19 Março 2020
Ismael Moreno Coto, jesuíta hondurenho, conhecido como Padre Melo, compartilha neste depoimento sobre a experiência e as possibilidades que se abrem ao estar confinado devido à pandemia de coronavírus. O Padre Melo, amigo e companheiro de luta da ambientalista Berta Cáceres, assassinada há 4 anos em Honduras, é um comunicador social, diretor de uma importante rádio de Honduras, líder de movimentos sociais e ferrenho opositor e, por isso, perseguido pelo governo autoritário de Juan Orlando Hernández. Para ele, nesse tempo de clausura "um vírus nos alerta que tudo é relativo, que hoje estamos carregando objetivos e uma agenda cheia de problemas e, de um momento para o outro, se pode escurecer toda a nossa vida e acabarmos sendo o que somos, uma simples cinza. Vamos nos amar e gozar da vida, em sua bela dimensão criativa, porque, senão, com o menor descuido, ficaremos sem um único suspiro".
A crônica é de Padre Melo, publicada por CPAL Social, 18-03-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Depois de uma agitada vida, de andar todo o tempo com pressa, para chegar de todos os modos ainda sempre tarde, o confinamento obrigatório nas paredes da casa, ou no máximo reduzido ao perímetro de um solar, necessita saber administrar para não cair no estresse extremo do enclausuramento. Depois dos primeiros dias dentro de casa, me provoca compartilhar essas pequenas experiências que vão deixando esses tempos que já tem seu vírus coroado.
É uma oportunidade para valorizar o tempo, sem a carga de uma agenda. Simplesmente nos deitarmos um pouco em uma cama, estirar as pernas em uma cadeira ou nos atirarmos em uma rede, sem o escrúpulo de que estamos perdendo tempo, nem de ficarmos apenas conosco por alguns minutos, ou um par de horas, em detrimento da agenda que temos no trabalho.
É uma oportunidade para deixar por um momento esses aparatos que controlam nossas vidas, descansos, mentes e corações. Sempre está à espreita, porém talvez nunca poderemos ter outro tempo mais oportuno para outras atividades, tão bonitas em outros tempos ameaçados por outros vírus, e tão perdidos nesses tempos de falsa realidade. Vamos, nos agarremos a essa outra fantástica realidade da novela, do conto, da história, inclusive a mal narrada. Agarremo-nos novamente a esse livro gigante, esse monte de folhas cheias de letras e conteúdos tão profundos. Não tenhamos medo de encarar uma novela de García Márquez, Vargas Llosa, Alejo Carpentier, Ángela Mastretta, Isabel Allende, Milán Kundera, ou voltar a aqueles clássicos russos ou hispânicos que moldaram tão lindamente a cultura de muitas gerações que nos ajudaram a sonhar com um mundo utópico e ao mesmo tempo com os pés muito bem plantados na terra. Não, não agarrem um livro sobre o Estado de Direito, nem esses grossos de teologia ou de política, esses podem esperar, para isso estão os armários para guardá-los ao menos por um tempo para próximas consultas. Refiro-me a nos reconciliar com as páginas que enfeitiçam, contagiam e apaixonam, não as que assustam e espantam.
Tão ocupados que andamos pelas análises de contexto, do fenômeno da migração, das terríveis violações aos direitos humanos e de rebuscadas fraseologias marcologistas (“É pertinente se alcançamos expertise como fornecedores dos padrões e termos de referência que exige o EPU...” e a buscar mais palavras tão próximas aos eruditos que se expõem nos grandes hotéis, e cada vez mais longe da cotidianidade do povo), que nesse tempo temos a oportunidade de ficarmos nas pequenas narrativas (ainda que não narremos nada) domésticas, de valorizar os causos das crianças, o cantar do galo e o estridente latido de um cachorro. A vida não se constrói nem se reduz somente desde cima, desde as cúpulas, da Academia, nem desde uma boa reportagem, nem desde a escrita de uma análise. Essa é apenas uma parte, e não a mais importante da existência. A vida se faz, se refaz, se redescobre, renasce primordialmente desde os pequenos detalhes. É muito provável que não voltaremos a ter uma nova oportunidade – fora das planejadas férias – para nos redescobrir desde essa incessante pequenez, quanto nesse tempo de enclausuramento obrigatório.
Ao andar com pressa e com os minutos contados e recortados, passamos também correndo pelo tato e contato com os seres que conformam nosso espaço mais humanamente familiar (ou comunitário). É certo que amamos e as famílias e companheiros nos amam, porém a convivência é cada vez mais escassa e corrida. Esse tempo é oportunidade para conversar com algo de mais calma, para tomarmos com tranquilidade um café com pão, e ver juntos os problemas. Até oportunidade para nos conhecermos em nossas próprias misérias e caráteres, com nossos vícios e com nosso mau temperamento. E assim confirmar, a partir da tranquilidade de um tempo nosso, o quanto nos necessitamos e nos amamos. E até ter a oportunidade de pronunciá-lo.
É claro que, para isso, você deve ter um pequeno pátio, mas se não, talvez na sala ou na cozinha, talvez tenhamos cactos, é hora de apreciar essa pequena natureza, como a vejo neste momento em que escrevo. Observo uma bela planta com belas folhas vermelhas alongadas, e isso me faz perceber que há 16 anos eu próprio a plantei em um domingo de tédio. Mas eu passei 16 anos sem voltar a olhar para essa semente generosa. E, ao mesmo tempo, existem outras plantas com flores. E se a vida nos dá tempo hoje em dia, podemos até plantar algo para que um dia – quando cairmos em outro descanso forçado, se sobrevivermos a esse vírus coroado de ameaças – observemos o fruto de nossa semeadura em tempos de feroz confinamento.
A cozinha, pensamos, é uma questão daqueles que passam no espaço doméstico, não daqueles que andam com o computador eternamente debaixo dos braços. E não é que hoje não carreguemos esse bicho, mas também é hora de abordar, talvez timidamente, o fogão, e termos paciência para cozinhar não apenas um ovo, mas para tentarmos inventar algum lanche para saborear e compartilhar com aqueles com quem convivemos neste inevitável confinamento. A comida se torna uma oportunidade para saborear gostos e, a partir da simplicidade, podemos nos recriar em amizade e ternura que se alimentam do calor de uma casa, muitas vezes abandonada por tantas turbulências diárias das quais vivemos sujeitos.
Ah, o mundo, com seus problemas e complexidades! E nós que acreditamos nisso, e um vírus invisível nos colocou em xeque-mate. E um vírus nos alerta que tudo é relativo, que hoje estamos carregando objetivos e uma agenda cheia de problemas e, de um momento para o outro, se pode escurecer toda a nossa vida e acabarmos sendo o que somos, uma simples cinza. Vamos nos amos e gozar da vida, em sua bela dimensão criativa, porque, se não, com o menor descuido, ficaremos sem um único suspiro... E então, no confinamento, podemos perceber que de repente há tempo para tudo, que Deus dá a todos, exceto na pressa que sempre nos atrasa. Há tempo para agradecer calmamente a Deus, mesmo pelo dom de estar isolado neste momento, refazendo e renascendo para uma vida que continuará nos esperando, porque afinal, esse vírus, se não nos mata antes, passará e devemos retornar à pressa, às agendas e às perguntas dos livros pesados. Mas enquanto esse retorno nos espera, vamos viver esse tempo com intensidade e manter o melhor que nos resta para levá-lo à vida agitada em tempos de “normalidade globalizada”. Por enquanto, continuo desfrutando esse tempo de confinamento forçado, até para escrever bobagens aparentemente inúteis...
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
'Desde casa'. Depoimento de Padre Melo, jesuíta hondurenho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU