05 Janeiro 2020
“Esta cruz é transparente: ela se apresenta como um desafio para olhar com mais atenção e para buscar sempre a verdade. A cruz é luminescente: quer encorajar a nossa fé na Ressurreição, o triunfo de Cristo sobre a morte. O migrante desconhecido, que morreu com a esperança em uma nova vida, também é partícipe dessa vitória.”
No fim das audiências da manhã dessa quinta-feira, 19 de dezembro, o Santo Padre Francisco se encontrou com refugiados de Lesbos recém-chegados à Itália graças a um corredor humanitário organizado pelo esmoleiro papal, o cardeal Konrad Krajewski. O papa fez com que uma cruz fosse colocada no acesso ao Palácio Apostólico a partir do Pátio do Belvedere, em memória dos migrantes e refugiados.
Papa Francisco acolhe no Vaticano grupo de 33 refugiados provenientes de Lesbos (Foto: Vatican News)
“Como podemos não ouvir o grito desesperado de tantos irmãos e irmãs – continuou o papa – que preferem enfrentar um mar tempestuoso do que morrer lentamente nos campos de detenção líbios, locais de tortura e escravidão ignóbeis? Como podemos permanecer indiferentes diante dos abusos e das violências de que são vítimas inocentes, deixando-os à mercê de traficantes sem escrúpulos?”
Papa Francisco e a cruz do migrante desconhecido (Foto: Vatican News)
A Sala de Imprensa da Santa Sé, 19-12-2019, publicou o discurso do Papa Francisco proferido nessa ocasião. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Este é o segundo colete salva-vidas que recebo de presente. O primeiro me foi dado há alguns anos por um grupo de socorristas. Pertencia a uma menina que se afogou no Mediterrâneo. Depois, eu o doei aos dois subsecretários da Seção Migrantes e Refugiados do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral. Eu lhes disse: “Eis a missão de vocês!”. Com isso, quis significar o imprescindível compromisso da Igreja de salvar a vida dos migrantes, para depois poder acolhê-los, protegê-los, promovê-los e integrá-los.
Este segundo colete salva-vidas, entregue por outro grupo de socorristas há poucos dias, pertencia a um migrante que desapareceu no mar em julho passado. Ninguém sabe quem ele era ou de onde vinha. Sabe-se apenas que o seu colete salva-vidas foi recuperado à deriva no Mediterrâneo Central, no dia 3 de julho de 2019, em determinadas coordenadas geográficas.
Estamos diante de outra morte causada pela injustiça. Sim, porque é a injustiça que força muitos migrantes a deixarem as suas terras. É a injustiça que os obriga a atravessar desertos e a sofrer abusos e torturas nos campos de detenção. É a injustiça que os rejeita e os faz morrer no mar.
O colete salva-vidas “veste” uma cruz em resina colorida, que quer expressar a experiência espiritual que eu pude captar nas palavras dos socorristas. Em Jesus Cristo, a cruz é fonte de salvação, “loucura para aqueles que se perdem – diz São Paulo –, mas, para aqueles que se salvam, ou seja, para nós, é poder de Deus” (1Cor 1,18). Na tradição cristã, a cruz é símbolo de sofrimento e sacrifício e, ao mesmo tempo, de redenção e de salvação.
Esta cruz é transparente: ela se apresenta como um desafio para olhar com mais atenção e para buscar sempre a verdade. A cruz é luminescente: quer encorajar a nossa fé na Ressurreição, o triunfo de Cristo sobre a morte. O migrante desconhecido, que morreu com a esperança em uma nova vida, também é partícipe dessa vitória. Os socorristas me contaram que estão aprendendo humanidade com as pessoas que conseguem salvar. Eles me revelaram que, em todas as missões, redescobrem a beleza de ser uma única grande família humana, unida na fraternidade universal.
Decidi expor aqui este colete salva-vidas, “crucificado” nesta cruz, para nos recordar que devemos manter os olhos abertos, manter o coração aberto, para recordar a todos o compromisso imprescindível de salvar toda vida humana, um dever moral que une crentes e não-crentes.
Como podemos não ouvir o grito desesperado de tantos irmãos e irmãs que preferem enfrentar um mar tempestuoso do que morrer lentamente nos campos de detenção líbios, locais de tortura e escravidão ignóbeis? Como podemos permanecer indiferentes diante dos abusos e das violências de que são vítimas inocentes, deixando-os à mercê de traficantes sem escrúpulos? Como podemos “passar para o outro lado”, como o sacerdote e o levita na parábola do Bom Samaritano (cf. Lc 10,31-32), tornando-nos, assim, responsáveis pela sua morte? A nossa preguiça é um pecado!
Agradeço ao Senhor por todos aqueles que decidiram não ficar indiferentes e fazem o possível para socorrer o infeliz no caminho de Jericó, sem fazer perguntas demais sobre como ou sobre por que o pobre meio morto acabou na sua estrada. Não é bloqueando as suas embarcações que se resolve o problema. É preciso se comprometer seriamente para esvaziar os campos de detenção na Líbia, avaliando e implementando todas as soluções possíveis. É preciso denunciar e perseguir os traficantes que exploram e maltratam os migrantes, sem temor de revelar conivências e cumplicidades com as instituições.
É preciso pôr de lado os interesses econômicos para que esteja no centro a pessoa, cada pessoa, cuja vida e dignidade são preciosas aos olhos de Deus. É preciso socorrer e salvar, porque somos todos responsáveis pela vida do nosso próximo, e o Senhor nos pedirá contas no momento do juízo. Obrigado.
Agora, olhando para este colete salva-vidas e olhando para a cruz, cada um reze em silêncio.
Que o Senhor abençoe a todos vocês.
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“O migrante desconhecido também é partícipe da vitória de Cristo”. Discurso do Papa Francisco aos migrantes e refugiados de Lesbos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU