03 Março 2020
A experiência de Miguel Hurtado o tornou um psiquiatra, mas conversamos sem enfatizar as terríveis consequências que os abusos sexuais acarretam em menores pelo resto de suas vidas. Prefere me mostrar os números assustadores oferecidos pelos relatórios de diferentes países sobre pedofilia na Igreja, todos bem documentados em El manual del silencio. La historia de la pederastia en la Iglesia que nadie quiso escuchar (Planeta).
Hurtado sofreu abusos em 1998 e rompeu o seu silêncio publicamente em 2019: o caso da Abadia de Montserrat, um dos maiores escândalos de pedofilia ocorrido na Catalunha. Para Hurtado, a melhor maneira de conviver com isso é unindo forças, passando de vítima a ativista. Hoje, é uma referência internacional na luta contra esses abusos.
A entrevista é de Ima Sanchís, publicada por La Vanguardia, 02-03-2020. A tradução é do Cepat.
Vítima de pedofilia na Abadia de Montserrat ...
Aos 16 anos, inscrevi-me em um grupo de escoteiros e sofri abusos por parte do monge Andreu Soler, durante um ano ...
É devastador. Ocorre em um ambiente no qual a criança espera proteção, ordem e apoio. Os abusos costumam ser precedidos por um processo de manipulação emocional que hoje tem um nome, grooming. Hoje, sabe-se que fomos doze vítimas.
Naquele momento, não disse nada?
Queixei-me quatro vezes a dois abades e não denunciaram o criminoso à justiça, não tentaram encontrar outras vítimas, não o puniram canonicamente expulsando-o da vida religiosa. Simplesmente, foi transferido para outro mosteiro e, antes que morresse, publicaram um livro de memórias com o prólogo de Jordi Pujol.
Como isso lhe afetou?
Perdi o controle de minha vida, de minhas emoções e a fé. Levei vinte anos, com muita terapia, para me empoderar, avançar e organizar uma ação coletiva de protesto em Montserrat.
Passou de sobrevivente a ativista.
Vi que era possível quando, no ano de 2012, em Boston, participei da conferência da SNAP, a organização de vítimas de padres católicos que expôs o escândalo da pedofilia em Boston, em 2002, onde foi demonstrado que 7% dos padres eram pedófilos, número que se repete na Austrália e Irlanda.
O Boston Globe publicou dados impactantes.
Com base nesses dados, o padre John Geoghan foi condenado a dez anos de prisão por abusar de 130 crianças, em seis paróquias, e o padre James Porter foi condenado por abusar de 28 crianças, embora tenha reconhecido cem.
Graças ao Boston Globe, as vítimas foram ouvidas e houve uma onda de denúncias sem precedentes na mídia e nos tribunais.
O Vaticano organizou uma cúpula.
Mas não saiu nenhuma medida contra os acobertadores. Atualmente, o número de vítimas reconhecidas de abuso por parte de religiosos católicos se aproxima de 50.000.
Essas são muitas vidas quebradas.
Desde então, participei dos principais protestos internacionais. Em 2014, fui um dos representantes das vítimas, quando o Vaticano teve que prestar contas perante o Comitê da Infância da ONU.
Também protestou contra a canonização de João Paulo II.
Desde meados dos anos 1980, conhecia o terrível problema de pedofilia que a Igreja sofria. O padre Thomas Doyle, advogado canônico da embaixada do Vaticano em Washington, entregou-lhe um relatório demolidor. Mas, negou-se a tomar medidas para punir os abusos contra crianças. De verdade, alguém acredita que é um santo?
A Igreja considerou que os abusos sexuais são pecados e não crimes.
E isso implica que devem ser expurgados dentro da instituição com penitência. A Conferência Episcopal Espanhola ainda não incluiu em seus protocolos a denúncia automática de todos os casos de pedofilia à justiça civil.
Em 2014, a Igreja Católica alemã fez uma auditoria interna.
Os resultados se tornaram públicos quatro anos depois: 3.677 menores haviam sofrido abusos sexuais, entre 1946 e 2014, nas 26 dioceses alemãs, por parte de 1.670 religiosos.
A Holanda também publicou um relatório devastador.
Expôs abertamente o abuso de 10.000 a 20.000 menores em internatos, seminários e orfanatos católicos, durante 40 anos, identificando 800 padres e funcionários da Igreja pedófilos. Na Bélgica, soube-se que ocorreram treze suicídios após os abusos.
Agora é a vez dos países hispânicos.
O epicentro foi o Chile, mas ainda está emergindo. Na Espanha, tanto o Governo como a Igreja se recusaram a estabelecer uma comissão de investigação, apesar das denúncias de pedofilia na Igreja terem aumentado 50%.
Completa-se um ano da Cúpula Antipedofilia de Roma.
Houve avanços, mas o acesso das vítimas à justiça depende do código postal: na Alemanha, os bispos indenizam as vítimas; na Irlanda, denunciam todos os casos à polícia; nos Estados Unidos, são expulsos do sacerdócio; no Chile, interrompem bispos, e na Espanha, os bispos rezam pelas vítimas.
Você fundou a associação de vítimas ‘Infância Roubada’.
Quando gravei o documentário da Netflix ‘Exame de consciência’, viajei pela Espanha e conheci muitas vítimas. Juntos, temos mais força para pressionar a Igreja e o Estado para que implementem as recomendações do Comitê da Infância da ONU.
Tolerância zero aos abusadores.
Também aos acobertadores. Denunciar os casos de pedofilia à justiça, entregar os arquivos canônicos à polícia, estabelecer mecanismos para compensar economicamente a vítima. E lutamos para que o prazo de prescrição dos crimes de pedofilia comece a contar quando a vítima completar 50 anos, como em muitos outros países.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o seu X Colóquio Internacional IHU. Abuso sexual: Vítimas, Contextos, Interfaces, Enfrentamentos, a ser realizado nos dias 14 e 15 de setembro de 2020, no Campus Unisinos Porto Alegre.
X Colóquio Internacional IHU. Abuso sexual: Vítimas, Contextos, Interfaces, Enfrentamentos
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“Superei os abusos quando passei de vítima a ativista”. Entrevista com Miguel Hurtado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU