13 Novembro 2019
Quando o jornal Boston Globe divulgou uma série chocante de notícias sobre os escândalos de abuso sexual clerical na cidade de Boston em 2002, o padre Daniel Portillo era seminarista.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 12-11-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quando o padre mexicano Marcial Maciel, o infeliz fundador dos Legionários de Cristo, acusado de abusar de menores, morreu em 2005, Portillo estava em Roma e viu como alguns membros da ordem fundada pelo falecido padre ainda o rotulavam como santo.
Quando a Igreja Católica na Irlanda foi sacudida por novas revelações sobre a dimensão da crise dos abusos sexuais na Ilha Esmeralda, em 2009, Portillo estava sendo ordenado diácono.
Hoje, dez anos após a sua ordenação, ele lidera um ministério moldado por esses eventos: ele é o fundador do Ceprome, um centro interdisciplinar de proteção às crianças da Pontifícia Universidade do México.
O centro organizou um workshop entre os dias 6 e 8 de novembro sobre a proteção às crianças na América Latina.
Conversando com o Crux no domingo, Portillo falou sobre o seminário, mas também sobre o impacto que a crise dos abusos clericais teve sobre ele.
“Às vezes eu me pergunto se realmente entendemos a seriedade do problema e eu acredito que não”, disse. “Não quero parecer insensível, mas parece quando uma pessoa descobre que está com câncer em estágio inicial: às vezes, ela prefere não falar sobre isso, negando o diagnóstico, em vez de aceitar a realidade.”
Portillo também reconheceu que, se fosse um leigo com filhos hoje, ele não teria certeza de que “tentaria continuamente que meus filhos fossem católicos amanhã, com uma Igreja que não é capaz de ser transparente sobre essas coisas ou sobre as suas finanças”.
O que você achou do curso? Era o que você esperava?
Eu me sinto muito grato a Deus, especialmente pela experiência de poder conhecer pessoas e instituições diferentes que estão trabalhando na mesma missão. Segundo, as expectativas excederam o que pensávamos, especialmente no que diz respeito ao envolvimento ativo dos participantes e também com o interesse dos palestrantes, não apenas pelas suas intervenções, mas também por quererem ouvir os outros.
Além disso, fora da sala, continuamos conversando e conversando, indo mais fundo. Havia uma equipe que nos ajudou a fazer uma avaliação, por meio de entrevistas, sobre as impressões dos participantes. As impressões foram muito favoráveis, com o pedido de que o encontro continue por uma semana. Além disso, os bispos se deram a oportunidade de continuar ouvindo. Em uma palavra, acho que foi um ambiente de aprendizagem para todos e um lembrete de que, no ambiente de prevenção, sempre podemos continuar aprendendo, mantendo-nos em uma escuta ativa.
Quais são os desafios futuros?
O primeiro é o das sinergias, ou seja, embora as conexões estejam sendo estabelecidas em diversos países, continua sendo um grande desafio manter essas sinergias e o espírito colegial entre as diversas instituições. Segundo, a aprendizagem ao longo da vida, ou seja, não nos conformarmos com o que sabemos hoje, mas nos mantermos atualizados com o que outras instituições estão desenvolvendo em seus ambientes. E outro desafio é uma decisão forte e franca sobre a questão da luta pela Igreja. Isso pode não ser possível, mas estamos enfrentando uma das situações mais críticas na Igreja.
O que significa para você lutar pela Igreja?
Que, diante da decepção por causa do acobertamento, diante da decepção por causa de casos específicos de abuso, permanecer como parte da Igreja não é fácil, porque permanecer como padre de uma Igreja que ocultou, que tem sido negligente, não é fácil.
Em outras palavras, acobertar não é proteger?
Exatamente. Seria o oposto de proteger. E, nesse sentido, é importante percebermos que a prevenção é uma missão dos batizados. Se pensarmos que a prevenção é hierárquica, nada será feito. A prevenção é essencial, é um direito da humanidade e também é uma missão dos batizados. Podemos sustentar isso a partir da Evangelii gaudium. Dói conhecer padres da nossa geração ou pessoas com quem fomos ao seminário que abusaram sexualmente de crianças. Isso é muito doloroso. Quem quer que seja membro da Igreja Católica deve entender que uma parte do fato de nos chamarmos católicos é fazermos parte do ministério de prevenção na Igreja.
Dom Ali Herrera, durante uma de suas apresentações, disse que, enquanto os “gringos” avançavam, a América Latina fazia pouco ou nada. Você concorda com esse diagnóstico?
Sim. Ainda hoje é vergonhoso saber que existem países que não fizeram nada. Isto é, absolutamente nada.
Em que sentido?
Que eles não começaram a gerar consciência, nem começaram a reconhecer os danos que causamos, nem a culpa que temos. Que não estamos pensando no que podemos fazer para resolver isso. E nós [como Ceprome] sabemos disso, porque, para nós, é onde é mais difícil entrar.
Algum exemplo de país da América Latina em que nada foi feito?
Honduras.
Para onde o Ceprome está indo agora?
Rumo a gerar sinergias e colaborações com diferentes países, especialmente com pessoas que estão estabelecendo comissões nas Conferências Episcopais nacionais ou coordenando comissões diocesanas ou congregacionais. Queremos estabelecer o conselho latino-americano baseado em quatro princípios fundamentais: sinodalidade, colegialidade, transversalidade e interdisciplinaridade – todos os quais são essenciais para nós.
Como membros da Igreja, todos participamos desse problema e, como tais, somos todos chamados a ajudar a resolvê-lo. Não podemos deixar isso nas mãos de poucos. Acredito que cada pessoa pode contribuir com alguma coisa e, por menor que seja essa contribuição, ela soma. Não podemos promover um princípio de exclusividade, segundo o qual apenas um punhado de pessoas – por exemplo, canonistas ou especialistas – pode contribuir para acabar com isso. Precisamos servir a todos. Existe uma boa população de irmãos e irmãs batizados que estão feridos e decepcionados com a sua Igreja, porque, ainda hoje, a Igreja não forneceu um relato verdadeiro do que aconteceu.
Como católico, eu me sinto decepcionado, até hoje, porque a nossa Igreja não nos contou o que aconteceu. Fomos informados por outras pessoas, incluindo a mídia, e elas nos aproximaram da realidade, para entender o porte da crise. Mas ser informados por “pessoas de fora” aumenta a dor.
Mesmo hoje, ainda não sabemos o que aconteceu com o ex-cardeal Theodore McCarrick, que foi removido do sacerdócio no início deste ano, após ser considerado culpado de abusar sexualmente de seminaristas...
E é a mesma história. Ao tentar “proteger” a instituição, muitas vezes se gera um escândalo ainda maior. Nesse sentido, eu acho que temos uma dívida muito grande, e, como eu disse durante a minha palestra, a dívida não é apenas com as vítimas primárias, mas também com toda a comunidade dos fiéis, porque não fomos claros com eles.
Se um membro sofre, todos sofrem…
Exatamente. Eu me pergunto se [às vezes na Igreja] o sofrimento é entendido como masoquismo. Continuamos ferindo, em vez de pensar no que podemos fazer para aliviar o sofrimento do outro, sendo claros com todos. De que maneira podemos aliviar o sofrimento do outro? Sendo claros com todos. Informando as pessoas de que a Igreja fala de cabeça erguida e com clareza. É muito estranho perceber que, por trás de toda essa questão, encontramos outras questões nas quais não pensamos ou imaginamos que estão na origem de tudo isso. Porque não se trata apenas de uma questão de comportamento sexual. O fato de isso continuar ocorrendo hoje é um termômetro eclesial.
Clericalismo, abuso de poder...
Sim. Dom Ali falou sobre isso como uma questão de ambientes tóxicos. Trata-se de saber que há dinâmicas entre nós que estão nos ferindo e prejudicando a Igreja, algumas das quais não são de natureza sexual. As pessoas estão abandonando a Igreja, e estamos fechando os olhos diante disso.
Continuando a acreditar que elas não estão abandonando a Igreja por causa dos fracassos dela, mas sim por causa da secularização?
Exatamente. O que ficou evidente hoje em dia é que não existe uma boa disposição eclesial para responder à crise. Se esta é realmente a maior crise da Igreja, eu me pergunto como é possível que, sabendo o que a Igreja está sofrendo, essa situação ainda permaneça desconhecida e sem enfrentamento em algumas partes do mundo?
Às vezes eu me pergunto se realmente entendemos a seriedade do problema e eu acredito que não. Não quero parecer insensível, mas parece quando uma pessoa descobre que está com câncer em estágio inicial: às vezes, ela prefere não falar sobre isso, negando o diagnóstico, em vez de aceitar a realidade. Em algumas realidades, também encontramos uma Igreja nostálgica, que vive no passado sem projeção para o presente. Em qualquer documento nosso, qualquer sínodo ou qualquer aspiração que tivermos, se não virmos o futuro da Igreja que buscamos ou queremos, nada se alcança.
Eclesiologicamente falando: em que Igreja acreditamos e que Igreja queremos deixar para a próxima geração? Se eu fosse leigo e tivesse filhos, do modo como as coisas estão hoje, eu não sei se trabalharia continuamente para que meus filhos fossem católicos amanhã, com uma Igreja que não é capaz de ser transparente sobre essas coisas ou sobre as suas finanças.
Você gostaria que eles acreditassem em Deus, mas não necessariamente como membros da Igreja?
Exatamente. E atualmente vemos jovens dispostos a questionar a Igreja, e isso nos leva à ofensiva. Mas a Igreja que deixamos para eles é uma Igreja que deve ser questionada, porque é difícil aceitar que tenhamos permitido tanta perversão nela.
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Igreja ainda não entendeu a seriedade do problema dos abusos sexuais, afirma especialista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU