26 Fevereiro 2020
O dia 21 de fevereiro marca o aniversário de um ano da histórica cúpula do Papa Francisco sobre a crise dos abusos sexuais clericais em 2019, que reuniu os presidentes das Conferências Episcopais do mundo para promover uma cultura global de transparência e responsabilidade.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 21-02-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Coincidentemente, a data cai quando o mundo se concentra em um tipo muito diferente de epidemia: o coronavírus, que até hoje matou mais de 2.100 pessoas em toda a China continental, embora menos de 10 pessoas fora do país. O total global de pessoas infectadas é de cerca de 75.600, a grande maioria na província de Hubei, na China.
À primeira vista, essa justaposição pode parecer não relacionada, mas existe um tipo de vínculo.
Considere-se que, após dois meses do surto do coronavírus, podemos falar com grande confiança estatística sobre quantas vítimas existem e onde elas estão, pelo menos fora do epicentro. Como está bem documentado, a China inicialmente tentou encobrir a doença, e ainda há sérias dúvidas sobre o seu avanço em relação à extensão de novas infecções e mortes. Mesmo assim, pesquisadores do mundo inteiro estão trabalhando duro para tentar entender a realidade da situação, e temos um bom domínio das infecções e dos tratamentos em outros lugares.
A título de comparação, décadas após a crise dos abusos clericais, ainda não existem dados tão sérios sobre o seu alcance global.
Há informações razoavelmente sólidas sobre o número de casos e vítimas e, portanto, a porcentagem de padres culpados de abuso nos Estados Unidos, Austrália, Irlanda, Alemanha e outros contextos que foram epicentros da crise, mas não temos muitas pistas sobre a propagação em outros lugares.
O que tende a preencher essa lacuna são suposições a priori, que refletem as perspectivas e as tendências de quem está falando.
Por exemplo, o arcebispo Marcel Utembi Tapa, de Kisangani, na República Democrática do Congo, de longe o maior país católico da África em termos de população, disse que “os casos são raros no nosso país”.
Nisso, Utembi está refletindo o tipo de coisas que muitos bispos africanos disseram desde o início da crise dos abusos no fim dos anos 1990 e início dos anos 2000:
- O abuso sexual clerical de crianças é principalmente uma questão ocidental.
- Dado o estigma social contra a homossexualidade na África, os padres que atacam meninos não são casos que ocorrem em larga escala.
- Na medida em que a África tem um problema de má conduta sexual por parte do clero, ele assume outras formas, especialmente relações com mulheres adultas.
Pode-se ouvir coisas semelhantes por parte de bispos em outras partes do mundo. A maioria dos sobreviventes zomba disso em resposta, insistindo que tais comentários refletem negação.
Durante uma coletiva de imprensa na semana passada em Roma, organizada pelo grupo Bishop Accountability, com sede nos EUA, surgiu uma pergunta sobre o abuso clerical em todo o mundo. A resposta axiomática foi que ele deve ser semelhante ao que sabemos sobre os EUA e outros países – ou seja, algo em torno de 5% a 8% do clero são culpados de abuso. O número comparativamente baixo de casos relatados no Congo ou nas Filipinas, portanto, deve ser o reflexo de um contexto frágil de denúncias e de uma cultura da vergonha que desencoraja as vítimas de se pronunciarem, e não uma diferença real entre as regiões geográficas.
No entanto, o estudo da epidemiologia, muito em voga devido ao surto de coronavírus, conta uma história diferente.
Como se pode imaginar, a disseminação de doenças é um assunto que tem sido intensamente estudado por organizações de saúde e pesquisadores. Um achado consistente é que a propagação de uma epidemia ou de uma pandemia é terrivelmente desigual. Mesmo quando diferentes populações enfrentam exatamente o mesmo risco de exposição, a força com que elas são atingidas depende de vários fatores, incluindo os níveis gerais de saúde, a exposição a água e alimentos inseguros, a qualidade dos sistemas de saúde, a natureza da dieta, os níveis de qualidade do ar e muitas outras coisas.
Em outras palavras, os pesquisadores médicos dirão que é inútil, no combate à doença, fazer suposições sobre o que a causa, como ela se espalha e se o seu impacto é o mesmo em todos os lugares. Em vez disso, você precisa coletar os dados e tentar entendê-los, em vez de começar com um modelo e massagear os dados para que eles se ajustem a ele.
É verdade que a analogia entre um vírus e a crise dos abusos clericais é inexata, entre outras coisas porque uma doença geralmente é um fenômeno natural, enquanto o abuso sexual de um menor é um crime abominável. No entanto, a comparação é instrutiva.
É possível, por exemplo, que tenha havido algo nas culturas ocidentais durante os anos de pico da crise que produziu um nível de abuso não visto em outros lugares? Ou é possível que a crise seja realmente muito pior em outros contextos que carecem de um sistema de apoio legal e cultural para que as vítimas busquem reparação, onde o clericalismo é muito mais desenfreado e onde as atitudes culturais em relação às relações sexuais com adolescentes e até mesmo com crianças são radicalmente diferentes?
A única resposta para qualquer uma das perguntas agora é: “É claro, isso é possível, mas realmente não sabemos”. Pode-se tentar aplicar dados generalizados da Organização Mundial da Saúde sobre o abuso infantil em todo o mundo, por exemplo, os que sugerem que os níveis são deprimentemente altos em praticamente todos os lugares, mas isso é inexato.
Isso, por sua vez, nos leva de volta para onde as coisas se situam um ano após a cúpula papal.
O que impressiona é como muitas coisas ainda não são compreendidas. Nem as autoridades eclesiásticas nem as civis de muitas partes do mundo investiram recursos para fornecer uma imagem confiável; portanto, ficamos apenas com adivinhações e projeções.
Com certeza, o trabalho imediato de identificar os abusadores e aqueles que os encobriram é extremamente importante, entre outras coisas porque é o que tende a desencadear processos legais, gerar manchetes e levantar protestos. No entanto, a tarefa mais lenta e menos sensacional de entender as origens e a distribuição dos abusos clericais, incluindo os fatores ambientais e culturais que os incentivam ou obstruem, também merece um lugar na lista de tarefas a serem feitas.
Talvez expandir a infraestrutura para realizar esse tipo de pesquisa seja uma resolução a ser feita neste aniversário – porque, convenhamos, uma “doença” é um fato infeliz na vida na Igreja Católica, tanto quanto em qualquer outro lugar, e seria bom ter um sistema de rastreamento confiável para ver por onde e como ela se espalha.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o seu X Colóquio Internacional IHU. Abuso sexual: Vítimas, Contextos, Interfaces, Enfrentamentos, a ser realizado nos dias 14 e 15 de setembro de 2020, no Campus Unisinos Porto Alegre.
X Colóquio Internacional IHU. Abuso sexual: Vítimas, Contextos, Interfaces, Enfrentamentos
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
No aniversário da cúpula antiabusos, o que ainda não sabemos sobre a crise - Instituto Humanitas Unisinos - IHU