22 Novembro 2019
Se um dia precisar pedir a um jesuíta que endireite suas finanças, você estará em apuros. No entanto, é isso o que o Papa Francisco está fazendo. Verdade seja dita, alguns de nós conseguimos manter em dia as próprias finanças, mas não é esse o nosso carisma.
No final dos anos 80, fiquei encarregado das finanças de um instituto jesuíta onde trabalhava porque o diretor soube que eu havia escrito uma tese sobre política tributária e que tinha experiência na área. Ele achou que eu não tinha medo dos números. Usei o programa Quicken para organizar as contas em diferentes fundos, combinando-as com os projetos que a entidade realizava. Levei meses para entender que doações precisavam ser listadas como passivos, não ativos.
O comentário é de Thomas Reese, jesuíta e jornalista, publicado por Religion News Service, 21-11-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Quando cheguei para trabalhar na revista America, em 1988, os livros de registro eram guardados em um sistema de computador simples que apenas duas pessoas de toda a congregação entendiam. Ele não gerava relatórios inteligíveis nem mesmo impressões para checagens. Decidi que no novo ano fiscal, um mês depois que assumi os trabalhos, começaríamos a usar o QuickBooks. Todos do setor de finanças me odiaram. O meu maior erro foi não os forçar fazerem aulas de QuickBooks; eles diziam que poderiam aprender por conta própria. Acabei tendo de ensiná-los tudo.
A questão é que, entre os jesuítas, me consideram praticamente um gênio quando se trata de finanças, quando na verdade fui apenas um contador organizado. É por isso que as instituições jesuítas contratam leigos para cuidar do setor financeiro. Os diretores e reitores das nossas escolas e universidades devem entender o suficiente para saber como mantê-las longe do vermelho, mas os detalhes são deixados para funcionários leigos. Finanças e orçamentos são revistos por conselhos formados por não religiosos.
Assim, quando o Papa Francisco pediu ao jesuíta espanhol Juan Antonio Guerrero Alves para que assumisse como chefe da Secretaria para a Economia, no Vaticano – departamento antes encabeçado pelo Cardeal George Pell, hoje condenado por abuso infantil por um tribunal australiano –, a reação que tive foi: “Boa sorte, Juan, vou rezar por você”.
As finanças vaticanas são complicadas, mas não impossíveis. Muitas universidades americanas lidam com valores maiores.
Como expliquei em meu livro “Inside the Vatican”, há múltiplos núcleos financeiros no Vaticano. Os maiores são o Estado da Cidade do Vaticano, a Santa Sé (a Cúria Romana e a Secretaria de Estado) e o Instituto para as Obras de Religião, conhecido como IOR, ou o Banco Vaticano. Há inúmeros outros bolsões que lidam com dinheiro, mas estes são os grandes.
O Estado da Cidade do Vaticano é análogo às entidades não acadêmicas de uma universidade: prédios e pátios, segurança, lojas, museus, etc. com mais de mil funcionários (a maioria leigos e italianos), e com contratos de suprimentos e serviços, há a um potencial de corrupção.
Dentro da Santa Sé, a Cúria Romana é a grande burocracia para lidar com os problemas internos da Igreja. Aqui, há uma chance limitada para a corrupção – a Igreja não mais vende indulgências ou anulações [matrimoniais] –, embora a Congregação para a Evangelização dos Povos, da Cúria, tenha dinheiro, oficialmente destinado para as missões.
Incluindo a Secretaria de Estado, a Santa Sé tem mais de 2.000 funcionários, leigos e membros do clero. Recentemente, essa secretaria se viu envolvida numa polêmica em torno de investimentos imobiliários em Londres.
O Banco Vaticano toma os depósitos de entidades religiosas e funcionários do Vaticano e os investe.
Este banco foi retratado negativamente na imprensa em 1982 com o escândalo do Banco Ambrosiano e com as acusações de lavagem de dinheiro. À custa de milhões de dólares gastos com consultores, entre eles contadores forenses, o IOR renovou-se. Infelizmente, o mesmo não ocorreu com outras partes do Vaticano.
Lidar com as folhas de pagamento e com o pagamento de contas é tarefa da Administração do Patrimônio da Sé Apostólica – APSA, o departamento financeiro do Vaticano. A APSA também cuida do portfólio de investimentos do Vaticano, incluindo ações e bens imobiliários.
Aqui há muitas oportunidades de haver má-gestão e corrupção. Inúmeros são os que tentaram limpar as finanças vaticanas.
Muitos críticos não italianos do Vaticano põem a culpa dos problemas deste último na cultura italiana, onde a corrupção não é coisa rara. Quando se elegeu papa, João Paulo II nomeou não italianos para todos os grandes departamentos financeiros do Vaticano, entre eles o cardeal americano Edmund Szoka, que serviu como presidente da Prefeitura dos Assuntos Econômicos de 1990 a 1997.
Em momento algum Szoka teve autoridade sobre o banco, mas estabeleceu o primeiro plano de contas e criou o primeiro relatório financeiro geral da cidade-Estado e da Santa Sé. Ele distribuía relatórios aos bispos do mundo. Experimentou firme oposição no Vaticano e muitas de suas reformas passaram a desaparecer depois que deixou a prefeitura.
Na época do falecimento de João Paulo II, os italianos já estavam mais uma vez no controle das finanças vaticanas.
No começo de seu papado, o Papa Bento XVI tomou uma decisão importante: a de reformar o Banco Vaticano. Insistiu que o Vaticano fizesse tudo o que fosse preciso para entrar na “lista branca” do Moneyval, agência internacional responsável pelo combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo. Para entrar na lista, um país deve seguir certas normas e procedimentos. Até agora, o Vaticano não quis se sujeitar a uma revisão externa.
Para implementar as exigências da Moneyval, a Autoridade de Informação Financeira foi criada com René Brülhart sendo o seu presidente. Brülhart tem reputação internacional como o reformador que limpou as finanças de Liechtenstein.
Relatórios recentes da Moneyval elogiaram o progresso feito pelo Vaticano, especialmente a limpeza feita no banco e a destituição da APSA em atuar como banco. No entanto, a Moneyval mostrou preocupação ao ver que poucos foram processados após as investigações conduzidas pela Autoridade de Informação Financeira.
Este progresso torna muito mais alarmante a renúncia de Brülhart efetivada este mês da Autoridade de Informação Financeira. Ele emprestou credibilidade aos esforços do Vaticano, algo que nenhum cardeal poderia fazer. Ele não explicou por que renunciou, o que parece ter pego de surpresa a Sala de Imprensa do Vaticano.
Esta renúncia acontece depois que os departamentos da Autoridade de Informação Financeira foram examinados pelo promotor do Vaticano e depois que a segunda autoridade no comando, Tommaso di Ruzza, teve acesso negado ao seu escritório. Após uma investigação interna, o conselho da Autoridade de Informação Financeira e Brülhart defenderam di Ruzza.
Reportagens na imprensa informam que o Egmont Group, consórcio de agências de informação financeira de 130 países, suspendera a Autoridade de Informação Financeira, do Vaticano, de participar de sua rede segura de comunicação porque a análise citada acima confiscou documentos sigilosos que o Vaticano tem a obrigação de manter confidenciais. Isso poderá pôr em risco inúmeros acordos financeiros negociados sob o comando de Brülhart com certos países e com a União Europeia.
Enquanto isso, a APSA foi acusada de, mais uma vez, tentar atuar como um banco, em contrariedade às normas da Moneyval.
As chances de o Vaticano entrar na lista branca da Moneyval no futuro são duvidosas, na melhor das hipóteses. Seguindo as regras desta agência, a Santa Sé deve apresentar, já em dezembro de 2019, uma atualização das ações tomadas para implementar as recomendações da instituição. A Moneyval irá, então, avaliar como está indo o Vaticano.
Juan Antonio Guerrero Alves não poderia assumir este novo cargo em um momento menos auspicioso. Se não tivesse um voto de obediência ao papa, eu o recomendaria não aceitar o convite. A única coisa que lhe é favorável é a confiança do papa, mas isso só acontece porque Francisco tem pouco interesse nos detalhes das finanças vaticanas.
Para ter sucesso, Guerrero Alves precisará de quatro coisas, as quais o papa provavelmente não lhe dará:
Em primeiro lugar, autoridade absoluta para definir a política financeira e aplicá-la a todos no Vaticano. Qual o sentido em ter uma monarquia se não é possível mandar nas pessoas ao redor? O apoio papal a esta autoridade é particularmente importante porque, a pedido dos jesuítas, ele continuará sendo padre, e não se tornará bispo e cardeal como o seu antecessor, o Cardeal Pell.
Em segundo lugar, Guerrero Alves precisa da autoridade de demitir qualquer um que não coopere com uma limpeza financeira. Como qualquer outra burocracia, o Vaticano é bom em minar reformas ignorando as instruções. Algumas poucas demissões enviaram a mensagem de que cooperar é obrigatório.
Este papa, porém, reluta em demitir, mesmo aqueles que trabalham contra a sua pauta. Além disso, a legislação trabalhista italiana, que o Vaticano tende a seguir, dificulta a demissão de funcionários.
Em terceiro lugar, Guerrero Alves vai precisar de um orçamento ilimitado para contratar auditores, contadores e consultores. Limpar o Banco Vaticano custa milhões; limpar o restante do Vaticano custará ainda mais. Mas Francisco é mão-fechada e não gosta de gastar dinheiro.
Em quarto lugar, o jesuíta espanhol deverá ter a autoridade para falar com franqueza à imprensa, mesmo se isso significar a identificação de pessoas no Vaticano que não estejam cooperando ou que se envolveram em corrupção. Transparência é essencial para a restauração da confiança.
Duvido que Guerrero Alves terá a autoridade para fazer alguma destas coisas. Consequentemente, não esperemos ver reformas tão cedo. A Moneyval pode assustar o Vaticano quando este quiser voltar a aplicar as suas exigências, mas elas só dizem respeito à lavagem de dinheiro. Outros tipos de corrupção serão mais difíceis de erradicar.
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Quatro poderes que Francisco precisa dar ao seu novo chefe de finanças - Instituto Humanitas Unisinos - IHU