22 Novembro 2019
Francisco assombra muitos fiéis e os desafia na fé que possuem, assim como o fez um homem de Nazaré dois milênios atrás.
O comentário é de Robert Mickens, editor-chefe da revista Global Pulse, publicado por La Croix International, 21-11-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Pela 32ª vez desde que foi eleito Bispo de Roma quase sete anos atrás, o Papa Francisco deixou a Cidade Eterna e a península italiana para visitar um outro país, lugar que acolhe parte do seu rebanho de 1,2 bilhão de fiéis.
O papa, que completa 83 anos em poucas semanas, realiza uma visita apostólica, entre os dias 19 e 26 de novembro, à Tailândia e ao Japão. É a sua quarta visita à Ásia.
E como sempre no começo de suas viagens, ele novamente cumprimentou os jornalistas que viajavam junto logo depois que o avião rompeu os ares. Um deles aproveitou a oportunidade para perguntar a Francisco sobre o seu país de origem.
“Quando o senhor irá à Argentina?”, perguntou o profissional de imprensa ao papa.
“Ele respondeu com uma expressão clara de ‘Sei lá’, e então falou aos jornalistas: “Pregúntale al Padre Eterno” (pergunte ao Pai Eterno), de acordo com uma testemunha que, em seguida, tuitou sobre o encontro.
Nascido de imigrantes italianos em 1936 na capital Buenos Aires, a última vez que Francisco esteve na Argentina foi no final de fevereiro de 2013. Foi aí quando, como Cardeal Jorge Mario Bergoglio, voou a Roma para o conclave que acabou elegendo-o papa vários dias depois (em março de 2013).
A resposta do papa à pergunta do jornalista é bastante reveladora. Ele pareceu sugerir que só Deus sabe quando retornará à Argentina. O tema da ainda não realizada visita papal a este país foi debatido semana passada em artigo aqui[1], não sendo esta a primeira vez.
Como alguém que teve uma visão em primeiro plano dos últimos três pontificados, me ocorreu um palpite – e é apenas um palpite – de que quando o Papa Francisco for à Argentina, será para renunciar ao papado. E na Argentina ele permaneceria.
Esta hipótese me ocorreu por uma série de motivos, os quais apresentei ainda em 2018[2].
“No entanto, há algumas coisas acontecendo neste exato momento que dão a entender que todas as apostas estão descartadas”, confessei outro dia concluindo que Francisco provavelmente não renunciaria à luz da oposição desagradável e severa que tem recebido em decorrência de suas iniciativas de reforma.
Os breves comentários feitos a bordo do avião que o levou à Ásia parecem validar isto. E é de se sugerir que o papa não tem planos de retornar a Buenos Aires e se aposentar. Talvez a próxima vez que Bergoglio volte para casa vá ser em uma caixa – se algo assim estiver em seu testamento e se o Vaticano respeitar.
O mais recente pontífice não sepultado na Basílica de São Pedro ou em algum outro lugar da Cidade Eterna morreu no século XIV. Urbano V, que fora o sexto e penúltimo dos papas de Avignon, foi enterrado na França em 1370 na Abadia Beneditina de São Vitor, em Marselha.
Antes disso uma série de papas foram postos para descansar ao longo dos territórios italiano, francês e alemão. Mas parece que o último, desde Urbano V, a ser enterrado fora de Roma foi Gregório XII em 1415.
Curiosamente, este foi também o último papa a renunciar antes que Bento XVI o fizesse cinco séculos depois. Os restos mortais de Gregório estão em uma igreja na região ‘delle Marche’, na Itália, onde foi enterrado como cardeal.
Provocaria uma grande convulsão entre o establishment católico se o Papa Francisco estipulasse que o seu lugar final de descanso fosse Buenos Aires, quer seja na catedral de sua antiga diocese, quer seja no cemitério onde a família Bergoglio está enterrada.
Alguns dos seus inimigos, especialmente os que insinuam que Francisco é um herege, talvez ficariam felizes caso ele viesse escolher não ser sepultado na Basílica de São Pedro ou em alguma outra igreja de Roma. Ninguém, porém, deveria se surpreender.
Em várias ocasiões, Francisco rompeu com – o que muitos acreditam ser – uma longa tradição. Mas desde a eleição para a Sé de Pedro, este papa vem tentando ajudar os católicos a recuperar o verdadeiro sentido da Tradição, não a paródia bizarra do século XIX que os autoproclamados tradicionalistas defendem firmemente.
Na exortação apostólica Evangelii Gaudium, onde esboça o plano de uma reforma para a Igreja, o papa diz que o anúncio “concentra-se no essencial” da fé cristã. Ele adverte para que não demos tanta atenção a “tais aspectos secundários, que, apesar de serem relevantes, por si sozinhos não manifestam o coração da mensagem de Jesus Cristo”.
Com esse tipo de pensamento, Francisco assombra muitos fiéis e os desafia na fé que possuem, assim como o fez um homem de Nazaré dois milênios atrás.
“Hoje, no Evangelho, Jesus deixa os seus contemporâneos, e nós também, surpreendidos”, disse ele em missa na Basílica de São Pedro em 17 de novembro deste ano.
“Precisamente no momento em que alguém elogiava a magnificência do templo de Jerusalém, diz Ele que não ficará ‘pedra sobre pedra’. Por que profere tais palavras sobre instituição tão sagrada, que não era apenas um edifício, mas um sinal religioso único, uma casa para Deus e para o povo crente? Por que profetiza que este ponto firme, nas certezas do Povo de Deus, cairia?”, falou o pontífice.
Ele disse ainda que Jesus nos conta que “quase tudo passará: quase tudo, mas não tudo”.
“[Jesus] explica que, a desmoronar-se, a passar são as coisas penúltimas, não as últimas: o templo, não Deus; os reinos e as vicissitudes da humanidade, não o homem. Passam as coisas penúltimas, que muitas vezes parecem definitivas, mas não são”, observou o papa.
O papa tem buscado igualmente explicar isto aos católicos de hoje, muitos dos quais são incapazes de – ou estão indispostos a – distinguir entre o que é último e o que é penúltimo; o que é essencial e o que é secundário; o que é intrínseco e o que é acidental.
Os críticos do Papa Francisco parecem obcecados a preservar todas as características secundárias ou acidentais do catolicismo romano que, em vez de esclarecer a mensagem de Cristo, acabam, na verdade, obscurecendo-a. E acabam mantendo os cristãos em uma Igreja fraturada, permanentemente dividida.
Estes críticos fazem parte de um catolicismo sectário e tribal, que cultiva uma identidade amplamente baseada nas externalidades que são de natureza humana, não divina. Estes irmãos e irmãs são católico-romanos em primeiro lugar; são cristãos, em segundo.
O Papa Francisco disse que estamos atualmente em uma mudança de época, e não apenas experimentando um período de mudanças. É o tempo de uma mudança paradigmática colossal.
Não restará pedra sobre pedra. Muitas das instituições sagradas e símbolos religiosos aos quais os católicos se apegam e defendem há tempos – por séculos – podem não mais permanecer de pé nesta mudança epocal. Aquilo que não é essencial precisará mudar ou será descartado.
Francisco tem buscado discernir como e até que ponto necessitamos fazer isso. Tem, porém, enfrentado resistência. Parte dela é expressa através de ataques contra a sua integridade como discípulo e líder religioso.
Essa resistência é particularmente feroz e implacável dentro da Cúria Romana, onde os cardeais que se reuniram em 2013 em preparação para o conclave esperavam ver limpo e reformulado. Uma área que quiseram que o novo papa resolvesse é a área da corrupção financeira dentro do Vaticano.
Parece que Francisco tinha ideias claras de como trabalhar desse sentido. Várias vezes nas primeiras semanas de seu pontificado incipiente, ele repetiu: “São Pedro nunca teve uma conta bancária”. – Ele também poderia ter acrescentado que o “primeiro papa” igualmente nunca teve um banco. Mas o atual tem.
Na verdade, existem pelo menos três ou quatro grandes instituições financeiras, do tipo bancário, ligadas à Santa Sé ou ao Vaticano. E elas parecem estar sempre envolvidas em polêmicas por de má-administração ou corrupção.
O plano do papa de lidar com tal bagunça financeira pareceu bastante óbvio: fechar estas instituições e confiar os recursos financeiros da Santa Sé às instituições financeiras externas mais conceituadas.
É isso o que fez quando se tornou arcebispo de Buenos Aires. Mas, por diversos motivos, e nem todos eles nefastos, personalidades poderosas no Vaticano e alguns interesses jamais deixaram esta ideia acontecer na prática.
Pelo menos até agora.
Que visavam trazer transparência e responsabilização às operações financeiras frequentemente desastrosas no Vaticano. Mas estas reformas, obviamente, não estão funcionando.
No fim, isso pode ser uma vantagem para o papa. Se ficar provado, mais uma vez, que os funcionários e autoridades no Vaticano não conseguem administrar as finanças, Francisco – que já deve estar perdendo a paciência – terá, então, todos os motivos necessários para fechar as instituições financeiras da cidade-Estado.
Lembremos as palavras do papa: “A desmoronar-se, a passar são as coisas penúltimas, não as últimas”.
Francisco é um papa muito diferente da maioria daqueles que vieram antes dele pelo fato de que nada tem feito para impedir o desmoronamento de tantas penúltimas ou não essenciais instituições e símbolos que, por muito tempo, tomamos por essenciais à nossa Igreja e fé.
Pelo contrário, ele, na verdade, tem ajudado a facilitar que passem, desmoronem a fim de nos ajudar a preservar aquilo que é último e verdadeiramente essencial.
E por causa disso ele é o papa certo para uma Igreja cambiante nesta mudança de era.
[1] Artigo intitulado “Three cheers for the pope’s opponents”, disponível aqui.
[2] Artigo intitulado “Preparing the next papal trip to Argentina”, disponível aqui.
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O papa certo para uma igreja em tempos de ‘mudança de época’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU