19 Dezembro 2019
A notícia da última terça-feira de que o Papa Francisco essencialmente aboliu a exigência de sigilo pontifício para casos de abuso sexual clerical significa que uma forte cooperação com as autoridades civis é agora uma pedra angular não apenas da prática da Igreja, mas também da lei da Igreja.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 18-12-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Essa é uma distinção importante, porque, nos EUA e em algumas outras partes do mundo católico, o sigilo pontifício já havia sido reinterpretado por bispos e advogados canônicos para permitir tal cooperação, vista como essencial não apenas no interesse da justiça, mas também para impedir que a Igreja fosse exposta à imputabilidade civil e criminal.
Como resultado, embora o arcebispo de Malta, Charles Scicluna, estivesse certo, de algum modo, ao chamar as medidas dessa terça-feira de “epocais”, elas não mudam muito em termos operacionais na Igreja estadunidense.
(O cálculo provavelmente será diferente em outras partes do mundo. Por exemplo, Juan Carlos Cruz, um sobrevivente de abusos cometidos pelo padre pedófilo mais famoso do Chile, anunciou que as medidas dessa terça-feira são uma mudança radical para o seu país: “Todas essas desculpas dos bispos chilenos e de outras partes do mundo e da Cúria acabaram”, disse ele. “Hoje é um dia importante na transparência e na justiça para as vítimas.”)
Para a maioria dos católicos estadunidenses, a questão em aberto dos escândalos de abuso não é a cooperação com as autoridades civis, que, na maioria das vezes, é algo evidente há algumas décadas. Ao contrário, trata-se da responsabilização pelo encobrimento assim como pelo crime, ou seja, punições para autoridades que estavam em uma posição de impedir os abusos ou de punir os abusadores, mas que não o fizeram.
Houve algum movimento nessa direção também nas emendas dessa terça-feira à lei da Igreja, uma vez que, como observou Dom Juan Ignacio Arrie, do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos do Vaticano, o levantamento do sigilo pontifício se aplica não apenas aos casos de abuso clerical, mas também de “conduta de autoridades eclesiásticas que tenderam a silenciar ou a encobrir” denúncias de abuso.
A aplicação mais imediata de um novo espírito de enfrentamento ao encobrimento e ao crime, e de particular interesse aos norte-americanos, seria ao caso do ex-cardeal e ex-padre Theodore McCarrick.
Já se passaram 437 dias, ou seja, um ano, dois meses e 12 dias, desde que o Vaticano emitiu uma declaração dizendo que Francisco havia ordenado “um estudo acurado de toda a documentação presente nos Arquivos dos Dicastérios e Escritórios da Santa Sé referentes ao então cardeal McCarrick, a fim de apurar todos os fatos relevantes, situando-os no seu contexto histórico e avaliando-os com objetividade”.
Os resultados desse estudo, de acordo com a declaração, seriam apresentados “no devido tempo”. Citando uma frase de Francisco durante a sua viagem aos Estados Unidos em 2015, a declaração dizia: “Tanto os abusos quanto o seu acobertamento não podem mais ser tolerados, e um tratamento diferente para os bispos que os cometeram ou os encobriram, de fato, representa uma forma de clericalismo nunca mais aceitável”.
Os últimos rumores são de que o estudo provavelmente será publicado depois das festas, em algum momento do novo ano. Fontes envolvidas na redação também alertam que é improvável que ele produza qualquer “arma fumegante”, no sentido de uma prova irrefutável de que uma dada autoridade, em Roma ou nos EUA, tinha conhecimento da má conduta de McCarrick e participou ativamente de uma campanha para encobri-la.
Em vez disso, é provável que a trilha seja mais sugestiva e indireta, catalogando as pessoas que talvez tenham recebido sinais de alerta ou relatos indiretos, mas nada que sirva de base para evidências concretas. Em outras palavras, é provável que se trate mais de uma história de inação do que de ação, referente a autoridades que podem ter se sentido incentivadas a permanecer o mais ignorantes possível.
Obviamente, isso não significa que não se possa fazer nada à luz do que quer que o relato revele. O direito penal visa a estabelecer um mínimo de responsabilização, e não um teto. Não é um jogo de soma zero, no qual uma determinada ação é ou criminosa ou está perfeitamente correta.
Nos esportes, os treinadores são demitidos o tempo todo por um desempenho que certamente não é criminoso, mas que não é capaz de exaltar. Os CEOs corporativos perdem seus empregos devido a resultados financeiros ruins, o que não significa que eles vão para a cadeia, apenas que não vão mais para o escritório principal. Naturalmente, a Igreja não é uma franquia esportiva nem uma empresa da Fortune 500, mas, nesse caso, o mesmo se aplica: ficar fora da cadeia dificilmente é a única medida de liderança eficaz.
Agora que a lei criminal da Igreja foi alterada, o próximo teste de reforma será ver se as medidas de responsabilização desprovidas de punições criminais estão planejadas para se encaixar em casos nos quais pode não ter havido nenhuma intenção nefasta, mas onde o sistema, mesmo assim, entrou em colapso.
Ele entrou em colapso com McCarrick: apesar de décadas de boatos sobre gestos potencialmente inapropriados ou pelo menos sobre uma conduta que deveria ter acendido um sinal vermelho, McCarrick permaneceu no pico do poder eclesiástico por quase duas décadas. Ele não fez isso sozinho – sua ascensão ao topo e sua permanência lá ocorreram com a ajuda de outras pessoas, e, até o momento, essas outras partes não enfrentaram consequências públicas.
A legislação dessa terça-feira, portanto, foi um jeito importante de consolidar o que já era uma prática recomendada em algumas partes da Igreja, tornando-a universal e irreversível. Por essas razões, ela registra um marco histórico importante.
O que ela não faz, contudo, é terminar o trabalho. Há mais terreno a ser vasculhado, e o início de 2020 se configura como um momento decisivo para ver o quão perto estamos de chegar lá.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o seu X Colóquio Internacional IHU. Abuso sexual: Vítimas, Contextos, Interfaces, Enfrentamentos, a ser realizado nos dias 14 e 15 de setembro de 2020, no Campus Unisinos Porto Alegre.
X Colóquio Internacional IHU. Abuso sexual: Vítimas, Contextos, Interfaces, Enfrentamentos
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Acabar com o sigilo pontifício é um marco histórico. Mas a responsabilização precisa ser efetiva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU