22 Novembro 2019
Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste domingo, 24 de novembro, Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo (Lucas 23,35-43). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A festa por excelência de Cristo Rei do universo é a ascensão, a glorificação de Jesus por parte do Pai, que o entroniza ao seu lado como Kýrios, Senhor vivo para sempre. Em 1925, acrescentou-se a festa de hoje para recordar essa realeza aos reis deste mundo. Na verdade, a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II mudou-a profundamente: Jesus Cristo é Rei porque reina sobre a cruz; é um Rei ao contrário dos reis deste mundo, crucificado entre malfeitores; é um Rei condenado pelos poderes religioso e político; é um Rei que salva os outros e não a si mesmo. Em suma, é um Rei paradoxal!
O trecho do Evangelho de Lucas previsto para esta festa no Ano Litúrgico C é o relato da crucificação de Jesus. Depois da condenação pedida pelos sacerdotes e infligida por Pilatos (cf. Lc 23,13-26), o cortejo que escolta Jesus e os dois delinquentes condenados junto com ele chega a uma pequena colina fora da cidade de Jerusalém, para além da porta de Efraim, uma altura que os judeus chamavam de Gólgota, o Crânio, ou Monte Calvo, onde, segundo uma lenda, Adão havia sido sepultado. Exatamente aí, os três são crucificados, com o terrível suplício reservado aos descartados da sociedade, aos piores delinquentes. Entre dois criminosos, “contado entre os malfeitores” (Is 53,12; Lc 22,37), o novo Adão é crucificado (cf. Lc 23,32-33), ou, melhor, o verdadeiro Adão, o homem totalmente à imagem e semelhança de Deus (cf. Col 1,15).
É uma cena cruel, repleta de violência e de horror, mas o povo (laós), aquele povo que havia seguido Jesus, que o havia aclamado (cf. Lc 19,38), que poucos dias antes pendia dos seus lábios enquanto ele ensinava no templo (cf. Lc 19,48), pois bem, esse povo “está só vendo”. Não está mais do lado de Jesus, não o segue mais, não o defende: parece decepcionado com o resultado da sua história, incapaz de compreender o que está se consumando. Lucas recorda que, após a morte de Jesus, “toda a multidão dos que assistiam a este espetáculo (theoría) e viam o que se passava, voltou batendo no peito” (Lc 23,48), isto é, iniciando um caminho de conversão, mas por enquanto não: Jesus morre abandonado verdadeiramente por todos, sozinho, porque os discípulos fugiram, e a multidão que antes o aplaudia está muda e não está mais do seu lado. Eles esperavam um Messias vitorioso, poderoso, um verdadeiro Rei, mais forte do que os reis deste mundo, mas viram alguém que nem sequer é capaz de se salvar...
Olhando para o povo e para os torturadores do alto da cruz, Jesus só pode afirmar: “Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34), mas nem mesmo essa palavra o torna compreensível para o povo. E precisamente nessa solidão, nesse abandono, eis que a tentação reaparece, como no início da sua missão, quando havia parado no deserto (cf. Lc 4,1-12). Lucas então havia advertido os leitores do evangelho: “Tendo esgotado todas as formas de tentação, o diabo se afastou de Jesus, para voltar no tempo oportuno” (Lc 4,13). E aqui está ele, pontualmente, reaparecendo na hora extrema. Assim como antes a tentação vertia para Jesus em torno da sua capacidade de provar que era o Filho de Deus mediante sinais impressionantes, não da possibilidade de um humano, mas no poder divino, o mesmo acontece agora.
O primeiro instrumento demoníaco são os chefes religiosos, aqueles sacerdotes presentes na cruz porque haviam pedido aos romanos a condenação de Jesus à morte. Como verdadeiros especialistas das Escrituras, eles proclamam com precisão teológica: “A outros ele salvou. Salve-se a si mesmo, se, de fato, é o Cristo de Deus, o Escolhido”. Se Jesus é o Ungido do Senhor, o Filho de Davi, o Rei de Jerusalém, o Eleito enviado por Deus (cf. Is 42,1), salve acima de tudo a si mesmo, mostre o seu poder libertando-se do suplício que o leva à morte!
Mas Jesus permanece na cruz: escuta e silencia, deixa-se acusar de impotência, não se defende, não cede a comportamentos frutos da inimizade. Até o fim, ele vive na lógica do amor de Deus, um Deus que tem um amor misericordioso até pelos seus inimigos; de fato, simultaneamente ao ódio que recebe deles, ele continua a amá-los (cf. Rm 5,6-10).
A segunda tentação é expressada pelo poder político e militar dos soldados pagãos que o matam. Eles zombam dele, dando-lhe de beber vinagre, a ele que tem a garganta ressecada, ardente, e, na ótica política deles, debocham dele assim: “Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo!”. Como um rei que não é capaz de salvar a si mesmo pode salvar os outros? Então, que rei é esse? Como um rei tão impotente pode se opor a César e minar o seu poder? Não, ele merece apenas desprezo!
No entanto, Jesus é rei, como proclama a inscrição posta sobre a cruz, acima da sua cabeça; inscrição que, na intenção dos seus autores, gostaria de ser depreciativa, causa de comiseração, mas, em vez disso, diz uma verdade bem diferente, para quem sabe vê-la...
Jesus é verdadeiramente o Ungido do Senhor, o Messias prometido por Deus a Israel, mas essa realeza é surpreendente, porque não é modelada na dos reis deste mundo, em que os governantes oprimem, mandam e se fazem aplaudir como autores do bem comum (cf. Lc 22,25). A realeza de Jesus, por outro lado, é outra e está no espaço do amor: quem ama, reina; quem ama até o fim (cf. Jo 13,1) é um verdadeiro rei! Jesus também acolhe em silêncio essa segunda tentação, como se continuasse repetindo: “Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem”...
A terceira tentação vem de quem é solidário com ele no suplício, na tortura e na morte, um dos “companheiros” de Jesus, um dos dois bandidos condenados junto com ele. Jesus tinha iniciado o seu mistério colocando-se em uma fila de pecadores para ir ao encontro de João Batista para pedir o batismo (cf. Lc 3,21); durante toda a sua vida, ele esteve entre os pecadores (cf. Lc 15,1-2; 19,7) e agora morre entre os pecadores. Aqui também Jesus continua sendo aquilo que sempre foi: “um amigo dos pecadores” (Lc 7,34).
Então, um dos dois crucificados com ele lhe diz: “Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!”. É um grito de desespero: “Salva também a nós porque, se és o Messias enviado por Deus, podes fazê-lo!”. Mas Jesus se cala, compreendendo-o no seu protesto e no seu desafio. É o outro condenado que intervém observando: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação? Para nós, é justo, porque estamos recebendo o que merecemos; mas ele não fez nada de mal”.
Digamos a verdade: fizemos do primeiro “o mau ladrão” e, do segundo, “o bom ladrão”, mas, na realidade, ambos eram malfeitores, homicidas de acordo com os outros evangelhos. Portanto, ambos são maus, e, se há uma diferença, ela deve ser buscada apenas no fato de que o segundo chega a fazer essa invocação confidente: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado”, ou seja, ele pede que Jesus para ser salvo não aqui, porque isso não é possível para Jesus, mas sim quando ele vier no seu Reino; ou, melhor, ele não pede sequer para ser salvo, mas para ser recordado, o que já seria muito... Jesus poderia talvez se recusar a salvar o primeiro ladrão que lhe pede: “Salva também a nós”? Na verdade, ele pode mostrar o seu poder apenas salvando, mas não os fazendo descer da cruz, mas sim não os abandonando na hora da vinda do seu Reino.
Salvar outro não é preservá-lo da morte, mas tornar a sua morte uma passagem, um êxodo para a vida eterna, para o Reino! Jesus não nos salva agora como nós gostaríamos, mas nos salva se nós, que nunca somos justos ou bons, soubermos acolher o perdão que Deus nos oferece, que Jesus nos oferece. Ambos os malfeitores entenderam que ser bom e justo está de acordo com a vontade de Deus, mas que, se isso não ocorreu na própria vida, o que importa, no fim, é acolher o seu perdão, dizendo simplesmente: “Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado”.
Nesse trecho do Evangelho, a simples afirmação de Jesus em resposta a uma invocação de recordação ressoa realmente como boa notícia, tanto para o malfeitor, quanto para cada um de nós: “Ainda hoje, já na tua morte, e não no fim dos tempos, na hora da manifestação gloriosa do Senhor, já hoje entrarás no paraíso, o lugar da árvore da vida (cf. Gn 2,8-9), o lugar onde não haverá mais nem morte, nem sofrimento, nem pecado (cf. Ap 21,4)”. A morte se torna uma passagem para a vida, para a plenitude da felicidade, porque – como escrevia Santo Ambrósio – “onde está Cristo, aí está o Reino”, a vida!
Não é possível concluir este comentário sem evocar as palavras com as quais Santo Agostinho comenta o nosso trecho. Ele fica surpreso e se pergunta como esse malfeitor, que nem conhecia a Lei nem os Profetas, que não tinha rezado muito, pôde reconhecer o Messias em um crucificado. Portanto, ele interrogar o ladrão, que responde: “Jesus olhou para mim, e nesse seu olhar eu entendi tudo!”.
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“Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu Reino” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU