06 Janeiro 2020
"Eleito em uma atmosfera de urgência, o Papa Francisco está convencido da necessidade de uma mudança profunda para salvar (em sentido profano, pelo menos) a Igreja Católica. No discurso à Cúria Romana, ele citou Giuseppe Tomasi di Lampedusa para convencer os cardeais de que não se trata de que 'tudo mude' para que 'tudo permaneça como está'", escreve o jornal Le Monde em seu editorial de 26-12-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o editorial.
Pela primeira vez, o adjetivo não é exagerado: a crise pela qual a Igreja Católica está passando é histórica. Mesmo lá dentro, há muitos que comparam sua amplitude com a da Reforma Protestante.
Vários fatores concorrem para abalar uma instituição que se modelou, em seu nascimento, nas formas do Império Romano. A quase completa secularização do Ocidente fez desaparecer a ideia de um centro cristão com a missão de evangelizar o resto do mundo. "Não estamos mais na cristandade", resumiu o papa Francisco em seu discurso à cúria romana no sábado, 21 de dezembro. Mesmo onde está se expandindo, como na África e na Ásia, a Igreja Católica sofre forte concorrência das igrejas pentecostais, que criam dificuldades também a seu bastião latino-americano (40% dos católicos do mundo). As revelações sobre as violências sexuais contra menores e mulheres ainda não terminaram. Como consequência causam uma diminuição dos recursos não apenas do Vaticano, mas também das Igrejas locais, particularmente na França, com a diminuição das ofertas.
Eleito em uma atmosfera de urgência, o Papa Francisco está convencido da necessidade de uma mudança profunda para salvar (em sentido profano, pelo menos) a Igreja Católica. No sábado, ele citou Giuseppe Tomasi di Lampedusa para convencer a cúria de que não se trata de que "tudo mude" para que "tudo permaneça como está" [1]. De fato, desde 2013, ele tem pressionado a Igreja, querendo ou não, a se reformar em vários níveis. Enquanto seus dois antecessores haviam colocado o problema dos comportamentos sexuais em primeiro plano em suas pregações, Francisco mergulha no coração das preocupações contemporâneas com seus fortes discursos sobre a crise climática, sobre as críticas ao capitalismo financeiro e em defesa dos migrantes.
Tendo negligenciado o problema por um longo tempo, ele decidiu ouvir as vítimas da pedofilia e começou a mudar as regras sobre a forma com que a hierarquia lidava com os escândalos. Em Roma, empenha-se a racionalizar o governo da cúria, especialmente em questões econômicas, e a desarticular a tendência conservadora da administração. "Na tensão entre um passado glorioso e um futuro criativo em movimento, há o presente em que as pessoas estão e que precisam necessariamente de tempo para adquirir maturidade", disse ele no sábado.
E, no entanto, o Francisco reformador às vezes parece parar no meio da travessia, por razões em que se misturam a resistência à mudança de sua comitiva e reticências de sua parte para fazer evoluir alguns aspectos que estruturam a Igreja Católica há séculos. Diante das guerras internas da cúria no escândalo financeiro em curso no Vaticano, enfraquece a célula antilavagem de dinheiro que havia contribuído para sanar os circuitos financeiros da Santa Sé.
Ele denuncia continuamente o clericalismo, mas os leigos continuam a ser mantidos à margem das mais altas funções curiais. O mesmo vale para as mulheres, enquanto pede maior participação para elas. Quanto ao sacerdócio, pedra angular de uma estrutura baseada no monopólio dos sacramentos, Francisco planeja abri-lo excepcionalmente a homens casados, mas não às mulheres.
"Eu sou filho da Igreja", o papa gosta de dizer para expressar seu amor pela instituição. Lá dentro, alguns o comparam a Mikhail Gorbatchov. Como se a Igreja Católica precisasse fazer desmoronar suas estruturas para sobreviver às crises existenciais que a ameaçam. Como se essa batalha ainda não tivesse sido vencida.
Nota:
[1] As palavras proferidas pelo papa no discurso da cúria de 21 de dezembro de 2019: "Muitas vezes acontece viver a mudança limitando-se a envergar um vestido novo e, depois, permanecer como se era antes. Lembro-me da expressão enigmática que se lê num famoso romance italiano: ‘Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude’ (Il Gattopardo, de Giuseppe Tomasi de Lampedusa). A atitude sadia é, antes, deixar-se questionar pelos desafios do tempo presente, individuando-os com as virtudes do discernimento, da parresia e da hypomoné.” (Nota da tradutora).
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Reformar-se ou morrer, o dilema da Igreja. Editorial do jornal Le Monde - Instituto Humanitas Unisinos - IHU