05 Março 2020
Proprietário de fazenda desmatada em Rondônia e foragido da Justiça desde 2017, Valdelir Souza pode ter recorrido à “lavagem de gado” para conseguir vender animais à JBS.
A reportagem é de André Campos e Dom Phillips, publicada por Repórter Brasil, 03-04-2020.
Apontado como o mandante de uma das maiores chacinas já registradas na Amazônia, que em abril de 2017 deixou nove mortos em Colniza, no Mato Grosso, Valdelir João de Souza está foragido da Justiça há mais de dois anos, mas continua criando gado em uma área ocupada ilegalmente em um assentamento da reforma agrária em Rondônia. Ao longo de 2018, Souza vendeu gado a pecuaristas da região que, por sua vez, forneceram animais a dois dos maiores frigoríficos brasileiros: a JBS e a Marfrig, segundo documentos sanitários obtidos pela Repórter Brasil.
Em 9 de maio de 2018, quando já estava foragido, a fazenda Três Lagoas, de propriedade de Souza, repassou ao sítio Erança de Meu Pai (sic), de Maurício Narde, 143 animais fêmeas. Onze minutos depois, o sítio de Narde transferiu 143 animais, com as mesmas características de sexo e idade, para abate no frigorífico da JBS.
Poucos meses depois, em 25 de junho de 2018, Souza também negociou 153 bovinos com a fazenda Morro Alto, de José Carlos de Albuquerque, que naquele ano constava na lista de fornecedores da JBS e que abasteceu uma unidade de abate da Marfrig, em Rondônia.
Especialistas ouvidos pela Repórter Brasil afirmam haver indícios de que Souza fez uso de uma prática recorrente entre fazendas com problemas ambientais, conhecida como “lavagem de gado”, para conseguir vender animais à JBS.
A prática consiste em transferir o gado de uma fazenda com desmatamento ilegal para uma propriedade “ficha-limpa” com o objetivo de encobrir a origem dos animais para os compradores. A “lavagem de gado” tem como objetivo driblar o compromisso de “desmatamento zero” na Amazônia, assumido pelos maiores frigoríficos brasileiros, e o TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) da Carne, um pacto firmado em 2009 pelas produtoras brasileiras de carne para monitorarem seus fornecedores e suspenderem a compra de fazendas com problemas socioambientais, entre eles desmatamento ilegal ou trabalho escravo.
Imagens de satélite mostram que grande parte de fazenda Três Lagoas, do pecuarista foragido, foi desmatada em 2015. Souza não poderia, portanto, fornecer diretamente à JBS, já que a empresa se comprometeu a não fazer negócios com fazendas amazônicas que tenham desmatamento registrado após 2009.
“Não faz nenhum sentido um animal ficar 11 minutos em uma fazenda para depois ir para o frigorífico. Essa história tem todos os componentes de um processo de triangulação para lavagem de gado”, analisa Mauro Armelin, diretor da Amigos da Terra, organização que estuda a cadeia produtiva da pecuária desde 2009, após analisar os documentos enviados pela Repórter Brasil. “Provavelmente foi uma triangulação apenas no papel, ou seja, tudo indica que os animais foram enviados diretamente ao frigorífico sem passar por uma segunda propriedade”, completa.
Em entrevista ao The Guardian, Maurício Narde confirmou a transação comercial, mas não explicou porque vendeu à JBS esses 143 animais poucos minutos depois de tê-los comprado de Valdelir Souza. “A gente compra e vende. É só para girar mesmo”, afirmou, antes de decidir não responder mais aos questionamentos da reportagem ao telefone. Além de comprador de gado, Narde já foi funcionário de uma das serrarias de Souza, a Madeireira Cedroarana – que entre 2007 e 2017 foi multada em R$ 902 mil pelo Ibama por crimes ambientais. A legislação não proíbe que frigoríficos comprem gado de fazendas e fazendeiros envolvidos em crimes comuns ou em problemas fundiários – há apenas a proibição da aquisição de animais criados em áreas embargadas por desmatamento ilegal.
O procurador Daniel Azeredo, um dos principais responsáveis pela assinatura do TAC da Carne, afirma que o acordo também proíbe a compra de gado de pessoas condenadas por assassinatos que estejam relacionados a conflitos por terra. Além disso, a JBS firmou um compromisso com o Greenpeace em 2009 para excluir de sua lista de fornecedores as fazendas que desmataram a floresta amazônica após outubro daquele ano.
Além dos problemas com o fornecimento de gado, a fazenda de Souza é irregular por estar localizada dentro do Projeto de Assentamento Lajes (PA Lajes), em Machadinho D’Oeste (RO) – município vizinho a Colniza – apesar de ele não constar na lista oficial de beneficiados pela reforma agrária. Ele declarou no Cadastro Ambiental Rural (CAR), em 2018, ser o proprietário de duas áreas dentro do assentamento, totalizando 1.052 hectares – tamanho superior ao permitido pela legislação dentro de um assentamento. O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) informou que os lotes citados pela reportagem estão em nome de outros beneficiários, não no nome do pecuarista foragido.
Já no envolvimento com a chacina, Souza foi denunciado pelo Ministério Público do Mato Grosso por homicídio triplamente qualificado. De acordo com o inquérito, ele contratou, há cerca de três anos, um grupo conhecido como “encapuzados” para matar os trabalhadores. Um mês após o crime, ele teve sua prisão preventiva decretada pela Justiça, mas nunca se entregou e continua com paradeiro incerto. O caso ainda não foi julgado.
O juiz responsável pelo processo determinou a pronúncia de Souza – ou seja, que ele deverá ser julgado por um tribunal de jurados. O advogado do acusado recorreu, e a decisão está sendo analisada em segunda instância do Tribunal de Justiça do Mato Grosso. As mortes em Colniza, segundo investigação policial, estavam relacionadas a disputas por terras e à extração ilegal de madeira – Souza, além de criar gado, também foi proprietário de serralherias na região.
Procurada pela Repórter Brasil, a JBS classificou como “irresponsável” qualquer tentativa de vinculação do nome da companhia a Valdelir João de Souza. A empresa afirma que ele nunca figurou em sua lista de fornecedores. Além disso, diz não “adquirir animais de fazendas envolvidas com desmatamento de florestas nativas, invasão de terras indígenas ou áreas de conservação ambiental, violência rural, conflitos agrários e que utilizam trabalho forçado ou infantil”.
“A companhia vem trabalhando em parceria com o Ministério Público Federal e a sociedade civil para aprimorar ainda mais seus controles, contribuindo para o combate da entrada de animais provenientes de fazendas irregulares ou de triangulações de gado na sua cadeia produtiva”, afirma a JBS.
Já a Marfrig informou que desde 2012 solicita de seus fornecedores diretos informações voluntárias sobre os pecuaristas e as fazendas dos quais eles possam ter adquirido animais. Em outubro, a empresa firmou parceria com a ONG ambiental WWF (World Wide Fund for Nature) para aprimorar o uso dessas informações na verificação de problemas em fornecedores indiretos. Leia aqui íntegra da nota.
Outra linha de trabalho da Marfrig é cruzar as informações comunicadas pelos fornecedores com mapas de áreas mais expostas ao risco de desmatamento, visando reduzir riscos. Segundo a empresa, mais da metade (53%) dos animais que ela abate no bioma amazônico são de fazendas de ciclo incompleto – ou seja, que adquirem animais de outras áreas durante a produção.
À Repórter Brasil, José Carlos de Albuquerque, o outro pecuarista que negociou com Souza gado do assentamento, afirmou à reportagem que o rebanho de Souza estava devidamente habilitado para venda, com documentação sanitária em dia, e que cabe aos órgãos de controle atestar a legalidade de bois e vacas disponíveis para negociações no mercado.
“É como comprar uma camiseta em uma loja de um shopping. Não posso levantar suspeição de que a loja não esteja com seu alvará de funcionamento em dia, ou taxas de bombeiros etc.”, diz o pecuarista proprietário Fazenda Morro Alto, em Monte Negro (RO). “Acredito nos órgãos de controle, de que aquela atividade ali estabelecida está sendo fiscalizada para tal.”
Apesar de registros sanitários apontarem a entrada de gado fornecido por Souza na Fazenda Morro Alto, Albuquerque afirma que a compra dos animais não foi consolidada por divergências comerciais. Os animais, segundo ele, foram “estornados” para o fornecedor. A reportagem pediu a ele o envio de documentos que comprovem o cancelamento do negócio, porém Albuquerque não respondeu.
A reportagem informou ao Incra sobre as irregularidades relativas à fazenda de Souza dentro do assentamento da reforma agrária. O órgão informou que, diante da denúncia feita pela reportagem, irá realizar uma vistoria na fazenda.
A Repórter Brasil e o The Guardian também tentaram ouvir Valdelir João de Souza, mas não houve retorno às tentativas de contato com o pecuarista, feitas por meio de seu escritório de advocacia. Em entrevista concedida ao Gazeta Digital, em 19 de abril de 2019, Valdelir Souza negou ter encomendado a chacina e diz que não se entrega por medo de ser assassinado na cadeia.
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Acusado por chacina de Colniza cria gado em fazenda irregular e vende a fornecedores da JBS e Marfrig - Instituto Humanitas Unisinos - IHU