11 Novembro 2019
“É preciso um pensamento para fazer os muros caírem, mas, se os muros caem e o pensamento não muda, tudo continua como antes, ou até pior.”
A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 09-11-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O dia 9 de novembro de 2019 marca o 30º aniversário da abertura do muro de Berlim, e os jornais estão repletos disso. O que não é dito é que o Ocidente errou totalmente a leitura daquele evento e perdeu uma oportunidade histórica extraordinária para chamar novamente ao serviço os seus ideais perdidos e dar uma mão para uma nova construção do mundo.
De fato, ao contrário de um início do novo, o Ocidente viu o evento como uma confirmação do velho, como validação e recompensa pela sua conduta passada. “A Guerra Fria acabou, e nós vencemos”, chegou a dizer o ministro das Relações Exteriores italiano De Michelis à Câmara. Havia, nesse julgamento, a última vitória da ideologia do conflito, o último grito da velha dialética não mais entendida como instrumento da razão, mas identificada com a própria realidade, uma realidade na qual a diferença é pensada como antítese, os diferentes são considerados opostos, as polaridades como alternativas, e, por isso, não pode haver quietude, conciliação, mas sim contradição, tensões, alienação e guerra.
Coerentes com essa visão foram as consequências que daí foram tiradas: que a reunificação alemã ocorresse não por integração, mas por anexação, e isso foi um desencantamento para os do Leste; que, uma vez cessada a dissuasão atômica, a guerra fosse retomada, e imediatamente houve a guerra do Golfo; que, com o fim da URSS, o capitalismo não precisasse mais ser mitigado com welfare e afins para poder sustentar o confronto com o socialismo; que agora, sem concorrentes, o evangelho neoliberal do mercado pudesse alcançar até os extremos confins da Terra e se tornar a sua Constituição material e, pouco a pouco, também formal, e que a globalização selvagem fosse o seu regime, tendo as mercadorias e o dinheiro como soberanos, e a grande parte dos seres humanos como excedentes, como resíduos e como desperdícios.
O que não se quis ver foi que a abertura ou a queda e remoção do muro foi um grande evento político. Certamente, nele desembocava a crise do comunismo, mas isso foi o efeito de uma decisão política tomada por Gorbachev contra a relutância dos líderes alemães do Leste. Acima de tudo, porém, era o fruto de um novo pensamento político, o primeiro verdadeiro, novo pensamento político que se assomava à história após a grande estação constituinte que havia produzido a Carta da ONU, as Convenções sobre os direitos e as Constituições do pós-guerra.
Não importa que se chamasse glasnost ou perestroika; era o pensamento da unidade humana, o pensamento da futilidade de continuar acumulando armas nucleares para guerras que não podiam ser vencidas e que, portanto, não podiam ser combatidas; era um pensamento para o mundo, um mundo recomposto, para além da dialética senhor-servo, amigo-inimigo que tinha dominado a filosofia e a história até então.
No dia 9 de novembro de 1989, quando o muro de Berlim “caiu”, havia passado um ano desde o discurso de Gorbachev na ONU, que convidara todos a mudar as coisas, a desmantelar as armas, a perdoar as dívidas ao Terceiro Mundo, a proteger o ambiente, a relançar a ONU, a criar um mundo solidário e interdependente, unido e diverso, em um sistema de relações não sectárias. E, para convencê-los de que estava falando sério, havia anunciado que começaria por si mesmo, a partir da URSS, a reduzir as armas, a remover meio milhão de soldados, dez mil tanques, oito mil armamentos e 800 aviões de caça da Europa, a conceder uma moratória de 100 anos para os juros sobre a dívida aos países pobres ou a cancelá-los totalmente, a cessar fogo no Afeganistão, a instaurar um Estado de direito, a restabelecer o primado dos direitos humanos.
E havia se passado três anos desde aquele 27 de novembro de 1986, em que, em Nova Délhi, Gorbachev e Rajiv Gandhi, em nome de um bilhão de seres humanos e um quinto da humanidade, haviam lançado um apelo a uma reversão total da política de dominação e de guerra, e haviam proposto construir “um mundo livre de armas nucleares e não violento”, em que a vida humana fosse considerada o valor supremo, os povos fossem respeitados, “Leste e Oeste, Norte e Sul, independentemente dos sistemas sociais, das ideologias, das religiões e das raças”, fossem unidos na fidelidade ao desarmamento e ao desenvolvimento; e a catástrofe ecológica fosse esconjurada.
Mas o Ocidente ignorou ou não quis acreditar nessa revolução de pensamento e de comportamento, o sistema de guerra não se deixou tocar, e nem mesmo a abertura do Muro acendeu a centelha de uma reavaliação, de uma autocrítica. A reação foi a sugerida pelos reflexos condicionados e pelos estereótipos de sempre, a partir da ideia de que o modo de estar no mundo é o dos vencedores.
Por uma singular coincidência, um dia antes da queda do Muro, 8 de novembro, nós estávamos em Washington, no Pentágono e no Congresso, com uma delegação da Comissão de Defesa da Câmara [da Itália] em viagem aos Estados Unidos para uma missão de reconhecimento. Entre outras coisas, discutíamos a transferência da Espanha para a Itália, de Torrejón para Crotone, de uma base e de uma frota norte-americana de aviões F16, algo que não agradou em nada aos habitantes da Calábria.
Os interlocutores do Pentágono e da Câmara, apesar de expressarem esperança na dissuasão, mostraram-se totalmente inconscientes e céticos sobre a real mudança da política soviética, submergiram-nos com dados e tabelas sobre a contínua ameaça militar russa, disseram-nos que não se sabia como isso iria acabar. Não suspeitavam do que aconteceria no dia seguinte e defendiam que, no entanto, os Estados Unidos e a OTAN deviam persistir no fortalecimento da sua força militar.
Nos dias posteriores, quando o Muro caiu, fomos a Omaha, no Nebraska, no Comando Aéreo Estratégico, titular do poder nuclear dos Estados Unidos, que tinha como lema “a guerra é o nosso trabalho, a paz é o nosso produto”, e, depois, ao Comando do NORAD, que é o da defesa espacial, escavado dentro das montanhas Cheyenne, no Colorado. Em ambos os lugares, os discursos e o desdém foram os mesmos. Também fomos à base de Nellis, em Nevada, a partir da qual, através de um telão, foi possível acompanhar a manobra militar interaliada “Red Flag”, que estava sendo realizada naqueles dias.
Também pudemos falar com os aviões em voo. Havia um que voava sempre, nunca pousava, porque tinha a bordo um senhor, um general que, longe da terra, circulando sobre os Estados Unidos, tinha que garantir que, em caso de um ataque nuclear que destruísse os comandos dos mísseis em solo, sempre houvesse alguém lá em cima que pudesse lançar a retaliação atômica e provocar o Armagedom. Conectados com ele, lhe dissemos: “General, desça que a guerra acabou”, e ele respondeu que não, não se podia ter certeza disso, era preciso ficar em pé de guerra.
Descobrimos também uma boa dose de religiosidade naquela fé nas armas: nas três academias militares que visitamos no fim, do Exército, da Aeronáutica e da Marinha, a primeira coisa que nos foi mostrada foi a respectiva catedral: uma com o maior órgão do mundo, a outro com a cruz feita de pás de hélice, a outra com um Jesus quebra-mar caminhando sobre as águas e a urna do herói levada ao céu sobre o dorso de golfinhos.
A moral é que é preciso um pensamento para fazer os muros caírem, mas, se os muros caem e o pensamento não muda, tudo continua como antes, ou até pior. Aquele 9 de novembro em Berlim foi um momento único, irrepetível, um tempo favorável, um “kairós”, como os gregos o chamavam, que corre fugindo com as asas nos pés e, se não for pego na passagem, não volta mais.
Mas agora é preciso fazer um milagre: devemos fazer com que aquele kairós da queda dos Muros passe novamente e não podemos mais deixá-lo fugir.
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O muro e o pensamento. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU