22 Novembro 2019
A fim de levar-nos a contemplar o Rei do Universo, a Liturgia de hoje conduz o nosso olhar para a figura deste Rei-servidor que morreu na Cruz sem nenhuma honra nem triunfos, mas que nos abriu as portas de um Reino no qual, para sempre, reinam o amor, a misericórdia e a compaixão.
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras da Solenidade de Jesus Cristo, Rei do Universo (24 de novembro de 2019). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
1ª leitura: “E eles o ungiram Rei de Israel” (2 Samuel 5,1-3).
Salmo: Sl. 121(122) - R/ Quanta alegria e felicidade: vamos a casa do Senhor!
2ª leitura: “Ele nos libertou do poder das trevas e nos recebeu no Reino de seu Filho amado” (Col 1,12-20).
Evangelho: “Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu Reinado” (Lucas 23,35-43).
Não vamos nos deter em que «Cristo-Rei» seja um pleonasmo: a palavra “Cristo” já designa quem tenha recebido a unção real, como mencionado na 1ª leitura. São inúmeros os textos que falam da realeza de Deus: por exemplo, o Salmo 95 diz que Deus é «o grande rei sobre todos os deuses», ou o Salmo 97, cujas primeiras palavras são: «Iahweh é rei!». É que, entre os personagens da terra, não se conhece ninguém mais poderoso do que o rei. Ele é o único cuja vontade se impõe sem discussão possível.
Mas a metáfora vai mais longe: representa-se Deus assentado em seu trono, sendo servido por uma multidão de subalternos celestes. Ele está «acima de tudo» e de todos. Temos dificuldade em superar esta metáfora, tanto mais que é importante reconhecer que se deve preferir a «lei» divina, a lei do amor, a qualquer outra decisão dos poderes humanos. Esta «realeza» de Deus se faz expressar, ganha forma, em Cristo, o «Verbo de Deus», a Palavra criadora que, em ação desde sempre, emerge por assim dizer à superfície na pessoa de Jesus. Com ele, a realeza de Deus, o seu Reino, está no meio de nós e em nós.
Esta é a Palavra que, em segredo, vem trabalhando a humanidade até que ela venha a alcançar a sua plenitude no final dos tempos, para além do tempo e da história. Enquanto esperamos, Ele trabalha em nós e no meio de nós: é o Reino em gestação. Estamos longe, portanto, de um soberano sentado no seu trono. Deus é Espírito e o Cristo, feito «corpo espiritual», não exerce nenhuma forma de autoridade passível de se comparar à dos soberanos deste mundo. Aliás, nos evangelhos, não vemos Jesus, Ele que é a visibilidade do Deus invisível, forçar nem sequer uma vez a liberdade de quem quer que seja. Ao contrário, o que vemos é uma profusão de «se queres...» e «quem quer...».
O tema da realeza de Deus e, portanto, da realeza do Cristo, está ligado ao tema da onipotência. O problema é que muitos cristãos imaginam que tudo o que acontece neste mundo e em sua vida privada seja resultado direto da intervenção divina. Também a questão da «divina providência» nem sempre escapa a este mal-entendido. É claro que Deus está aqui, conosco, em tudo o que temos de viver; mas o mundo foi confiado ao homem. Deus, de qualquer forma, desapossou-se voluntariamente do exercício de sua onipotência. Sim, Ele responde à nossa oração, mas dando-nos o Espírito, para que possamos gerir da melhor forma possível o que a nós se impõe (ver Lucas 11,9-13).
Assim, vai-se estabelecendo entre nós o Reino do Cristo. Reino que não é deste mundo, conforme disse Jesus para Pilatos, no evangelho de João, pois este é um mundo que funciona de acordo com a sua própria lógica, submetido ao jogo das liberdades humanas. Para o melhor ou para o pior. Nem deste mundo nem neste mundo.
Esta impotência do Cristo fez com que se desatassem os sarcasmos de que foi coberto enquanto sofria e morria na Cruz. E é aí que se produz a inversão fundamental que governa as nossas existências: pois, por ter acolhido com a mais plena liberdade todos os sofrimentos e a morte, Jesus então os domina, fazendo da Cruz o trono da sua onipotência. Por ela, como diz o Evangelho de João, é «levantado da terra» e, daí em diante, os olhares de todos os que o trespassaram haverão de se voltar para Ele.
Avancemos um pouco mais no que acaba de ser dito: foi por meio de Jesus e da sua existência histórica que Deus interveio no mundo. Manifestação, portanto, enfim, da sua onipotência. Mas onipotência exercida bem aí onde ela se encontra mais desmentida! Pois foi em sua morte que o Cristo a exerceu em plena luz do dia. Onipotência que se revela por sua vitória sobre o que há de pior, por sua vitória sobre a morte, o «último inimigo» (1 Coríntios 15,25-26). É a Ressurreição que já está aí.
A 2ª leitura explica que o Pai nos fez entrar no Reino do seu Filho. Vamos repetir: não entramos neste Reino como subordinados, mas como herdeiros. Somos chamados a compartilhar a realeza de Cristo, ou seja, a dominar todas as forças da criação, tudo o que poderia exercer um poder sobre nós, seduzir-nos e sujeitar-nos. Assim poderemos chegar à nossa verdade de homens e de mulheres, ou seja, de imagens e semelhança do Deus invisível.
Eis diante de nós o Cristo que não é outro senão a verdade que se fez visível e audível. Todos os que estão insatisfeitos com o caráter ainda muito aproximativo de sua semelhança com Deus escutam a sua voz. Reside aí o seu poder: na atração que Ele exerce sobre a nossa própria verdade (ler João 18,36-38). Chegar à humanidade plena é compartilhar a realeza de Cristo. Como isto equivale a fazer nosso o amor que chega até ao dom de si mesmo, em vez da vontade de poder e de dominação, eis chegado o Reino da paz «na terra e nos céus». Mas estamos ainda sob o regime da violência e das injúrias que Jesus superou, «levantado acima de tudo». E, no entanto, este Reino já está aqui: o malfeitor crucificado com o Cristo pediu-lhe que se lembrasse dele «quando entrasse no seu Reino». E Jesus respondeu: «Hoje mesmo». O Reino está aqui desde que, na fé e no amor, aceitemos ser com o Cristo.
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O Rei do Amor - Instituto Humanitas Unisinos - IHU