Por: André | 29 Setembro 2015
Os muros para deter os migrantes, mais cedo ou mais tarde, vão cair, todos vão cair, e não são a solução, porque só fazem com que aumente o ódio. A afirmação é do Papa Francisco e feita na conversa com os jornalistas durante o voo de volta pela American Airlines que o levou da Filadélfia para Roma. Bergoglio falou sobre os abusos de menores cometidos por religiosos e disse compreender as famílias que não são capazes de perdoar; falou da comunhão aos divorciados recasados e de sua recente reforma sobre as nulidades matrimoniais, explicando que não se trata de um “divórcio católico”. Também fechou as portas para o sacerdócio feminino, e insistiu em que gostaria de visitar a China, um povo de que “gosto muito”.
A entrevista é de Andrés Beltramo e publicada por Vatican Insider, 28-09-2015. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Esta foi sua primeira visita aos Estados Unidos: o que lhe surpreendeu e o que foi diferente do esperado? Quais são os desafios que a Igreja dos Estados Unidos enfrenta?
Sim, foi a primeira visita, nunca estive aqui. Surpreenderam-me os olhares, o calor humano, um povo tão amável, uma coisa bela e também diferente. Em Washington (tive) uma acolhida calorosa, mas um pouco mais formal, em Nova York um pouco extralimitado e na Filadélfia, muito expressivo. Três modalidades diferentes, mas a mesma acolhida. Fiquei muito impressionado com a acolhida nas cerimônias religiosas e também com a piedade, a religiosidade. Era possível ver as pessoas rezarem e isto me impressionou muito, muito, era bonito.
Houve alguma provocação, algum fato indesejável?
Não, graças a Deus, não. Tudo transcorreu bem, não houve nenhuma provocação, todos foram educados. Nenhum insulto, não, nenhuma coisa feia. Não, não. Temos que continuar trabalhando com este povo fiel e como trabalharam até agora, acompanhando o povo no crescimento de suas coisas boas e em suas dificuldades, acompanhando-os na alegria, nas horas ruins, nas dificuldades, quando não há trabalho, existem as doenças. O desafio da Igreja, agora compreendo bem, é ser como sempre foi: próxima das pessoas, próxima ao povo dos Estados Unidos, com proximidade. Não uma Igreja separada do povo, mas próxima. Este é um desafio que a Igreja dos Estados Unidos entendeu bem.
Filadélfia passou por momentos muitos difíceis por causa dos abusos sexuais. Muitos se surpreenderam com o fato de que no discurso aos bispos em Washington você tenha oferecido consolação à Igreja. Por que sentiu a necessidade de oferecer compaixão aos bispos?
Em Washington, falei a todos os bispos dos Estados Unidos, que vieram de todas as partes. Senti a necessidade de expressar compaixão porque lhes aconteceu uma coisa terrível. E muitos sofreram porque não sabiam, e quando os fatos vieram à tona sofreram muito: eles são homens de Igreja, de oração, verdadeiros pastores. Usando uma passagem da Bíblia, do Apocalipse, eu disse: “vocês estão vindo da grande tribulação”. E foi o que aconteceu, foi uma grande tribulação, mas não apenas pelo sofrimento afetivo. Foi o que eu disse hoje ao grupo de pessoas vítimas de abusos, foi, não digo uma apostasia, mas quase um sacrilégio.
Os abusos, e sabemos disso, estão por todas as partes: na família, no bairro, nas escolas, nos ginásios... Mas quando um padre comete um abuso é gravíssimo, porque a vocação do padre é fazer crescer esse menino, essa menina, no amor de Deus, na maturidade afetiva ou no bem. E em vez de fazer isso, induziu-o ao mal, e por isso é quase um sacrilégio. Ele traiu a vocação, o chamado do Senhor. Por isso, na Igreja, neste momento, também não se deve encobrir esses casos. Também são culpados aqueles que acobertaram essas coisas, inclusive alguns bispos que acobertaram isto. É uma coisa terrível e as palavras de consolo não são dizer: não se preocupem, não foi nada. Não, não, não. Foi uma coisa terrível. Imagino que muitos de vocês choraram. E hoje falei duro.
Você falou muito do perdão, que Deus nos perdoa. Mas existem muitos padres que não pediram perdão às vítimas pelos pecados que cometeram. Por outro lado, você entende as famílias que não querem ou não conseguem perdoar?
Se uma pessoa agiu mal, está consciente do que fez e não pede perdão, eu peço a Deus que o tenha em conta. Eu a perdoo, mas ele não recebe o perdão. Está fechado ao perdão. Uma coisa é dar o perdão. Todos somos obrigados a perdoar, porque todos fomos perdoados, mas outra coisa é receber o perdão. E se esse padre está fechado ao perdão não o recebe porque ele fechou a porta com a chave do lado de dentro e resta rezar para que o Senhor lhe abra essa porta. Ou seja, para dar o perdão é preciso estar disposto, mas nem todos podem recebê-lo, sabem recebê-lo ou não estão dispostos a recebê-lo. É duro o que estou dizendo e assim se explica que haja gente que termina sua vida dura, mal, sem receber a carícia de Deus. Qual é a segunda pergunta?
Você entende as vítimas e suas famílias que não conseguiram perdoar ou não querem perdoar?
Sim, eu as compreendo, rezo por elas e não as julgo. Uma vez, em uma destas reuniões, me encontrei com várias pessoas e uma mulher me disse: “quando minha mãe ficou sabendo que tinham abusado de mim, blasfemou contra Deus, perdeu a fé e morreu ateia”. Eu compreendo essa mulher. Eu a compreendo. E Deus, que é melhor do que eu, a compreende. E estou certo de que essa mulher Deus a recebeu, porque o que foi destroçado e quebrado foi sua própria carne, a carne da sua filha. Eu a compreendo. Não julgo aqueles que não conseguem perdoar. Rezo e peço a Deus porque Deus é um campeão em buscar caminhos de solução.
Padre, sobretudo obrigado por este momento. Ouvimos muita coisa sobre o processo de paz na Colômbia, entre as FARC e o governo. Agora há um acordo histórico. Você se sente um pouco parte deste acordo? Você disse que iria à Colômbia quando houvesse um acordo. Agora, muitos colombianos estão esperando sua visita. E outra pequenininha: o que está pensando agora, no final desta visita tão longa, quando o avião já está retornando a Roma?
A primeira. Quando tive a notícia de que em março seria assinado o acordo disse ao Senhor: “Senhor, faze que cheguemos em março, que se chegue com esta bela intenção, porque faltam pequenas coisas, mas a vontade existe, de ambas as partes. Existe. Também no pequeno grupo, portanto, estão de acordo. Temos que chegar em março ao acordo definitivo. Resta o ponto da justiça internacional. Eu fiquei muito contente e me senti parte no sentido de que eu sempre quis isto. Falei três vezes com o presidente Santos sobre este problema, e a Santa Sé está muito aberta a ajudar como pode.
Outra coisa, isto é um pouco pessoal, mas deve ser sincero. Quando o avião parte depois de uma visita, vem-me à mente o olhar de tantas pessoas, vem-me a vontade de rezar por elas, dizer ao Senhor: “Eu vim aqui para fazer algo, para fazer o bem. Talvez, fiz mal, perdoa-me, mas protege toda essa gente que me viu, que pensou nas coisas que eu falei, que me escutou, inclusive aqueles que me criticaram e em relação a todos sinto isso. Não sei, é o que me ocorre, é um pouco pessoal. Isto não se pode dizer nos jornais”.
Santo Padre, queria fazer uma pergunta sobre as relações da Santa Sé com a China e sobre a situação neste país, que é bastante difícil também para a Igreja católica. O que pensa sobre isso?
A China é um grande país que traz ao mundo uma grande cultura e tantas coisas boas. Eu disse certa vez, no avião, quando estávamos sobrevoando, retornando da Coreia do Sul, que gostaria muito de visitar a China. Eu amo o povo chinês, quero-o muito. Eu desejo que existam as possibilidades de ter boas relações, boas relações. Temos contatos, falamos e vamos em frente. Para mim, ter um grande país amigo como a China, que tem tanta cultura e tanta possibilidade de fazer o bem, seria uma alegria.
Queria perguntá-lo sobre a crise migratória. Muitos países estão construindo as novas cercas de arame farpado. O que tem a dizer sobre isso?
Você usou uma palavra: crise. Converte-se em um estado de crise depois de um longo processo. Isto é o resultado de um processo de anos, porque as guerras das quais aquela gente foge são guerras de anos. A fome é a fome de anos. Quando eu penso na África, isto é um pouco simples, eh, mas digo-o como exemplo. Penso na África, o continente explorado e agora vêm as guerras rivais, mas têm por trás interesses econômicos. Eu penso que antes de explorar um continente, um país, uma guerra, se poderiam fazer investimentos para que essa gente tivesse trabalho, e assim evitaria esta crise. É verdade, é uma crise de refugiados, como eu disse no Congresso, nunca antes vista desde a Segunda Guerra Mundial.
E você me pergunta sobre as cercas. Você sabe como acabam os muros. Todos os muros caem. Hoje, amanhã, ou daqui a cem anos, mas todos caem. Não são uma solução. O muro não é uma solução. Neste momento, a Europa está em dificuldades, é verdade. Temos de ser inteligentes, porque chega esta grande onda migratória e não é fácil encontrar soluções. Mas só e sempre através do diálogo é que os países da Europa se devem entender. Os muros nunca são a solução. Pelo contrário, as pontes, sim. Sempre. Sempre. É isso que eu penso sobre os muros e as cercas. Não são uma solução. O problema permanece e permanece com mais ódio.
Santo Padre, você não pode obviamente antecipar o debate dos padres sinodais. Sabemos perfeitamente, mas queríamos saber se em seu coração de pastor realmente quer uma solução para a questão do divórcio e dos divorciados recasados. Queremos saber se seu motu proprio sobre a regulação da nulidade encerrou este debate. O que responde àqueles que temem que esta reforma levará à criação de fato do chamado “divórcio católico”?
Começo pela última. A reforma dos processos encerrou a porta para a via administrativa, que era a via pela qual podia entrar o divórcio. Posso dizer que estão errados aqueles que pensam que é o “divórcio católico”, porque este último documento (de reforma dos processos) fechou as portas ao divórcio que podia entrar pela via administrativa. Sempre existe a via judicial. Depois, a maioria dos padres sinodais tinha pedido essa reforma nas reuniões do ano passado. Era preciso reduzir os processos. Havia processos que duravam 10, 15 anos. Uma sentença, e depois outra sentença, e uma apelação e outra apelação e não se terminava nunca.
A dupla sentença, quando era válida, foi introduzida por Bento XVI, porque na Europa Central, não digo o país, havia alguns abusos, e para acabar com isso ele introduziu a dupla sentença. Mas não é uma coisa essencial para o processo. Os processos mudam e a jurisprudência muda e sempre é aperfeiçoada. Este documento, este motu proprio, facilita os processos no tempo, mas não é um divórcio, porque o matrimônio é indissolúvel, pois é sacramento e isto a Igreja não pode mudar. É doutrina, é um sacramento indissolúvel.
Santo Padre, você visitou as Irmãzinhas dos Pobres, e nos disseram que você queria mostrar seu apoio para elas e seu apoio nos tribunais. E, Santo Padre, você também apóia as pessoas, inclusive funcionários do governo, que, por objeção de consciência, não levariam adiante, por exemplo, uma legislação a favor do casamento homossexual? Você apoiaria também este tipo de reivindicação no marco da liberdade religiosa?
Eu não me lembro de todos os casos específicos de objeção de consciência. Mas posso dizer que a objeção de consciência é um direito que entra em cada direito humano. É um direito. E se uma pessoa não permite fazer objeção de consciência, nega um direito. Em cada estrutura judicial deve entrar a objeção de consciência, porque é um direito, um direito humano. Caso contrário, terminamos na seleção dos direitos: este é um direito de qualidade, esse é um direito de não qualidade, este... É um direito humano, eh.
Sempre me emocionei quando jovem li muitas vezes o poema épico La Chanson de Roland, no qual há uma cena em todos os muçulmanos se encontram em uma fila e na frente deles havia a pia batismal ou a espada. E tinham que escolher. A objeção de consciência estava proibida. Não, é um direito e se queremos ter paz, temos que respeitar todos os direitos.
Incluindo também funcionários de governo...
É um direito humano! Se o funcionário de governo é uma pessoa humana, tem esse direito. É um direito humano.
Você, na ONU, utilizou palavras muito fortes para denunciar o silêncio do mundo diante da perseguição dos cristãos que são privados de suas casas, de seus bens, escravizados e, além disso, brutalmente assassinados. Agora o presidente Hollande anunciou o início de bombardeios da França contra as bases do Estado Islâmico, na Síria. O que pensa desta ação militar? Por outro lado, também uma curiosidade: o prefeito de Roma, Ignazio Marino, o prefeito do Jubileu, declarou que veio à missa do Encontro Mundial de Famílias, porque você o convidou. Como foram as coisas?
Começo pela segunda: eu não convidei o prefeito Marino, claro? Não o fiz e perguntei aos meus colaboradores e nem mesmo eles o convidaram. Ele se diz católico e veio espontaneamente. É claro.
A outra sobre o bombardeio. Na verdade, tive a notícia antes de ontem e não bem a par da situação. Ouvi dizer que a Rússia tinha uma posição; para os Estados Unidos ainda não estava claro. A verdade é que não sei te dizer, não entendi bem as coisas... Mas quando ouço a palavra bombardeio, morte, sangue, repito o que disse no Congresso e nas Nações Unidas: é preciso evitar estas coisas, mas não sei. Não julgo a situação política porque não a conheço.
Santo Padre, pela primeira vez visitou os Estados Unidos, falou no Congresso, nas Nações Unidas, levou autênticos banhos de multidões. Sente-se mais poderoso? E queria perguntar também porque o ouvimos destacar o papel das mulheres, das freiras nos Estados Unidos. Veremos alguma vez sacerdotisas na Igreja católica, como pedem grupos nos Estados Unidos e como têm outras Igrejas cristãs?
As freiras nos Estados Unidos fizeram maravilhas. No campo da educação, da saúde... O povo dos Estados Unidos ama as freiras; não sei quanto ama os padres, mas ama as freiras, ama-as muito. São boas, são mulheres estupendas, estupendas. Cada uma segue a sua congregação, suas regras, há diferenças... Mas são magníficas. E por isso eu me senti na obrigação de agradecer por tudo o que fizeram. Uma pessoa importante do governo dos Estados Unidos me disse nestes dias: “O que eu tenho de cultura, devo-o em primeiro lugar às freiras”. As freiras têm escolas em todos os bairros, ricos, pobres, trabalham com os pobres nos hospitais. Esta era a primeira, da terceira me lembro. E a segunda qual era?
Sente-se poderoso depois de ter estado nos Estados Unidos com esta agenda e de ter tido tanto sucesso?
Eu não sei se tive sucesso ou não. Mas eu tenho medo de mim mesmo. Porque me sinto sempre fraco, não sei, no sentido de não ter o poder. O poder também é uma coisa passageira, hoje existe, amanhã não existe. O importante é se com ele tu podes fazer o bem. E Jesus definiu o poder: o verdadeiro poder é servir. Fazer os serviços mais humildes. E eu ainda tenho que avançar neste caminho do serviço, porque sinto que não faço tudo o que devo fazer. Esse é o sentido que eu tenho do poder.
E em terceiro lugar, as mulheres sacerdotes. Não posso fazer isso. O Papa João Paulo II, depois de um longo tempo de reflexão, deixou dito claramente. Não porque as mulheres não têm capacidade! Olha que na Igreja as mulheres são mais importantes que os homens. Porque a Igreja é mulher. A Igreja, não o Igreja. A Igreja é a esposa de Cristo. E Nossa Senhora é mais importante que os papas e os bispos, e que os padres. Há uma coisa que devo reconhecer: nós estamos um pouco atrasados na elaboração da teologia da mulher; devemos avançar nessa teologia. Isso é verdade. Obrigado.
Santo Padre, nos Estados Unidos você virou uma estrela. É bom para a Igreja que o Papa seja uma estrela?
Tu sabes qual era o título que os papas usavam e que se deveria usar? Servo dos servos de Deus. É um pouco diferente de uma estrela. As estrelas são bonitas para serem vistas. Eu gosto de olhar quando o céu está sereno, no verão... Mas o Papa deve ser o servo dos servos de Deus. Sim, nos meios de comunicação usa-se isto, mas não é verdade. Quantas estrelas vimos que depois se apagam e caem. É uma coisa passageira. Ao contrário, ser o servo dos servos de Deus é bom: isso não passa. Não sei, penso assim.
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“Todos os muros vão cair. Hoje, amanhã ou daqui a cem anos, mas todos vão cair. Não são uma solução para a crise migratória”. Entrevista com o Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU