28 Novembro 2019
“Ao contrário, é precisamente reconhecendo a singularidade específica da vivência de Igreja das comunidades amazônicas que se torna possível instruir um caminho de aprendizagem por parte de Igrejas que vivem a sua experiência de fé em condições culturais e pastorais muito diferentes.”
A opinião é do teólogo e padre italiano Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado em Settimana News, 25-11-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
As Igrejas locais podem aprender muito com o quadro geral do Sínodo para a região amazônica, sem colonizá-lo indevidamente ou instrumentalizá-lo para as suas próprias exigências.
Obscurecidas pela poeira levantada pela conflitualidade (suposta e verdadeira) entre a Igreja Católica norte-americana e o Papa Francisco, há também recepções cordiais e construtivas do seu magistério.
Robert McElroy, bispo de San Diego, na Califórnia, confirma-se como um dos intérpretes mais criativos e coerentes da visão eclesial de Francisco, entendida como um convite que pede para ser conjugado a partir das condições efetivas, cotidianas, de uma Igreja local.
Retornando do Sínodo Pan-Amazônico, McElroy proferiu uma conferência na St. Mary University, em San Antonio (Texas), intitulada “Reavivar o fogo na Igreja Católica”. Partindo do estilo e do modo de proceder que caracterizaram todo o processo sinodal sobre a região amazônica, McElroy dentifica algumas características de fundo que também podem ser relevantes para a Igreja Católica nos Estados Unidos.
Mostrando, assim, que um evento da Igreja universal, que tematiza uma região particular do mundo de maneira inédita, ou seja, transversal às coordenadas eclesiais normais (conferências episcopais), políticas (Estados) e geográficas (continentes), tem uma importância para cada Igreja local, sem por isso se apropriar indevidamente, curvando-o a lógicas que lhe são estranhas.
McElroy esboça esse quadro de uma transposição possível de maneira respeitosa, precisamente, sem querer colonizar de modo algum os resultados do último Sínodo com questões e interesses que representariam uma captura indevida dele, levada adiante por instâncias incapazes de elaborar por conta própria o próprio desígnio de comunidade cristã.
Ao contrário, é precisamente reconhecendo a singularidade específica da vivência de Igreja das comunidades amazônicas que se torna possível instruir um caminho de aprendizagem por parte de Igrejas que vivem a sua experiência de fé em condições culturais e pastorais muito diferentes.
Reconhecer o “próprio” do processo sinodal sobre a Amazônia, portanto, significa fazer justiça ao recorte dos trabalhos, das reflexões e dos resultados que ele soube produzir. Reconhecimento necessário, que também representa o primeiro passo mediante o qual outras Igrejas locais podem aprender com a experiência cristã e cultural das comunidades amazônicas.
De fato, McElroy enfatiza como o Sínodo representou um momento tópico, caracterizado por uma profunda dimensão de oração, que se encarregou de uma questão central: ou seja, “como a Igreja na Amazônia pode proclamar, de maneira ainda mais eficaz, a salvação de Jesus Cristo na sua plenitude, de modo que todos os homens e as mulheres daquela região, particularmente os povos indígenas, possam encontrar na Igreja um verdadeiro sacramento do amor de Deus e da busca da justiça para os pobres e para a terra”.
Uma primeira forma de aprendizagem pode ser identificada no nível da participação ativa das comunidades cristãs amazônicas no processo de discernimento sobre a configuração das suas Igrejas locais. Isso é possível dedicando uma atenção particular à escuta daquelas vozes e experiências que permanecem geralmente excluídas ou são forçadas às margens pelos procedimentos eclesiais.
“O processo de consulta e discernimento deu uma prioridade particular à escuta daquelas vozes que são geralmente excluídas de participação significativa, em particular os povos indígenas da região que, historicamente, foram vítimas de discriminação na sociedade e na vida da Igreja.”
Discernir, portanto, significa também e acima de tudo reconhecer as injustiças e as feridas infligidas a uma parte do povo de Deus pela própria instituição eclesial: dar voz a essas histórias marcadas significa pôr em ação uma prática de justiça restaurativa, da qual a Igreja está em dívida em relação aos povos indígenas e às suas tradições.
Nessa perspectiva, o Sínodo reconheceu que não se pode chegar a nenhuma decisão significativa, capaz de realmente incidir nas vivências do povo, se antes não for posta em prática uma escuta efetiva daqueles a quem a Igreja marginalizou ou, de algum modo, vitimizou.
Portanto, o discernimento eclesial implica sempre uma reparação e uma efetiva purificação da memória comunitária – que só assim se produz como memória plenamente compartilhada por todos: chegando a práticas capazes de fazer justiça aos erros infligidos a uma parte do povo de Deus por outra parte dele. Recordando, assim, que, de muitos modos, a fraternidade eclesial também é sempre um vínculo frágil e ferido, que pede para ser levado em consideração precisamente como tal por todos.
É desse modo que, para a Igreja inteira, pode-se descerrar um patrimônio da fé inacessível de outra forma: “O processo de consulta e discernimento revelou uma trama de profunda beleza da fé, da devoção à família, da proximidade estreita com a Terra como grande bênção da criação de Deus e de uma dedicação a uma visão de vida boa que não está centrada na aquisição de bens materiais, mas sim em viver uma boa relação com Deus, com os nossos irmãos e as nossas irmãs, e com toda a ordem da Criação”.
Discernir como escuta das vivências de fé leva à abertura da celebração litúrgica para formas que são geradas no enraizamento do crer cristão em contextos particulares de vida e de formas culturais: “O processo de discernimento trouxe à luz o imenso dom da graça que a instituição de um rito amazônico constituiria para os povos indígenas da região, permitindo que eles rezem na sua língua e incorporem os símbolos das suas próprias culturas”.
O discernimento, portanto, é um compromisso da comunidade cristã, e não uma gentil concessão hierárquica ou uma reivindicação inapropriada do laicato católico. De fato, discernir significa exatamente sair das práticas de divisão que a estrutura hierárquica da Igreja sempre pode induzir de novo, para realizar aquela realidade unitária do povo de Deus feito por todos os irmãos e as irmãs na fé, juntos entre si, e não como partes que se impõem hierarquicamente umas sobre as outras.
Segundo McElroy, o exercício do discernimento posto em prática em todas as fases do Sínodo Pan-Amazônico representa o ponto nodal no qual podem ser enxertadas também as práticas virtuosas para a vida da Igreja estadunidense: “A minha proposta seria a de assumir o tipo de caminho sinodal que está caracterizando a vida da Igreja na Amazônia. Um caminho feito por uma consulta ampla e em todos os níveis, com a vontade de também aceitar decisões que possam ser difíceis, a partir da busca de uma renovação em todos os setores e da fé indefectível na presença contínua de Deus dentro da comunidade”.
Todos envolvidos, portanto, com direito de palavra e a devida escuta – e não só grupos representativos ou elitistas: a sinodalidade eclesial não suporta e não está disposta a aceitar qualquer ausência – nem mesmo as justificadas ou produzidas pela autoridade.
Um caminho efetivamente sinodal, portanto, não pode ser “um processo elitista, porque a sinodalidade representa a ação de todo o povo de Deus”. Uma Igreja sinodal, desse modo, é uma Igreja em que nenhum fiel, nenhuma comunidade pode ser institucionalmente substituída.
“Todo o povo de Deus deve participar do processo de discernimento que guia a Igreja na sua missão sagrada de anunciar o evangelho de Jesus Cristo. Ao enraizar todo o processo de sinodalidade na vocação batismal de todos os fiéis, Francisco considera que ‘todos os batizados, qualquer que seja a sua posição na Igreja, ou qualquer que seja o nível de instrução na fé, são atores ativos da evangelização. Seria insuficiente prever um projeto de evangelização realizado apenas por profissionais, enquanto o restante dos fiéis seriam nada mais do que receptores passivos’.”
Uma igreja em caminho sinodal é substancialmente uma Igreja que sabe escutar e que quer aprender a escutar em todas as ocasiões e circunstâncias – afirma McElroy, enquanto assume as palavras do Papa Francisco: “Uma Igreja sinodal é uma Igreja que escuta, uma Igreja que se dá conta que escutar é muito mais do que simplesmente ouvir o que os outros dizem. Trata-se de uma escuta recíproca, na qual cada um aprende alguma coisa”.
A aprendizagem e a prática da escuta assim entendidas representam uma urgência candente para a Igreja Católica estadunidense que “não pode recuar diante das questões difíceis ou diante de um diálogo espinhoso”.
Para McElroy, é igualmente urgente uma decisiva extroversão da Igreja Católica estadunidense, que, há já muito tempo, parece estar enrolada em si mesma e preocupada principalmente consigo mesma – mostrando, assim, uma mentalidade antievangélica, como cidadela sitiada, que está paralisando toda a comunidade católica, congelada no espelho encantado do próprio olhar que se dirige quase exclusivamente para si mesmo.
Essa condição do catolicismo norte-americano tem diversas causas e é precisamente por isso, segundo McElroy, que é importante reconhecer primeiro aquelas pelas quais a própria Igreja é responsável. Se é verdade que pode haver uma crescente agressividade contra ela, também é verdade que, nos Estados Unidos, essa agressividade encontra a sua razão, em primeiro lugar, no “fracasso desenfreado da Igreja e dos seus líderes em relação ao reconhecimento da enormidade do crime das violências e dos abusos sexuais por parte do clero – em particular contra os menores”. Somam-se a isso os difusos processos de secularização da sociedade norte-americana, com o consequente afastamento das gerações mais jovens da comunidade eclesial.
Mas essa condição não pode justificar o encurvamento defensivo sobre si mesma e uma atitude agressiva do catolicismo contra as mudanças culturais em curso na sociedade em que a Igreja Católica norte-americana vive cotidianamente.
Para se libertar dessa “obsessão” de si, a Igreja estadunidense pode aprender com a abertura missionária que marcou todo o Sínodo Pan-Amazônico. “O processo de discernimento que busca levar em frente um discipulado verdadeiramente missionário abrange o potencial de libertar a Igreja dos Estados Unidos das poderosas garras que a mentalidade de cidadela sitiada, por um lado, e da cultura da conservação, por outro, têm sobre ela.
O código “Bento”, quer se trata da opção ou de um bem determinado no imaginário eclesial, não corresponde ao destino missionário para o qual o discipulado cristão se entrega: “A visão de uma Igreja pequena e pura é diametralmente oposta ao impulso missionário. que está no centro da vida cristã desde os tempos dos primeiros apóstolos”.
De fato, “o discipulado missionário, pela sua natureza, olha para fora, além de si mesmo, e se recusa a se deixar prender em esquemas j[a datados de ação eclesial e de processos comunitários de tomada de decisão”.
Participação, corresponsabilidade e hospitalidade
O Sínodo foi uma implementação da edificação da Igreja baseada na participação de todo o povo de Deus, reconhecido à altura da responsabilidade da fé – que não pode ser reivindicada para si por parte do ministério presbiteral e eclesial, despojando consequentemente a comunidade cristã da sua dignidade discipular. O “clericalismo” é exatamente essa redução da fé de todos a mera execução do desejo de poder de alguns.
A única correção possível a essa tendência difusa é uma “visão teológica e uma realidade eclesial que enquadre decisivamente o ministério ordenado dentro de uma Igreja participativa e corresponsável, em que os leigos, homens e mulheres, são postos na posição de exercer poder, respeitados, bem formados e apreciados”.
Uma Igreja assim implementada torna-se uma prática cotidiana de laços de fé que nunca podem ficar sem os outros, reconhecimento da sua “vocação à complementaridade no sentido mais profundo, compreendendo que os ricos dons do Espírito pedem para ser usados ampla e sabiamente na comunidade eclesial e que continuar esquemas estruturais e culturais que inibem essa abertura e difusão significa se opor à graça de Deus”.
Somente uma Igreja que vive assim as suas relações será capaz de corresponder ao mandamento da hospitalidade que lhe é indicado todos os dias pela memória evangélica dos gestos e das palavras de Jesus, cujo ministério “é proeminentemente um ministério de convite, acolhida amorosa e cura”. O ministério da Igreja não deve ser diferente: capaz de hospitalidade incondicional exatamente porque é estranho a toda forma de moralismo julgador.
Essa disposição manteria firme a diferença cristã da comunidade dos fiéis em relação às formas ambientais da vida associada, exatamente no próprio momento em que a Igreja habita cotidianamente a socialidade humana comum. No entanto, o “grande perigo é que a nossa vida eclesial está se tornando como a nossa vida política: polarizada, distorcida e tribal. Esta é a razão pela qual um profundo e amplo processo de diálogo sinodal, como podemos aprendê-lo a partir do último Sínodo, dentro da comunidade católica nos Estados Unidos, pode dar forma a um caminho diferente que leva a todos nós para a frente. (...) Desse modo, evitaremos não apenas mais intrusões dos elementos mais negativos da vida política do nosso país na vida da Igreja, mas poderíamos contribuir para o cuidado da crise institucional, moral e política da nossa nação, desenhando as coordenadas de uma política que busca harmonia e bem comum”.
Em síntese, há muito a se apreender com o Sínodo Pan-Amazônico: para o bem e a fraternidade de muitas Igrejas locais – não apenas para a dos Estados Unidos, como mostra McElroy na sua criativa recepção e restituição do ministério de Francisco, mas também para a nossa Igreja italiana, que não sabe exatamente aonde quer ir, nem como assumir fecundamente as indicações que o Papa Francisco nos entregou.
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Interpretar Francisco. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU