre a Europa oriental e ocidental, que provocava todo tipo de ressentimento mútuo. Isso diluiria a unidade política da União Europeia, mas poderia ajudá-la na Rússia, que, apesar de ser mais fraca, ainda era vista com apreensão.
Isso também foi possível porque, no fim da Guerra Fria, uma guerra massiva dilacerou a Iugoslávia. Os países europeus tinham pautas e objetivos diferentes na Iugoslávia, estavam amargamente em desacordo uns com os outros e não conseguiam encontrar uma causa comum ou uma vontade comum para intervir lá.
Todos eles pediram a intervenção militar dos EUA para recuperar sua unidade como união. Os EUA estavam relutantes em enviar tropas, mas, no fim, fizeram isso para ajudar a consertar as cercas entre os principais membros da União Europeia.
Ou seja, a União Europeia não só nunca foi totalmente “independente”, como também, em momentos cruciais da sua história, os EUA a resgataram de forças centrífugas destrutivas, além de favorecer fortemente a unidade política do Velho Continente.
Aqui, a desunião política e econômica em lidar com o vírus e suas consequências econômicas atinge um assunto menos urgente, mas mais profundo, a crescente desconfiança política da China.
O surto da epidemia na China no fim de janeiro encheu os jornais ocidentais da ideia de que a doença era o “momento Chernobyl” de Pequim, referindo-se ao incidente massivo e mal gerido de 1986 na usina nuclear soviética de Chernobyl, que desencadeou uma profunda crise na URSS. No entanto, dois meses após o início oficial da pandemia em Wuhan, as coisas parecem ter se revertido. A maneira da China de lidar com a crise atualmente (não sabemos no futuro) parece melhor do que a ocidental [1] enquanto os países ocidentais se atrapalham, mudam de ideia e não conseguem chegar a uma abordagem coordenada.
De fato, após algumas hesitações iniciais e depois do aumento da doença na Itália [2], todos os países estão se convertendo ao modo chinês de lidar com o problema – quarentena rigorosa para a população. No entanto, preocupações recíprocas sobre o Ocidente e a China se acentuam por causa disso. Assim como o Ocidente viu uma oportunidade ideológica no início da crise, agora a China está contra-atacando, argumentando que o vírus era algum tipo de maquinação estadunidense.
“A desconfiança mútua e as percepções errôneas são emblemáticas de um clássico dilema de segurança, no qual ações tomadas por um Estado para melhorar a sua segurança levam a reações de outros, o que torna o Estado original menos seguro. Pior, os programas de biodefesa são tão opacos e provocam tanta antipatia moral que encorajam ‘pressuposições especulares’: quando se percebe que um Estado está buscando armas biológicas, seus rivais provavelmente também tentarão adquiri-las”, escreve Yanzhong Huang [3].
Essa “vitória da propaganda” chinesa tem lados diferentes. Definitivamente, ela ajuda a liderança chinesa em um momento muito difícil internamente. Por outro lado, irrita outros países em um momento de extrema necessidade e quando eles ainda estão muito confusos sobre o que fazer. A controvérsia está aumentando. O presidente dos EUA, Donald Trump, chamou a epidemia de “vírus chinês”, o que pareceu ser um insulto aos chineses, que reagiram a retaliações promissoras:
“Em termos globais, se conseguirmos fazer com que as atividades econômicas voltem ao funcionamento no primeiro trimestre, então a China estará cerca de dois meses à frente do restante do mundo em termos de recuperação econômica. Embora os efeitos da repercussão a partir das interrupções do mercado global e das cadeias de suprimentos possam ser inevitáveis, o mercado interno da China e a recuperação do consumo ainda serão suficientes para atrair investimentos estrangeiros e manter o papel do país nas cadeias de suprimentos em meio à turbulência global. E é exatamente isso que a China deve fazer para lidar com a pressão de Washington. Focar no nosso próprio trabalho e puxar a economia chinesa de volta é a melhor opção. Enquanto a nossa economia se estabiliza, a China terá força suficiente para resistir à pressão estadunidense e para reagir no momento certo” [4].
Depois disso, Pequim anunciou a expulsão de jornalistas estadunidenses das cinco mais importantes organizações midiáticas dos EUA. E uma escalada de ações e reações pode estar apenas começando.
Na verdade, a luta contra essa doença e suas consequências econômicas será um longo processo, e as questões ocidentais atuais não equivalem a uma rota total para fora do Ocidente. E as diferentes abordagens e preocupações sobre a China entre os EUA, Europa e países asiáticos também não são uma evidência da vitória final da China. A atual aversão dos EUA a apresentar uma “frente unida” em relação a Pequim [5] não deve iludir Pequim a pensar que o pior já passou. Além disso, a pandemia em curso e a consequente ruptura econômica significam que há e haverá menos recursos e, portanto, mais concorrência, pois todos lutarão por eles.
O Ocidente não tem uma “frente unida anti-China” porque, atualmente, os EUA preferem lidar com a China por conta própria, apenas com apoio ad hoc de aliados. Até agora, o Ocidente não buscou o apoio abrangente e integrado deles, porque os EUA ainda não desenvolveram um plano/estratégia abrangente para lidar com Pequim. Ou seja, os EUA não produziram uma nova versão do “longo telegrama” de George Kennan, que moldou a abordagem dos EUA em relação à URSS nos anos 1940, e não instituiu ou redirecionou contra a China uma ampla gama de organismos internacionais, como a Otan, nascida para conter os soviéticos.
Mas o que acontecerá com os EUA agora que a China se orgulha do seu sucesso diante das dificuldades ocidentais e daquele que pareceu em princípio um fácil “momento Chernobyl”? Isso pressionará os EUA a desistir das suas disputas com Pequim ou fortalecerá a sua resolução? A espiral de retaliações mútuas levará os EUA a também entrar nela? Isso poderia desencadear forças centrípetas que poderiam levar a União Europeia e os EUA a se unirem de novo.
A realidade é que as pragas mudam mundos [6]. Nunca na história da humanidade houve uma epidemia global cavalgando as caudas de uma recessão em massa e de pestilentas disputas internacionais. Esses três elementos se alimentam uns dos outros em um círculo vicioso.
1. Ver, por exemplo, How Beijing reframed the coronavirus response narrative, How China is planning to use the coronavirus crisis to its advantage e Coronavirus Is China's Chance to Weaken the Liberal Order
2. Ver False beliefs of the Inevitable Chinese Rise
3. Ver U.S.-Chinese Distrust Is Inviting Dangerous Coronavirus Conspiracy Theories
4. The Global Times Trump’s ‘Chinese Virus’ tweet foreshadows escalating clash
5. Ver How to Lose Friends and Strain Alliances
6. Ver Doom or Renaissance in China after a Plague
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O vírus que divide a União Europeia – ou não. Artigo de Francesco Sisci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU