02 Novembro 2017
"Como observa Eric Hobsbawm, o historiador do "século breve", não apenas as pessoas comuns, mas também os economistas e os políticos têm memória curta; e por isso é necessária a presença de figuras - como os historiadores - "cuja tarefa é lembrar aos seus concidadãos o que eles desejam esquecer".
A ele faz eco outro historiador marxista, o italiano Giuseppe Boffa, quando, sob o título de L’ultima illusione (1999), descreve o caráter enganoso da vitória do capitalismo sobre o comunismo e ressalta que, agora, para enfrentar a dimensão mundial dos problemas, "o ônus fica todo no lado vencedor". Portanto, em caso de insucesso, "não esperemos nada de bom e dessa vez não teremos ninguém em quem jogar a culpa".
Surge aqui um convite para refletir sobre conceitos desse tipo."
A opinião é do ex-senador italiano Domenico Rosati, que também foi presidente da Associação Cristã dos Trabalhadores Italianos (Acli), em artigo publicado por Settimana News, 25-10-2017. A tradução de Luisa Rabolini.
Fazia muito frio na Praça Vermelha naquele dia - 7 de novembro de 1987 - enquanto, na tribuna de honra ao lado do Mausoléu de Lênin, perto dos líderes dos partidos comunistas de todo o mundo reunidos em torno do secretário do Partido Comunista da União Soviética, Mikhail Gorbachev, assistíamos ao grandioso desfile o 70º aniversário da revolução de outubro.
Para os incautos visitantes ocidentais (este que escreve descobriu ser o único convidado de viés católico devido a alguma notoriedade adquirida como presidente da ACLI na disputa sobre a instalação dos mísseis europeus no leste e no oeste) aquele gelo teria efeitos fisicamente letais se não houvesse a intervenção de dois remédios: o conselho valioso de vestir o pijama sob seu terno e a providencial presença de um vendedor de vodka.
Depois, o espetáculo reativou a reflexão. Diante de nós desfilava a história do bolchevismo com os seus triunfos e suas misérias. Do núcleo inicial de seguidores, no início do século XX, havia nascido em poucos anos um partido que - como escreve o biógrafo de Lênin, Abdelaram Allan - foi "capaz de tomar o poder na Rússia", enquanto "pouco mais do que outra geração foi suficiente para que o comunismo se espalhasse sobre um terço da humanidade, e aspirasse ao domínio do mundo".
As imagens daqueles dias voltam à minha memória, agora que o evento então comemorado estaria cumprindo o seu 100º (virtual) aniversário; virtual, porque aquela de 1987 realmente foi a última comemoração solene da revolução soviética.
Mas ninguém, então, poderia imaginar que ao império ideológico-militar da União Soviética teriam sobrado pouco mais de dois anos de agonia.
Aqueles dias em Moscou, calafrios, coreografia e fogos de artifício à parte, tinham de resto uma atração especial. Estava em curso há alguns anos a tentativa de Gorbachev de implementar um projeto inovador no sistema da União Soviética, conhecido como "reforma radical" e baseado em duas etapas fundamentais.
A primeira foi a chamada perestroika (literalmente "reconstrução"), que incluía uma série de intervenções destinadas a reorganizar a economia e a estrutura política e social do país.
A segunda era a glasnost (que poderíamos traduzir com "transparência"), que indicava uma abertura sem precedentes no âmbito da liberdade de expressão e de comunicação; a descontinuidade mais relevante em relação à ordem estabelecida.
Alguns sinais de movimento podiam ser percebidos na difusão de uma imprensa "livre" que às vezes reforçava e outras contradizia as declarações oficiais (o Pravda e o Isvestia) com debates interessantes sobre questões até então proibidas, como as religiosas.
Que não fosse apenas propaganda, eu já o havia percebido em uma viagem anterior em 1986, após o desastre de Chernobyl. Ao chegar a Moscou, a versão oficial era que o episódio tratava-se de um exagero da propaganda ocidental. Mas, alguns dias depois, na abertura do noticiário da noite, Vremja, apareceu o rosto de Gorbachev para inverter a versão: tinha sido uma verdadeira catástrofe.
Entre as pessoas com quem mantive contatos, no entanto, havia alguns sinais de desconfiança e ceticismo. Eles diziam: "Mesmo no tempo de Kruschev, aqueles da desestalinização da década de 1950, haviam prometido uma mudança de regime, mas depois tudo tinha voltado como era antes".
O ambiente mais confiante e comprometido na nova fase era o do Comitê de Segurança e Cooperação na Europa, encarregado de tratar da realização dos objetivos do Ato Final de Helsinque, justamente relativos à segurança, à cooperação e aos direitos humanos na área continental.
Ao contrário do que aconteceu no Ocidente, onde os conteúdos daquele texto, assinado em 1975 pelos mais altos representantes do Leste, do Oeste e da Santa Sé, logo foram rebaixados ao nível de qualquer documento diplomático, na União Soviética escolheu-se demonstrar que os compromissos eram levados a sério. Incluindo aqueles relativos aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, assunto não exatamente confortável às doutrinas e à prática do regime.
Assim, o documento de Helsinque tinha sido amplamente difundido e tinha suscitado o interesse e a expectativa entre as pessoas, com uma interpelação aos grupos dirigentes: se vocês subscreveram essas promessas, agora precisam mantê-las. A perestroika também se originou desse evento.
No entanto, foi a presença em Moscou dos líderes comunistas que despertou o interesse político deste observador: como Gorbachev iria explicar os seus projetos a tais interlocutores e como eles reagiriam?
Aqui busco recurso em uma segunda "imagem congelada" das celebrações. O cenário é o grandioso auditório do palácio dos congressos, enorme mancha de branco no escuro contorno do Kremlin.
Dentro da sala, a cor dominante era o vermelho e a trilha sonora, o envolvente hino soviético (o mesmo que ainda hoje se canta na Rússia, mas com palavras alteradas). E depois o palco, com o desfile dos líderes.
Devo dizer que já naquele dia tive a sensação de estar diante de um desfile de fantasmas: o búlgaro Ziwcov, o romeno Ceaucescu, o polonês Gerek, o checoslovaco Jacker (se bem me lembro), o alemão-oriental Oeneker, o húngaro Kádár, este último com um mínimo de cor, só inferior ao de um pujante Fidel Castro.
No meio desse desfile de sombras, a figura de Gorbachev mostrava um aspecto quase exuberante. Foi espontâneo pensar ao velho que se põe enquanto o novo surge.
Os discursos não desmentiram a impressão. Quase todos pareciam estar ancorados aos esquemas do marxismo-leninismo, embora a maioria concordasse com a desatualização de uma reedição das velhas fórmulas de organização internacional, como o Comintern ou Cominform. O "partido guia" não era nem desejado nem proposto. Cada um descrevia o estado da revolução em seu próprio país e todos reconfirmavam a própria imorredoura fidelidade aos ideais do "grande outubro".
Por outro lado, Gorbachev não deixou espaço para a retórica. Ele primeiro fez uma operação de historicização da Revolução de outubro, apresentando-a como um fator para a libertação da sociedade russa dos atrasos civis e sociais do regime czarista. E depois expôs uma visão - poderíamos dizer - evolutiva do marxismo como doutrina em condições de interagir nas diferentes situações históricas sem ficar dogmaticamente ancorada às fórmulas e às instituições superadas pelos eventos.
Os especialistas do aplausometro soviético disseram-me que os aplausos gravados não foram realmente os mais intensos. E pareceu-me a comprovação dos trabalhos em curso, ou seja, uma tentativa problemática que parecia promissora e que, em vez disso, acabaria conhecendo um fim prematuro.
Até aqui as lembranças. Agora, as questões.
Que sentido tem relembrar hoje a Revolução de Outubro?
Possível resposta. Isso faz sentido porque os efeitos da Revolução de Outubro persistiram e influíram em extensão e profundidade ao longo de quase todo o século XX - além dos próprios limites do "breve século" fixado pela queda do Muro de Berlim - e determinaram, em todos os continentes, mudanças significativas dos sistemas sociais e políticos.
Independentemente do juízo ético e político sobre as soluções adotadas e sobre os métodos empregados, não seria possível explicar, de qualquer forma, o que aconteceu na China ou na África sem considerar a incidência das formações de inspiração marxista.
Do mesmo modo, deve ser reconhecido que, mesmo em áreas onde a proposta comunista não se enraizou ou foi rejeitada, introduziu um elemento dialético nos sistemas em que tentou afirmar-se. Basta pensar nas reivindicações ligadas à ideia de estado social, como realização de uma aspiração da justiça de outro modo negada.
É difícil imaginar o desenvolvimento do reformismo social no Ocidente sem o impulso do movimento operário e, nele, da componente de matriz marxista.
"E nós faremos como a Rússia" ...
Outra questão: como explicar a formação e a persistência do "mito soviético", apesar de suas abominações e dos crimes daquela experiência?
"E nós faremos como a Rússia / quem não trabalha não vai comer": eram as palavras de uma canção bem popular entre os trabalhadores ainda na década de 1950. Eram os tempos da maior atratividade da experiência soviética, veiculada, além do orgulho pelas imponentes realizações do regime através dos planos quinquenais, também pelo reflexo da guerra vitoriosa contra o nazismo, sob a liderança nunca muito louvada de um líder como Joseph Stalin. Do qual, inclusive no Ocidente, eram conhecidos os crimes antes mesmo que Kruschev os denunciasse; mas havia no meio do povo a persuasão de que os crimes atribuídos ao ditador ou não eram verdadeiros, ou eram ‘justificados’ pelo estado de necessidade em que se encontrava a URSS. E, além disso, no lado italiano, tínhamos a garantia de que algo similar jamais aconteceria.
Aqui devemos mencionar a descrição das peculiaridades do comunismo italiano: da sugestão gramsciana da hegemonia em lugar da ditadura do proletariado à "duplicidade" de Togliatti, entre a fidelidade a Moscou e a experimentação de seu "novo partido"; da doutrina de Berlinguer sobre a irreversibilidade da escolha democrática contextual à proclamação da autonomia de Moscou.
Da mesma forma, deveria ser estudada a fundo a contribuição que a evolução da democracia italiana (e de suas múltiplas contradições) propiciou ao confronto/diálogo entre comunistas e católicos, tanto na construção constituinte, quanto nas realidades do mundo do trabalho e na esfera cultural.
Mas, acima de tudo, os católicos mais sensíveis à questão social deveriam questionar-se sobre um ponto crucial: por que, desvanecido o fascínio do modelo comunista, nunca foram (fomos) capazes de propor aos "companheiros desiludidos" uma alternativa plausível em condições de responder, com uma estratégia de reformas, àquelas mesmas instâncias de libertação e justiça?
Por fim, uma pergunta indiscreta: o que resta hoje do "socialismo real" na pátria do socialismo? É justo questionar-se sobre isso, porque na história nunca se destrói totalmente o que é criado.
Mesmo que isso dependa dos chamados "espíritos nacionais", como era afirmado em 1800, ou de outros fatores não identificados, não parece superficial questionar quanto do absolutismo tenha sido transferido ao terror jacobino na França, quanto do regime de polícia tenha transitado do czarismo ao socialismo real e, por fim, quanto deste último - instituições e costumes – tenha impregnado a engrenagem do sistema que lhe sucedeu e ao qual estão confiados hoje os destinos da "mãe Rússia".
Como observa Eric Hobsbawm, o historiador do "século breve", não apenas as pessoas comuns, mas também os economistas e os políticos têm memória curta; e por isso é necessária a presença de figuras - como os historiadores - "cuja tarefa é lembrar aos seus concidadãos o que eles desejam esquecer".
A ele faz eco outro historiador marxista, o italiano Giuseppe Boffa, quando, sob o título de L’ultima illusione (1999), descreve o caráter enganoso da vitória do capitalismo sobre o comunismo e ressalta que, agora, para enfrentar a dimensão mundial dos problemas, "o ônus fica todo no lado vencedor". Portanto, em caso de insucesso, "não esperemos nada de bom e dessa vez não teremos ninguém em quem jogar a culpa".
Surge aqui um convite para refletir sobre conceitos desse tipo.
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Os 100 anos (virtuais) do ‘grande outubro’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU