25 Janeiro 2020
“São dados objetivos que o número de jesuítas diminuiu, que aumentam os anciãos, que há menos vocações, sobretudo no Ocidente, fenômeno parecido com o que ocorre na maioria das ordens e congregações religiosas. Mas há também outros dados que falam de sua vigência evangélica. Desde Arrupe, mais de cem jesuítas deram suas vidas nos países do Terceiro Mundo por defender os pequenos do Povo de Deus, entre eles Rutilio Grande, inspirador de São Romero da América, que em breve será canonizado”, escreve o jornalista Pedro Miguel Lamet, jesuíta espanhol, em artigo é publicado por Religión Digital, 23-01-2020. A tradução é do Cepat.
A surpreendente notícia de que no período de Bento XVI o papa esteve a ponto de intervir pela segunda vez na Companhia de Jesus, assim como fez João Paulo II no generalato de Arrupe, era conhecida por um grupo de jesuítas espanhóis. A informação havia sido confiada pelo padre geral Adolfo Nicolás, sob segredo, em uma de suas visitas à província de Castela. Na realidade, não revela outra coisa a não ser um ambiente rarefeito em torno da figura de Pedro Arrupe, que se respirava no Vaticano até muito recentemente. Agora, vem à luz, a propósito da apresentação em Madri da tradução espanhol do livro Los jesuitas: del Vaticano II al Papa Francisco, de Gianni La Bella (Ed. Mensajero).
Papa João Paulo II e o Padre Pedro Arrupe (Fonte: Religión Digital)
Este italiano, professor de História, membro da comunidade de Santo Egídio, já se interessou por Arrupe em outra obra a qual coordenou: Pedro Arrupe, general de la Compañia de Jesús: nuevas aportaciones a su biografía (Mensajero-Sal Terrae, 2007).
Não deixa de ser curioso a origem desta obra anterior. Ignacio Iglesias, SJ., um grande admirador e colaborador de Arrupe, hoje falecido, começou a organizar um simpósio sobre o geral de Bilbao, pretendendo realizá-lo na Universidade de Deusto. Sendo o Vaticano consultado pelo padre Peter Hans Kolvenbach, então geral, obteve a resposta: “Não parece conveniente organizar tal homenagem a um homem que causou tanto dano à Igreja”. Então, decidiu-se transformar as conferências em um volumoso livro de colaborações editado por La Bella, que, como todo livro de tantos autores, é interessante, embora com artigos de relevância desigual.
Padre Pedro Arrupe (Fonte: Religión Digital)
Esse ambiente anti-Arrupe, instigado desde outrora por alguns bispos e jesuítas espanhóis, continuou em vigor nos círculos vaticanos até os tempos de Adolfo Nicolás. Lembro-me que um dia, diante da minha pergunta sobre o motivo pelo qual o processo de canonização de Arrupe, o penúltimo geral, não se abria, respondeu: “Não parece conveniente até que as águas estejam serenas. Existem muitos monsenhores no Vaticano que continuam sem poder vê-lo”.
A possível segunda intervenção da Santa Sé é citada por Gianni La Bella na página 364-366 de seu novo livro. Relata uma carta a Kolvenbach do então secretário de Estado, Tarsicio Bertone, comunicando-lhe a preocupação do papa em relação à observância e a espiritualidade dos jovens jesuítas, especialmente no que diz respeito ao quarto voto de obediência ao papa. Coloca a França como exemplo dessa dissolução que, segundo ele, existia com o consentimento dos superiores, ainda que se tratasse de um mal extensivo a toda a Ordem. Não deixa de ser curioso que os males que denuncia são mais de ordem monástica ou conventual que próprios de uma ordem de vida ativa como a Companhia. Por exemplo, “observância no horário, separação da comunidade, distinção entre professos-coadjutores espirituais, piedade, clausura, mortificação, etc.”.
Contudo, o mais curioso dessa carta é que Bertone se atreve a pretender intervir novamente na autonomia canônica de uma ordem isenta para sugerir a Kolvenbach que envolva na preparação da Congregação Geral “o cardeal Jorge Bergoglio, SJ., arcebispo de Buenos Aires, destacando-lhe o aqui exposto e solicitando seu autorizado parecer a respeito”. Kolvenbach entra em contato com Bergoglio e este lhe responde que, apesar de não estar de acordo com tudo o que está acontecendo na Companhia e com o relativismo de algumas novas gerações, mostra-se decididamente contrário à ideia de uma intervenção papal “porque multiplicaria os problemas, em vez de resolvê-los”.
Esses dados destacam duas ideias já conhecidas.
Primeiro, que naqueles tempos Bergoglio era considerado em ambientes vaticanos um cardeal conservador, o que torna mais evidente sua eleição pelo eleitorado nomeado por Wojtyla ou Ratzinger e a mudança ou conversão que experimentou ao chegar ao papado.
Segundo, que essa desconfiança em relação à linha pós-conciliar e comprometida de Arrupe continuava gerando desqualificação nas autoridades vaticanas, onde seus detratores seguiam censurando sua figura. Por fim, o Papa Ratzinger estava nisso? Não parece muito claro, tendo em conta que sua atitude em relação à Companhia contrastou com a do falecido João Paulo II, por exemplo, ao nomear um jesuíta porta-voz da Santa Sé e ao equilibrar com outras medidas a quase exclusiva predileção de Wojtyla pelos Novo Movimentos.
Esses dados que La Bella reuniu, como muitos de sua obra, são de Urbano Valero, SJ., recentemente falecido e que foi “assistente” na época de Arrupe, confirmam a difícil situação que o padre Kolvenbach teve que viver, durante seu prudente generalato e sua corajosa postura, quando solicitou uma audiência a Bento XVI e pediu firmemente que não interviesse na Companhia, porque além de ser ineficaz, não toleraria.
No mais, “Los jesuitas” de Gianni La Bella é um importante livro em termos de acumulação de dados da Companhia de Jesus, em sua maioria conhecidos, durante os três últimos generalatos. Como é próprio de um professor e historiador profissional, distingue-se por seu rigor documental. Ainda que, como é lógico, isto a torna uma obra densa, professoral e de difícil leitura, mas que, sem dúvida, permanecerá como um livro de referência original, por sua abordagem contemporânea. Nada a ver, por exemplo, com obras como “Jesuitas”, de Jean Lacouture (Paidós, 1991), em dois volumes, mas que se lia com o interesse redacional de um romance.
Devo acrescentar que, embora o autor demonstre sua simpatia por Arrupe e não esconda nenhum de seus conflitos, escapa-lhe a alma do ilustre Pedro, sua profunda espiritualidade cristológica e inexplicavelmente omite suas últimas e emocionantes declarações, que tive o privilégio de recolher pessoalmente de seus lábios de enfermo (“Pedro Arrupe: um testemunho do século XX, um profeta para o século XXI”, ed. Loyola) e outros dados inéditos que apresento nas diversas versões de minha biografia. Não sei o que o move a silenciá-las, e que apresentei, juntamente com muitos outros depoimentos para a sua causa, iniciada recentemente.
Papa Paulo VI e Padre Pedro Arrupe (Fonte: Religión Digital)
No ar de todas essas indagações está a grande questão de saber se, como afirmam alguns, a Companhia está em decadência ou não. Compartilho a tese de La Bella de que houve várias refundações da Ordem, desde que foi fundada por Santo Inácio. Para isso, é preciso voltar ao passado e lembrar, por exemplo, de episódios tão tremendos como a expulsão e repressão da Companhia no tempo de Carlos III, que tive que estudar profundamente para o meu romance histórico “El último jesuita” (La Esfera, 2011). Os jesuítas foram oficialmente suprimidos por 40 anos. Portanto, trata-se de um corpo muito experimentado no sofrimento e na superação.
Frase de Santo Inácio: “Se a Companhia se dissolvesse como sal na água, para mim, seriam suficientes quinze minutos de oração para ficar em paz”. Ou de Pedro Arrupe diante do fenômeno das saídas da Companhia: “O último que apague a luz”.
São dados objetivos que o número de jesuítas diminuiu, que aumentam os anciãos, que há menos vocações, sobretudo no Ocidente, fenômeno parecido com o que ocorre na maioria das ordens e congregações religiosas. Mas há também outros dados que falam de sua vigência evangélica. Desde Arrupe, mais de cem jesuítas deram suas vidas nos países do Terceiro Mundo por defender os pequenos do Povo de Deus, entre eles Rutilio Grande, inspirador de São Romero da América, que em breve será canonizado.
Nestes últimos anos, a Companhia se destacou por seu trabalho entre os pobres e deserdados e por uma perda do “elitismo” que permitiu não apenas maior simplicidade e proximidade, mas também uma colaboração mais estreita com outros religiosos, o clero secular e os leigos. E não deixa de ser um sintoma que esteja na sede de Pedro, pela primeira vez na história, um papa jesuíta que herdou muitos dos critérios daquele que alguns chamam do “novo Santo Inácio”. Algo que aquele Arrupe sofredor, em kenosis, a quem tive a alegria de conhecer e entrevistar e que morreu com um martírio incruento, jamais teria sonhado.
Pessoalmente, acredito que esta Companhia se parece mais com os “amigos no Senhor” e com a “mínima Companhia” fundada por Santo Inácio, do que com a imobilizada dos anos 1940 e 1950, por exemplo, a do nacional-catolicismo espanhol.
Para terminar, duas frases lapidares de Arrupe para a reflexão:
“O Senhor nunca esteve tão perto de nós, já que nunca estivemos tão inseguros”.
E a última que pronunciou: “Para o presente amém, para o futuro aleluia”.
Também é significativa a frase que o cardeal vigário Angelo De Donatis se atreveu a pronunciar no dia 5 de fevereiro de 2019, durante a sessão de abertura da causa da canonização do padre Pedro Arrupe: “Foi um autêntico homem de Deus e da Igreja”. E a do atual geral Arturo Sosa: “Entendo minha eleição como uma confirmação da direção que a Companhia iniciou nos tempos de Arrupe”.
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A “bomba” da segunda intervenção papal aos jesuítas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU