18 Fevereiro 2020
Andrés Moya (Valência, 1956) encarna a figura do cientista humanista que a Antiguidade e o Renascimento idealizaram. Doutor em filosofia e biologia, professor de genética na Universidade de Valência, ativo divulgador em publicações, palestras e conferências. Conversamos com ele a respeito da tensão entre ecoutópicos e tecnoutópicos que disputam o futuro. Suas respostas retiram a inquietação sobre para onde caminha a Humanidade. Pede para que abramos os olhos, que exijamos responsabilidades políticas que coloquem limites às grandes corporações tecnológicas: “Temos uma dependência crescente dos algoritmos. Isso conta com um enorme perigo, porque você não os controla, no fundo, eles controlam você”.
“A dependência tecnológica é crescente”, segue o argumento, “e já é uma realidade, portanto, tenha cuidado, atenção, porque mesmo que não estejam conscientes agora, podem ser inteligentes de maneira muito superior a nós”.
Através de sua tribuna digital, Andrés Moya analisa os grandes desafios atuais sem deixar que a árvore o impeça de ver a floresta, demonstrando que a razão requer mais uma perspectiva interdisciplinar do que especialização. Comento com ele que a relação entre humanidades e ciência que sobrevoa o seu blog me parece traduzida, hoje, em duas formas de progresso que disputam o futuro (ecoutopia e tecnoutopia), e que desejo saber se o humanismo poderia, finalmente, aproximar a ciência do ecologismo para um desenvolvimento sustentável, pois, por um lado, a ciência parece ter se alinhado mais à indústria e ao mercado no desenvolvimento insustentável em vigor, e o ecologismo, por sua parte, corre o risco de cair na pseudociência.
Desse modo, proponho-lhe a entrevista e a aceita, sugerindo-me um livro, Dónde aterrizar (Taurus, 2019), de Bruno Latour, que leio de uma vez só porque aborda a questão de forma plena e reivindica um realismo científico óbvio: voltar a colocar os pés na Terra.
A entrevista é de Alberto Pereiras, publicada por Público, 17-02-2020. A tradução é do Cepat.
Em seus artigos, "El pacto entre la técnica y la humanidad" e "En manos del algoritmo", destaca que a tecnologia e o digital parecem se aproximar de uma espécie de soma controlada por alguns que de forma sutil nos infantiliza, não apenas por criar uma dependência vital, mas por estarmos dispostos, quando chegar o momento, de renunciar à nossa liberdade, à democracia e ao uso da razão e da crítica. Em uma entrevista de 1958, Aldous Huxley antecipa que os governos totalitários do futuro contarão com o nosso consentimento sob o vício ou o poder tecnológico. Considera que esse futuro está aqui ou é mais próximo esse déficit racional?
Precisamente, publiquei recentemente um trabalho sobre transumanismo na revista de pensamento Pasajes, aqui em Valência, mas em uma versão bastante crítica. Eu fui partidário em boa medida, durante os últimos anos, do transumanismo e do que pudesse fazer com a nossa espécie no futuro, mas com base em minha recente estadia nos Estados Unidos, fiquei mais cético. Concretamente, na Universidade de Harvard. Aquilo é um verdadeiro berço dos transumanistas científico-tecnológicos. Tive a impressão de que falta uma reflexão importante das consequências de todos esses tipos de tecnologias. E isso me assusta.
Assusta-me por duas razões. Por um lado, pela crescente dependência dos algoritmos. Ainda que não sejam entes conscientes, são entes que funcionam muito bem, altamente inteligentes e que aparentemente garantem quase o seu normal funcionamento diário, mas sem que você esteja consciente. Isso tem um enorme perigo, porque você não os controla, no fundo eles controlam você. A dependência tecnológica é crescente e já é uma realidade, então, atenção, porque mesmo que não estejam conscientes agora, podem ser muito mais inteligentes do que nós. É uma tese não contra o transumanismo, mas contra o anti-humanismo que isso representa.
Por outro lado, sobretudo, o que mais me preocupou foi ver os grandes interesses que há por trás de tudo isso. Lá me dei conta do poder que as grandes empresas de tecnologia possuem, estas que curiosamente estão vendendo grandes inovações tecnológicas como se fossem a panaceia. Existem aí alguns poderosíssimos interesses que dizem que estão vendendo imortalidade para você ou algo assim, mas não sabemos quem serão os beneficiários. Além disso, já está sendo criado o mercado para isso. É preciso estarmos muito conscientes.
E estamos? Pergunto-me se apesar de sermos a geração mais formada, ao menos tecnicamente, somos mais vulneráveis diante das transformações. Se somos donos de nossas decisões ou se estão sendo guiadas por inércia ou hábitos de consumo.
Precisamos de muito mais critérios. Nessa manhã, eu explicava para meus alunos que não conhecemos os fundamentos de boa parte da tecnologia que usamos, sendo assim, parece magia: você se movimenta em um mundo de tecnologia absoluta sem saber como funciona. E fica nas mãos dos algoritmos. Como se a ciência avançasse muito, mas a população não tivesse o conhecimento suficiente para ter critérios. Desse modo, a ciência se torna uma substituta da religião.
Para preencher essa lacuna, temos procedimentos na educação, não apenas científica, mas filosófica, que o cidadão pode usar para estar bem preparado e criticar com juízo. Por exemplo, eu sou biólogo, mas acredito que devo ter fundamentos em eletromagnetismo para saber como as ondas ou as comunicações funcionam. Há uma série de grandes teorias científicas e seus desenvolvimentos tecnológicos nos quais devemos ter formação, porque é por aí que se desenvolve o nosso próprio senso crítico.
Sobre a corrida tecnológica dos Estados Unidos, nesses artigos, você diz que se identifica com a proposta de José María Lassalle (‘Ciberleviatán. El colapso de la democracia liberal frente a la revolución digital’) de reposicionar a Europa e a América Latina diante do ‘Ciberleviatã’ calvinista que vem sobre nós. Poderia se relacionar com o ‘Green New Deal’. Como explica esse reposicionamento? Enxerga como possibilidade para países do mediterrâneo como um eixo de desenvolvimento ou laboratório sustentável?
Lendo o livro de Lassalle, uma reivindicação que para mim sempre foi muito interessante é o posicionamento da Europa pela proximidade cultural com a América Latina ou, como você comenta, pela proximidade geográfica com os países do Mediterrâneo. No caso dos países da América Latina, por fora parecem democracias fracassadas, mas quando você entra em suas culturas e vê o nível de integração, de fusões, inclusive em suas constituições, nota que há muito mais abertura do que parece, intelectual, mental, sua relação com o conceito de trabalho e de ócio é muito diferente da tradição protestante calvinista. Estão muito bem posicionados para o que o futuro pode ser. Porque corremos o risco de uma invasão da tecnologia procedente da cultura calvinista (sem se centrar no religioso) e há muitas outras áreas e lugares no planeta com culturas autóctones ou alternativas que valem a pena reivindicar.
Perceba no que a corrida tecnológica entre os Estados Unidos e a China está se convertendo, e veremos como acaba esse confronto. Diante disso, a Europa que, por sua experiência histórica e suas guerras mundiais, acredito que aprendeu melhor a lição, aglutina sociedades mais abertas e integradoras.
Vista assim, a corrida tecnológica parece ser a nova versão das corridas colonial e armamentista que decidiram a geopolítica mundial, mas essa luta pelo poder que alguns poucos voltam a protagonizar sem o consenso do restante parece mais arbitrária. Como concebe esse reposicionamento científico em contraste com o americano?
Faço uma reivindicação da ciência universal, mas não apenas porque é feita nos grandes centros de ciência, que é uma forma de universalidade, mas por levar a ciência para todos os lugares e que se faça a partir de todos os lugares. Essa é outra forma de universalidade científica. E isso está relacionado com a idiossincrasia desses outros países, mesmo que sejam países em desenvolvimento, porque daí podem vir caminhos muito interessantes de desenvolvimento científico, e com uma maneira particular de conceber e fazer ciência, não vinculada, por exemplo, a interesses tecnológicos do mercado. Mas, além disso, vejo maior relação entre a ciência e as humanidades na Europa e na América Latina do que na América do Norte. E uma análise muito mais crítica, refinada e humanizada, que eu valorizo.
Silicon Valley, inteligência artificial, robótica, eugenia, projeto Neuralink de Elon Musk ... Diante de quais linhas tecnológicas deveríamos ser mais críticos como sociedade ou onde começam os limites éticos que os governos deveriam considerar?
Acredito que há três grandes linhas de pesquisa abertas que beneficiam a humanidade como um todo, como disse Stephen Hawking: na pesquisa espacial, com a chegada à Lua ou a exploração de novos mundos, que é como o financiamento da Coroa Espanhola para a viagem de Colombo, permitindo-lhe chegar ao Novo Mundo. Em inteligência artificial para facilitar a nossa vida de comum dos mortais e na mudança climática. Contudo, estou pensando no benefício próprio para a humanidade em geral e ao planeta em particular.
Agora, existem outras linhas que não servem para isso, entre elas, a própria inteligência artificial, pois muito de seu investimento é privado e isto eu percebi claramente em conferências na Universidade de Harvard, com corporações industriais por trás de muitas das invenções que estavam propondo, que vendem para você como de interesse geral, mas não me parecem que são.
Transgênicos e agricultura ecológica, consumo de carne e dietas verdes, energia nuclear... São campos de frequentes disputas científicas. Qual é o marco racional do ecologismo diante das críticas que o chamam de hipócrita, supersticioso e reacionário? Digo isso por causa da deriva tecnológica que você questiona e que, apesar de ser vendido como progresso científico e racional, também pode ser rotulado como utópico ou reacionário.
Penso que nesse sentido é útil o último livro de Bruno Latour, que me influenciou muito e apresenta exatamente por onde podemos progredir entre essas duas vias: esse ecologismo que não acaba de se solidificar porque, apesar dos movimentos verdes, não são uma generalidade no planeta, sendo muito importantes. E, por outro lado, os movimentos digamos reacionários, os nacionalismos ao estilo Trump ou exemplos muito particulares em nosso país, que se reafirmam em voltar ao nosso. O nosso é muito importante, mas não ao estilo Trump, ou seja, “o meu é muito importante e o seu tanto faz”. E o que acontece com o planeta? O livro de Latour busca integrar essas duas tendências tão contraditórias e é o melhor que li nos últimos anos. Este mundo não será sustentável e veremos transformações em nossa forma de viver e nos alimentar. Não necessariamente com todos se tornando veganos, mas, sim, com transformações importantes. Sobre os transgênicos, eu que sou biólogo evolutivo, posso dizer que temos transgenia desde os tempos remotos, digamos transgenia natural.
No artigo em que aborda a crise climática, faz um paralelo, por ocasião do quinquagésimo aniversário da chegada do homem à Lua, do investimento técnico-científico que, então, foi realizado em nome da corrida espacial, sugerindo que hoje temos um cenário que requer o mesmo tipo de consenso ou esforço internacional.
Estive no encerramento do curso do MIT 2019 e o ex-prefeito de Nova York, Michael Bloomberg, deu a aula final para os formandos fazendo esse paralelismo com a chegada à Lua, porque precisamente lá, no MIT, se apostou e contribuiu muito para isso. Bloomberg apelou à imaginação e a criatividade dos graduados para desenvolver novos esforços diante dos problemas atuais, e o problema número um que ele via foi justamente o da mudança climática. Pediu que abordassem esse desafio de forma integradora. Nos anos 1960, havia um apoio político liderado por Kennedy para fazer pesquisas nesse campo e, embora não se visse um retorno imediato do investimento, você não sabe a quantidade de coisas que foram inventadas graças à corrida espacial para chegar à Lua.
Se a corrida tecnológica relembra as antigas lutas pelo poder, o universalismo da corrida espacial e da corrida ambiental é mais animador. Talvez uma visão muito materialista do mundo tenha nos separado desse universalismo. No clássico problema filosófico mente-corpo do qual tanto depende nossa visão do mundo, frente ao materialismo consumista que se impôs, filósofos como Jesus Mosterin tinham uma visão racional não reducionista, aberta à ecologia e ao animalismo. Bertrand Russell propunha o monismo neutro. Mario Bunge, o materialismo emergentista, com o qual mais me identifico ao explicar que a vida ou a mente, embora partam da matéria, são mais do que a soma de suas partes. Qual é a sua postura?
Gosto muito da referência a Mario Bunge, porque para mim também é bastante evidente que devemos prestar atenção no materialismo emergentista. A ciência no fundo é menos reducionista do que pode parecer. Outra questão é que venham alguns cientistas falando sobre teorias do ponto final e que já temos todas as explicações sobre o cosmos ou o mundo, mas em absoluto não é assim. A ciência é infinita, de acordo com David Deutsch, um cientista que trabalha em computação quântica. A matéria vai se organizando de forma cada vez mais complexa e as emergências são propriedades que existem e, em cada nível, se organizam em leis distintas e inexplicáveis, das leis aos níveis inferiores.
Não há motivo para se pensar que o universo se organiza com base em algumas leis únicas que correspondem à organização mais elementar da matéria, como a mecânica quântica. A ciência é mutante e podemos descobrir coisas novas ao longo do tempo. Como você disse, referindo-se a Jesus Mosterín, isso não supõe nenhuma renúncia ao racionalismo. Sempre vamos atrás da explicação e compreensão pelas mãos da ciência, mas isso não funciona para grandes cosmogonias explicativas, ao contrário, vai desenvolvendo teorias que podem ir mudando ao longo do tempo e, ainda que pensemos que temos agora teorias finais de tudo, não é assim. Você pode ter alguma guinada dentro de 10, 15 ou 20 anos que muda o panorama de uma maneira radical. Não é ficção científica, já aconteceu na história da ciência.
Seu artigo ‘Mucho ruido con tanta información’ aborda o problema da saturação da informação, o barulho da mídia e, indiretamente, a desinformação ou as ‘fake news’. Você disse que não estamos preparados biologicamente, nem culturalmente, para essa overdose de estímulos, sendo que a educação deveria funcionar como um filtro. Parece que diante de semelhante dilúvio, mais do que uma atitude passiva como leitores ou espectadores, deveríamos ser mais ativos para filtrar o que sobra ou distrai nossa atenção.
Eu acredito que temos limitações intrínsecas para assimilar tudo. Ainda que pudéssemos desenvolver tecnologias transumanistas para acessar todas as fontes de informação, ultrapassando os limites biológicos, isso não resolveria a questão de você ter a consciência e a racionalidade suficientes para analisá-las. Precisamos de filtros em nível midiático e educacional. Quais critérios terei para filtrar adequadamente as informações e me posicionar? No nível político, isso é fundamental, porque quando continuamente enviam mensagens e você não se decide por nenhuma opção, pois em boa medida você tem muita informação, sua própria consciência pode fechar e você praticamente poderá dar uma resposta aleatória ao votar.
No artigo ‘Gobierno y Gobernanza de la ciencia’, toca em outro tema que me parece fundamental, porque sempre com atraso, como agora, conhecemos o avesso prejudicial ou nocivo de nosso desenvolvimento (microplásticos, poluição luminosa ...), como se a ciência fosse conduzida primeiro pela indústria, em vez de levantar a voz para pedir cautela ou recordar que somos falíveis e que deveríamos tirar o pé do acelerador. Somente com a crise climática parece agir assim hoje, e lembro-me da carta assinada por cem prêmios Nobel contra o Greenpeace por desconfiar dos transgênicos. Acredita que a ciência deveria levantar mais sua voz como comunidade ou autoridade sobre o assunto para guiar o progresso ou nos prevenir, como em relação aos limites ecológicos?
Em relação à governança, sempre fui partidário do público e do privado na ciência, mas a ciência universal provavelmente permanece melhor amparada e pode chegar melhor a todos e ao planeta se houver um controle e gerenciamento público da mesma. Já sei que isso é um desideratum, porque muitos colegas reivindicam uma relação científica com o setor privado, que eu não desmereço e considero que também deve ser fortalecido, mas o setor privado tem certas convicções em relação ao tipo de ciência que promoverá. Mesmo que Elon Musk ou muitos outros do setor privado digam a você que sua tecnologia irá favorecer a todos por definição, quando você faz um estudo aprofundado, diz: “bom, vamos ver se isso chega para todos”, então atenção. Não digo que não seja necessário que se fomente, por exemplo, com patentes, o surgimento de novos produtos que, a médio ou longo prazo, possam beneficiar a humanidade. Mas, é claro, por parte do governo, com o controle e o financiamento público da ciência, temos melhores fontes e melhores garantias de que chegarão a todos.
Pergunto-me, então, quais são as razões que dificultam esse posicionamento global diante das grandes mudanças. Existem outros organismos capazes disso, como o IPCC na crise climática, com essa vocação universal da ciência?
Supõe-se que as universidades tenham esse papel, mas são nacionais. De fato, devemos trabalhar nessa direção para ter mais capacidade de incidir na política. A mudança climática é um tema fundamentalmente político, porque as decisões que precisam ser tomadas são políticas. É que aqui existem muitos interesses e, honestamente, sendo crítico com a ciência, isso também tem a ver com a formação crítica dos próprios cientistas. Precisamos de mais formação para um melhor posicionamento e saber quais queremos que sejam nossas relações com o setor público e privado. Porque isso também pode acontecer no setor público, por exemplo, em um Ministério da Defesa. Você não conhece o financiamento que existe nos Estados Unidos para a Marinha e as Forças Aéreas, e pode ter convicções para não participar de tais tipos de instâncias.
Acredito que é necessário fazer o que o filósofo marxista francês Louis Althusser fazia com os estudantes, para quem dava cursos de filosofia para superar o que chamava de “filosofia espontânea dos cientistas”, que possuímos e convém que não seja tão espontânea, mas, sim, mais reflexiva. O Google agora é um exemplo com o avanço que acaba de anunciar em computação quântica por parte do setor privado. Pois, vamos refletir sobre quem a fez e por qual razão.
Isso também acontece com a tecnologia CRISPR, na qual o espanhol Francisco Mojica desempenhou um papel muito importante. Se o Nobel ainda não foi dado a esta tecnologia, pelo que tenho ouvido, é em boa medida porque há disputa entre duas instituições, nesse caso públicas, sobre o desenvolvimento da tecnologia e sua patente. Isso para perceber os interesses que existem, não digo que não sejam legítimos, mas diante deles devemos estar atentos.
Parece que, mesmo que continuemos vendo a ciência como garantia em si do progresso ou do conhecimento independente, são os interesses políticos, comerciais e culturais que a dirigem em boa medida para uma direção ou outra.
Note que estou continuamente reivindicando esse papel universal da ciência, mas efetivamente é como se para isso tivéssemos que formar uma elite mundial diferenciada, e isso é uma aspiração utópica, porque estamos muito vinculados a determinados tipos de setores. Temos mais dependência do que parece e, para ter maior independência, precisamos de mais formação, não em nossa ciência particular, mas, sim, filosófica, crítica.
Rodríguez de la Fuente, em seu momento, já dizia que os meios de comunicação falavam muito de esportes, tecnologia e política, mas nada sobre o meio ambiente, quando deveria ser a prioridade informativa e a maior preocupação. Os meios de comunicação formam nossa imagem da realidade, dependendo de onde colocam sua atenção, sendo assim, talvez estejamos há décadas olhando para a direção errada. Considera que essa situação é reversível?
Esse é outro grande problema porque os meios de comunicação se impuseram, por isso faço esse apelo à reivindicação da ciência como coletivo universal, para que possa inclusive se posicionar adequadamente em relação a eles e chegue internacionalmente a todos.
Foi dito que a lição de Darwin colocaria fim ao antropocentrismo, mas hoje parece se ampliar virtualmente com a ‘sobreinformação’. Nossa cultura assumiu sua mensagem ou a usou apenas para nos colocar no trono que antes Deus ocupava?
Pobre Darwin, ele tinha um conflito enorme, você sabia? E sabia as consequências de sua teoria. Quando eu reivindicava em um passado mais ou menos próximo o transumanismo, fazia isso porque percebemos nossa evolução, podemos transformá-la e ir além. Nesse sentido, passamos a ocupar o espaço que anteriormente ocupava um ente criador.
Pergunto a você porque hoje a sociedade parece se debater entre essas duas grandes sensibilidades, éticas e estéticas: tecnoutópicos que aspiram o poder dos deuses na terra (antropocentristas) e ecoutópicos que acreditam que a natureza merece mais humildade e uma técnica sujeita a seu equilíbrio (ecocentristas). Pergunto-me se essas ideias de progresso tão díspares podem ficar condicionadas, desde crianças, pela experiência ou formação inicial que temos. Porque parece que o perfil que se imporá dependerá do tipo de espécie e sociedade futuras.
Você precisa ler o livro do Latour porque une justamente essas duas vertentes. As versões que nos indicam que o planeta é nosso estão erradas, não é nosso, mas provavelmente seja mais nosso que do restante dos organismos, por causa da nossa capacidade de incidir nele. Por outro lado, as posições ecologistas que reivindicam maior humildade estão corretas porque jogamos a sobrevivência. As leis que governam a dinâmica do planeta ainda estão para ser conhecidas. São feitas previsões em meteorologia a médio e longo prazo, que em algum caso podem estar erradas, provavelmente nos falta mais teoria comprovada, que evidencie que nossa relação com o restante dos organismos que povoam o planeta é mais ínfima do que parece. Mas como a solução tem que ser política, basicamente temos que ir para uma espécie de fusão das tecnoutopias com o ecologismo, para um acordo de coletivos, porque alguns opinam radicalmente diferentes de outros, estando no mesmo barco.
A pergunta é como chegamos a um posicionamento que nos obrigue a tomar decisões na mesma direção, ou quem irá vencer essa batalha política. Fico surpreso com a miopia da esquerda, que não viu essa questão (apelar à ciência e à técnica em nome do progresso sustentável mais que ao socialismo, pois a ecologia e a justiça social coincidem). A nova esquerda, se juntar essas duas visões, provavelmente vencerá o jogo. Deve haver muito mais organismos internacionais e uma espécie de governo mundial, que não passe necessariamente pelo desaparecimento dos Estados ou nações.
Voltemos, aqui, ao valor da Europa como modelo integrador, muito mais interessante que a federação de estados nos Estados Unidos. A Europa é a menor escala do que deveria acontecer no planeta. É um avanço lento, mas vai ocorrendo. Tenho bons amigos alinhados à esquerda e discuto com eles a esse respeito. Veja os nacionalismos de direita emergentes na Europa, opondo-se às ondas migratórias para valorizar o que é nosso. Aí existe algo que tem relevância (minha terra, minha agricultura, minhas tradições), um elemento positivo, mas observe como o meu se converte em algo excludente de direita. A esquerda deveria se aproximar dessa valorização do meu, mas positivamente, junto ao dos outros, e todos de mãos dadas para frente.
No artigo ‘La sensibilidade a las razones’ disse que deveríamos nos educar muito mais no amor ao conhecimento e à razão. Isso me lembra “El sentido del asombro’ de Rachel Carson, com sua ideia de que para as crianças não é nem a metade importante conhecer como é o sentir. Há tempo que a neurociência adverte que a emoção é fundamental em nossa aprendizagem. Em razão disso, questiono-me se a educação não deveria priorizar a experiência natural para desenvolver, desde a infância, essa admiração científica pela realidade, antes de cultivar emoções sobre a ficção ou a tecnologia e sobre tantos preconceitos, tradições e ideologias. Como melhorar esse modelo educacional?
A educação na racionalidade é fundamental. Você sabe que a filosofia foi retirada do ensino como disciplina de base no ensino médio. Na minha opinião, isso é uma barbaridade porque a educação deve ser transdisciplinar. Se for para buscar raízes, eu as colocaria na filosofia (humanismo, ética), matemáticas, teorias científicas. É aí que se desenvolve o currículo formativo, muito distante do ensino médio em especialidades e grades nada positivas. O conceito de sensibilidade nas razões eu peguei do filósofo Fernando Broncano, que fala em termos essa predisposição para sempre exercitar a razão, mesmo que tenhamos posições opostas. E isso me lembra o filme de Amenábar sobre Unamuno, em que há discussões monumentais entre dois amigos, um socialista e um protestante. Não recebem nas mãos um milagre, mas surgem as razões. Quando não vem a razão? Quando são capturados e fuzilados. Unamuno impôs uma defesa da razão a todo custo, e para esta é preciso educar.
Agora é tão fácil, dele gosto/não gosto. Mas por que você gosta ou não? Por que você se sente mais próximo dessas ideias ou desse quadro? No fundo, é uma questão biológica e cultural. Estudos da inteligência nos dizem que somos 50% formados por uma base genética bem estabelecida para muitas das capacidades superiores, mas com outra metade educacional e cultural. Essa outra modelagem fornece uma plasticidade gigantesca e aí há muito terreno para se trabalhar.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o XIX Simpósio Internacional IHU. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida, a ser realizado nos dias 19 a 21 de outubro de 2020, no Campus Unisinos Porto Alegre.
XIX Simpósio Internacional IHU. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida.
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“Atenção, os algoritmos começam a nos controlar”. Entrevista com Andrés Moya - Instituto Humanitas Unisinos - IHU