05 Dezembro 2019
"O presépio, como a cruz, não é apenas um sinal de frágil humanidade, mas também um sinal da profecia com a qual Deus redime o pobre, o marginalizado, o estrangeiro, o órfão, a viúva, o manco, o cego e assume o cuidado deles, colocando-os em primeiro lugar!", escreve Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua. Publicado por Come se non, 29-11-2019.
O presépio soberanista é uma blasfêmia. Digo isso não tanto como cidadão, mas como teólogo. Com a expressão "presépio soberanista" quero dizer aquele entendimento distorcido e invertido do presépio, que o reduz à “manifestação de identidade cristã a ser contraposta a outras religiões ou culturas". Quem utiliza o presépio dessa maneira, quase como uma "bandeira" ou até mesmo como uma "arma", que contrapõe a nossa identidade com as identidades "adversárias", não apenas não entende sua mensagem, mas a inverte e a distorce de uma maneira verdadeiramente ultrajante. Gostaria de mostrar em que sentido esse "atentado ao presépio" faz parte daquela "campanha de mentiras" que a lógica soberanista pretende impor à atenção distraída do país. Essa demonstração só é possível se nos dispormos, com muita paciência, a analisar o significado teológico do presépio, antes e além do respeito ao seu "uso convencional".
Desaprender o falso presépio
Em todas as grandes tradições, as passagens decisivas - como para nós o Natal e a Páscoa - tornam-se "locais de reconhecimento" não apenas religioso, mas cultural e social. Esse é um fato inevitável e não negativo. "Fazer o presépio" no Natal e "visitar os jazigos" na Páscoa tornam-se locais de identidade que vão além da fé. Mas, justamente nessa transformação cultural, as tradições se expõem ao risco de indeterminação, porque concentram todas as "mensagens" em um só lugar e, justamente nessa transformação, as culturas e as tradições se expõem ao risco da indeterminação, pois concentram em um ponto as “mensagens” e, justamente por essa "sobrecarga", correm o perigo de perder o significado e banalizá-lo. O presépio, de maneira exemplar, é um caso típico dessa "tentação".
De fato, se analisado de maneira mais atenta, o termo "presépio" significa, em latim, "manjedoura" e constitui a "versão de Lucas" da revelação do Salvador. Que se revela aos pastores irregulares, e não aos bons crentes regulares da época. A tensão, naquele texto de Lucas, está entre a grandeza do Senhor e a pequenez humana que só pode reconhecer a glória de Deus através da profecia da irregularidade dos pastores.
Na versão de Mateus, por outro lado, a dose é ainda maior: a tensão está entre a estrela-guia e os magos que a seguem, em sua condição de estrangeiros, e a hostilidade visceral dos residentes regulares e dos governadores. O "nosso presépio", misturando todas essas mensagens e adicionando elementos decorativos, corre o risco de não aumentar, mas diminuir a força da tradição, reduzindo-a a um "enfeite burguês".
O presépio significa que os últimos, estrangeiros e irregulares, sabem reconhecer Jesus, enquanto governadores, residentes regulares e homens de bem tentam matá-lo. Exatamente como acontece no caminho para a Páscoa, quando a reconhecer Jesus serão uma mulher com muitos maridos, um deficiente grave como o cego de nascença e um morto como Lázaro. Essas são as categorias privilegiadas pelo evangelho. Pelo fato de que aos nossos presépios "não deixamos faltar nada" - pastores e magos, estrela e manjedoura, bois e cordeiros, jumentos e poços, fogos e artesãos, riachos e céus estrelados, gansos e galinhas - não os entendemos mais. Ou melhor, nós os entendemos de maneira distorcida, como "nossa afirmação", como uma "bandeira", até como uma "defesa contra o outro". Esse é o presépio que devemos desaprender. Esse é o presépio da heresia soberanista.
Reaprender o verdadeiro presépio
Para infundir paz, concórdia, respeito, acolhimento, humanidade, o Natal ainda precisa "assustar": essa virtude desconcertante se deve não à sua qualidade "civil", mas ao seu significado religioso, como uma dramática antecipação, desde os primeiros choros do Filho de Deus, da fé pascal. O Natal anuncia a paz e o acolhimento "sub contraria specie", que nos fala de um desenho assassino, de uma recusa, de uma falta de reconhecimento, de uma perseguição. Sem essa interpretação forte, sem esse drama, sem esse pathos, os símbolos do Natal e da Páscoa se tornam "símbolos cívicos de pertencimento", enfeites, brincos, desenhos em camisetas ou nos cadernos escolares. Esse é um fenômeno inevitável: mas uso e significado não coincidem. O significado do presépio e da cruz não são simplesmente o de "valor humano", mas de um "mistério divino", que consubstancia a paz. Por esse motivo, permanece "perturbador", porque revela a fragilidade de todos os valores humanos e suas contradições estruturais. Agora, é evidente que a comunidade civil não pode reconhecer imediatamente a plenitude da mensagem que o símbolo propõe.
Mas a comunidade cristã também deve saber, e dizer com autoridade, que não é possível fazer o presépio e não querer que crianças estrangeiras se matriculem na escola como também fazem poderosas redes de escolas católicas privadas. Se você for um pároco, você não pode fazer o presépio e depois declarar que não deseja hospedar os refugiados. Não é possível defender o presépio como políticos e depois trabalhar para impedir qualquer presença estrangeira no território.
O presépio, como a cruz, não é apenas um sinal de frágil humanidade, mas também um sinal da profecia com a qual Deus redime o pobre, o marginalizado, o estrangeiro, o órfão, a viúva, o manco, o cego e assume o cuidado deles, colocando-os em primeiro lugar! "Antes os últimos" está escrito em letras garrafais em todo presépio verdadeiro. Não se pode pretender que isso fique claro para os políticos, que aliás querem apenas "presépios falsos". No entanto, deve ser claro para as comunidades eclesiais, que anunciam, nas formas pluralistas modernas, o Evangelho da paz, da misericórdia e da reconciliação. Que nunca é simplesmente uma evidência civil. Nessa diferença reside ou cai a justificação de "fazer presépios", não para calar, mas para falar com eficácia, para discernir com visão a longo prazo, para agir com profecia.
O presépio como o "Cavalo de Troia" da tradição
Também a primeira intuição do presépio - a de Francisco de Assis em Greccio, tão desguarnecido, tão essencial, feito apenas de manjedoura (presépio, de fato), de boi e jumento, sem José, sem Maria , sem "filho substituto", mas apenas cheio de humildade, de caridade, de eucaristia e de palavra evangélica - anuncia a paz a todos. Inclui a todos, não discrimina ninguém, derruba muros, acolhe todas as histórias, todas as vidas, todas as perguntas. Mesmo na imaginação mística de Francisco, o "primeiro presépio" proclama vigorosamente essas boas notícias: o menino que nasce e nasce em Greccio como em Belém, transformando Greccio em uma nova Belém, realiza no "coração" e nas "vidas" uma nova possibilidade de paz e reconciliação. Edifica uma cidade pacificada, reconciliada e capaz de acolhimento.
É por isso que um "presépio soberanista" é uma contradição em termos. Por esse motivo, pedir para "fazer o presépio" como uma "defesa contra a diversidade" é uma blasfêmia, mesmo que venha de um deputado regional. É por isso que uma Igreja com sangue nas veias pode escrever uma "carta sobre o presépio", para defender o uso de "fazer o verdadeiro presépio", de paz e de reconciliação, e para conter qualquer blasfêmia que use o presépio - até o presépio - para alimentar o ódio, o conflito e a divisão. Não hesitemos em fazer o verdadeiro presépio. Deixemos entrar em nossas casas, nossas escolas, nossas ruas o "Cavalo de Troia" de nossas tradições. Dessa forma, de indiferentes e cautelosas se possam converter à não-indiferença e à confiança.
O presépio soberanista é uma caricatura, uma corrupção, uma contradição do presépio. O verdadeiro presépio revela um drama de exclusão e perseguição, que Deus inverte em paz e concórdia. O presépio soberanista faz uma caricatura da paz, alimentando apenas exclusão e indiferença. Fazer o presépio, aquele verdadeiro, significa cultivar a esperança de que o "soberano" não é deste mundo e que entre no mundo "sub contraria specie", com o lema "antes os últimos". O nome dele é amor, misericórdia, acolhimento e perdão.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A deriva blasfema do presépio soberanista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU