“Ruini erra ao abençoar Matteo Salvini. O Vaticano fez o mesmo com o Duce”, afirma Padre Bartolomeo Sorge.
O grande jesuíta fala sobre os seus três Papas, a política e os ataques contra Bergoglio. “Precisamos de um sínodo da igreja italiana. Para dizer que ódio, racismo e fechar os portos aos naufrágios são contra o evangelho".
A entrevista é de Marco Damilano, publicada por Espresso, 15-11-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Na minha longa vida, tive três sonhos: me tornar um santo sacerdote jesuíta; empenhar-me com todas as minhas forças para a construção da cidade do homem; realizar com fé e amor a Igreja do Concílio, renovada, livre do poder, pobre, em diálogo com o mundo.
O primeiro sonho, infelizmente, continua tal, mas confio que o Senhor o concluirá. O segundo sonho eu vi realizar-se progressivamente ao longo do período da minha vida, especialmente nos anos 1980, quando me vi lutando contra a máfia que na Sicília visava o coração do estado. Os onze anos em que morei em Palermo, passei quase todos sob proteção armada. Agostino Catalano, um dos meus "anjos", foi explodido com uma bomba junto com Paolo Borsellino. Infelizmente eu não pude estar perto dele e de sua família porque estava na América Latina. Eu persigo o terceiro sonho há 50 anos (ou seja, desde o término do Concílio), metade dos quais na Civiltà Cattolica, ao lado de três grandes Papas".
También están los jesuitas, costumava se dizer na América Latina: se a situação é desesperadora, estão aí os jesuítas. Aqui está um ilustre, um grande italiano. O padre Bartolomeo Sorge, que comemorou seu nonagésimo aniversário em 25 de outubro, falando em sua casa de Gallarate, que hospedou em seus últimos anos o cardeal Carlo Maria Martini. De 1973 a 1985, dirigiu a revista Civiltà Cattolica, promoveu a "primavera de Palermo" com o prefeito Leoluca Orlando nos anos 1980. Hoje usa as mídias sociais. Um tweet sobre Matteo Salvini: "Não basta beijar Jesus em público: Judas já fez isso". Coloca uma boina preta na cabeça e fala sobre sua vida.
Nas opiniões de seus adversários, o senhor foi um poderoso jesuíta, influente na Igreja e entre políticos católicos. É verdade que estava prestes a ser nomeado cardeal?
Eu só fiquei sabendo isso recentemente, lendo os documentos publicados por Stefania Falasca em seu livro sobre a morte do papa Luciani. Soube que João Paulo I queria me enviar como patriarca para Veneza para o seu posto, que ficou vacante após a eleição para o pontificado. Providencialmente, o cardeal Antonio Poma, presidente da CEI, se opôs e venceu. Por duas razões. A primeira foi que, depois da carta de Enrico Berlinguer ao bispo Luigi Bettazzi, eu tinha auspiciado que os católicos não tivessem medo de se confrontar culturalmente com os comunistas. A segunda, que desde a palestra que proferi na conferência da Igreja italiana sobre "Evangelização e promoção humana" (1976), prevendo o fim da DC, eu estava ocupado em encontrar um novo caminho para a presença política dos católicos na Itália, diferente do partido democrata-cristão. Foi assim que perdi a gôndola ...
O senhor é um italiano de 1900. Que formação teve?
Nasci em Rio Marina, na ilha de Elba. Minha família passou algum tempo na Toscana e depois se mudou para o Vêneto. Meu pai morreu na guerra, então ficamos morando em Castelfranco. Aos 17 anos, entrei na Companhia de Jesus, desejando me dedicar especialmente ao apostolado espiritual. Nunca imaginaria acabar na política! Estudei filosofia na faculdade dos jesuítas em Milão e teologia na Espanha, na Universidade de Comillas. Aqueles eram os anos da ditadura de Franco e, como na Itália durante o fascismo, circulavam piadas. Um exemplo? Um cavalheiro - contavam – chega correndo, esbaforido, no palácio do Caudilho. Ele é parado: ‘O que quer? Por que toda essa pressa?’, ‘Eu tenho que atirar em Franco’.’Muito bem! Então entre na fila!’.
Logo, porém, seus superiores direcionaram o senhor para a política.
É isso. Após a formação, em 1960, fui imediatamente enviado para a Civiltà Cattolica. O diretor era o padre Roberto Tucci. Eu tinha apenas 30 anos, eles me deram cinco anos para me especializar. Depois de dois anos na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Gregoriana, me formei em ciências políticas na Universidade Sapienza de Roma e comecei a ‘rabiscar’ na revista, Assim me tornei um cientista político, jornalista e vice-diretor, até que o geral jesuíta Pedro Arrupe, em 1973, me nomeou diretor. Naquela posição, privilegiada, mas cheia de responsabilidade, fui testemunha direta do período mais difícil do pós-Concílio. Os anos emocionantes de renascimento e da nova e atormentada primavera eclesial.
Os anos, também, do inverno: o terrorismo, as divisões e os protestos na Igreja, o fim do pontificado de Paulo VI e a eleição do papa polonês João Paulo II, que desabou sobre o catolicismo italiano.
Enquanto Paulo VI viveu, sempre tive minhas costas cobertas. O papa gostava de mim e me encorajava. Certo dia, em uma audiência privada, ele me disse: ‘Você, padre, sempre está um passo à frente, antes que nós’, mas imediatamente acrescentou: ‘vá em frente! Continue sempre na fidelidade adulta ao Magistério da Igreja’ (palavras dele!). Nos doze anos de minha direção, a revista sempre foi orientada segundo a linha do papa Montini. As primeiras dificuldades começaram para mim em 1978 quando, tendo morrido Paulo VI e depois do meteoro do papa Luciani, foi eleito o papa João Paulo II. Na Igreja italiana, o clima mudou visivelmente. A partir da Convenção eclesial de Loreto em 1985, a interpretação profética do Concílio, defendida com coragem e sabedoria por Montini, foi abandonada. A visão wojtyliana de uma Igreja da "força social", abertamente voltada à defesa dos "valores não negociáveis", tomou lugar sobre a visão montiniana da Igreja do diálogo e da ‘escolha religiosa’.
A escolha religiosa era o desapego do colateralismo, o voto pela DC. Contestada pelo novo poder forte do mundo católico: Comunhão e Libertação.
O modelo principal da participação dos leigos no mundo, constituído pela Ação Católica, foi posto em discussão pela afirmação do novo estilo combativo e militante de Comunhão e Libertação, mais próximo do estilo do Papa Wojtyla. Em uma entrevista ao Sabato (semanal da CL), me permiti ressaltar isso: ‘Se hoje eu tivesse 17 anos, certamente seria um cielino. De fato, encontro na CL aquele entusiasmo que ontem, quando jovem, me atraiu na Ação Católica. O problema é que, entre ontem e hoje, houve o Concílio, que explicou claramente que o Senhor nos ordena a salgar o mundo, não transformar o mundo em um saleiro!’ Jamais deveria ter dito isso! Eles nunca me perdoaram, nem anos depois.
Efetivamente, o senhor foi demitido da direção da Civiltà Cattolica.
Diante das crescentes dificuldades que encontrava em manter a revista fiel à linha montiniana, conversei sobre isso com o padre geral Hans-Peter Kolvenbach: ‘Se é preciso mudar a linha editorial, é melhor mudar o diretor’. Quando fui enviado para Palermo, muitos escreveram: o padre Sorge foi mandado para o exílio. Na realidade, o Centro Jesuíta de Estudos Sociais de Palermo tinha dificuldade para decolar, enquanto a situação na Sicília era dramática. Algo tinha que ser feito. Assim nasceu o instituto de formação política Pedro Arrupe, que marcou o início da proliferação das escolas sociais e políticas, espalhadas em todas as dioceses italianas.
O centro de Arrupe aprovou e apoiou a junta de Leoluca Orlando com a DC e o PCI, que, no final dos anos 1980, deram origem à Primavera de Palermo, tornando-se um caso nacional. Por esse motivo, o senhor e o padre Ennio Pintacuda foram atacados pelos socialistas com Claudio Martelli, pelos democratas-cristãos de Andreotti e até pelo presidente Cossiga. Eles compararam vocês com os jesuítas revolucionários de 1700 na América Latina, aqueles do filme "Missão" ...
Eu estava perfeitamente ciente da delicadeza da situação política, que teria sido criada pela junta de Palermo. Mas era necessário fazê-lo, se alguém quisesse acabar com o predomínio da máfia na cidade. Lembro-me da intervenção decisiva de Sergio Mattarella que, por telefone, sem nunca levantar a voz, mas apresentando convincentes razões políticas, venceu no fim as últimas resistências daqueles que em Roma se opunham à formação da junta Orlando. Foi uma experiência difícil, mas cheia de esperança.
Em 16 de novembro de 1989, em Salvador, seis jesuítas e duas mulheres foram mortas na universidade por esquadrões da morte. Entre eles o reitor pare Ignacio Ellacuría. Na Sicília, naqueles anos, a máfia matou um padre, padre Pino Puglisi, e o senhor estava sempre acompanhado por escolta armada.
Foram anos terríveis. Mas nunca esquecerei a alegria que senti ao ver toda a cidade de Palermo reagindo abertamente contra a máfia, superando o medo e o silêncio que a mantinha presa por longo tempo. Finalmente, a consciência popular despertou, reagindo à resignação dominante, que me havia impressionado negativamente quando cheguei à Sicília.
Qual pontífice é o primeiro jesuíta papa, Francisco?
Para mim, é uma prova de que Deus guia a história e a Igreja. Havia a necessidade de um papa que tivesse a coragem evangélica de retomar o caminho da reforma interna da Igreja, preconizada pelo Concílio, continuando a obra iniciada por Paulo VI e interrompida com sua morte, depois de João Paulo II e Bento XVI , com igual generosidade, se dedicaram a renovar as relações ad extra da Igreja com o mundo. Previam-se reações violentas, que hoje atingem o Papa Francisco por parte daqueles que, no fundo, apenas demonstram que não aceitaram realmente o Concílio.
Qual é o confronto na Igreja do Papa Bergoglio?
O problema está na interpretação do Concílio. Na Igreja, confrontaram-se desde o início a leitura profética, feita por João XXIII, Paulo VI e o Papa Luciani, e a outra leitura (totalmente legítima) de natureza prevalentemente jurídica, como sempre havia sido aplicada no passado na interpretação dos textos dos precedentes 20 concílios ecumênicos. Não se trata de um confronto abstrato e teórico, envolve a vida concreta e as escolhas cotidianas dos cristãos.
Isso também se aplica à igreja italiana? Na Itália, as igrejas estão se esvaziando e a maioria dos italianos não está interessada nas discussões internas dos bispos e do clero. Enquanto, por ironia, a representação do cristianismo parece ocupada na cena pública por Matteo Salvini, que empunha o rosário nas ruas e até no auditório do Senado?
Eu acredito que a convocação de um Sínodo na Igreja italiana é agora realmente necessário. As cinco convenções eclesiais nacionais, realizadas com dez anos de intervalo, não conseguiram - por assim dizer - traduzir o Concílio para o italiano. Precisamos de uma forte mudança, se quisermos implementar a virada eclesial que está demorando demais a vir. Somente a intervenção com autoridade de um Sínodo pode ter a capacidade de iluminar as consciências sobre a inaceitabilidade dos ataques violentos ao Papa, sobre a natureza anti-evangélica da antropologia política, hoje dominante, baseada no egoísmo, no ódio e no racismo, que fecha os portos aos naufrágios e nega solidariedade à senadora Segre, testemunha viva da tragédia nazista do Holocausto, sobre a absurda manipulação política dos símbolos religiosos, usada para encobrir a imoralidade de leis que chegam a punir quem faz o bem e salva vidas humanas. A Igreja não pode mais ficar calada. Deve falar claramente. É seu dever preciso não julgar ou condenar as pessoas, mas iluminar as consciências.
Mas um importante eclesiástico já se manifestou, o cardeal Camillo Ruini. Para dizer que Salvini reage à descristianização e com ele a Igreja deve falar, para fazer com que amadureça. O senhor o exorciza, Ruini o abençoa.
Na história da igreja italiana, Ruini é o último epígono com autoridade da temporada do papa Wojtyla. João Paulo II, totalmente dedicado à sua extraordinária missão evangelizadora a nível mundial, efetivamente colocou nas mãos de Ruini as rédeas de nossa Igreja, nomeando-o por cinco anos como secretário-geral da CEI, por 16 anos presidente dos bispos e por 17 anos de vigário geral da diocese de Roma. Quanto à sua atitude benevolente em relação a Salvini, devemos dizer que é bastante similar ao que outros prelados fizeram, há seu tempo, em relação a Mussolini. Infelizmente a história ensina que não basta proclamar alguns valores humanos fundamentais, justamente caros para a Igreja, se depois se negam as liberdades democráticas e os direitos civis e sociais dos cidadãos.
Ruini também afirma considerar irrelevante e acabado o papel dos católicos democráticos, que ele chama de "catolicismo político de esquerda" e, ao contrário, congratula-se com sua escolha de influenciar a centro-direita: quase a reivindicação de um papel estratégico. Isso também é verdade para o senhor?
Uma opinião pessoal, por mais digna de autoridade e respeito que seja, nunca será capaz de mudar a história ou reescrevê-la de maneira diferente do que realmente foi.
E quanto a Matteo Renzi? Ele também é um alvo dos seus tweets.
Repito o juízo que manifestei alguns dias atrás. É impressionante ver que, no momento em que a crise política se torna mais aguda, sempre surge um ou outro personagem que pretende agir como o único homem no comando, o homem da Providência. Tanto Berlusconi, como Renzi e Salvini mostram a mesma propensão. Nenhum deles, depois das derrotas sofridas, jamais pensou em se afastar, como seria lógico e honesto. Cada um deles continuou a se considerar o salvador da Itália! É um sintoma característico do populismo, de uma doença mortal da democracia, que mais de uma vez já abriu o caminho para regimes totalitários e a ditadura.
Faça outro sonho, em conclusão.
A minha é uma idade em que os sonhos não são mais feitos, são contados. Em vez disso, sempre permanece viva a esperança, que, como costuma-se dizer, é a última que morre. A minha esperança é esta: que os jovens, depois de lerem o relato que fiz dos três sonhos da minha vida, continuem - eles sim – a sonhar e se empenhem com entusiasmo a prosseguir na renovação da Igreja e da Itália.