04 Novembro 2019
"Homens 'brancos' e europeus, alegando serem fiéis à lei da religião católica, invadiram uma igreja e um lugar de oração, onde diferentes culturas estavam se entrelaçando para ouvir respeitosamente a Deus e ao Sínodo, e arrancaram uma imagem feminina, símbolo de vida, com traços indígenas, com a intenção de 'purificar' a fé", escreve o Pe. Dário Bossi, Provincial dos Missionários Combonianos no Brasil, membro da Rede de Igrejas e Mineração e Assessor da REPAM-Brasil.
É um objeto de artesanato comum, produzido na Amazônia por artistas locais, compartilhado como um símbolo de vida e fertilidade: uma estátua de madeira representando uma mulher indígena grávida. Estava na Igreja Transpontina, em Roma, junto com vários outros objetos da Amazônia, como canoa, frutos da floresta, redes de pesca, imagens e fotos de outros povos tradicionais, num lugar de oração permanente e espaço de encontro entre os povos e os grupos que acompanharam passo a passo o Sínodo da Amazônia.
De repente, estourou uma polêmica, acusando a Igreja de paganismo e veneração de imagens idólatras. Um vídeo de uma ação "punitiva" e "reparadora", filmando o roubo da estátua da igreja e seu lançamento no rio Tibre, circula agora pelo mundo, comentado em diferentes idiomas.
Os críticos do Sínodo da Amazônia sabem que o problema não está nesta imagem.
Mas a estratégia eficaz da comunicação hoje, quando se quer desmontar, confundir ou enfraquecer processos, é focar em elementos simbólicos que apelam aos sentimentos primários das pessoas: medo, autodefesa, o vínculo visceral com suas certezas...
É uma técnica amplamente usada também em processos políticos recentes, como no Brasil (o caso do "kit gay" – fake news pela qual em campanha eleitoral o atual presidente difamou seu adversário) ou no Brexit (a ameaça dos turcos, conforme a denúncia de Carole Cadwalladr a respeito dos muitos comentários manipulados que circulavam em Facebook à época do referendum britânico).
A estátua indígena não é um fato isolado e folclórico: é uma nova etapa de um plano bem elaborado, ligado a outras estratégias de crítica ao Sínodo e a Papa Francisco, um projeto com investimentos substanciais em dinheiro, conhecimento e uso manipulado das redes sociais.
O Papa Francisco entendeu. Durante as três semanas de trabalho na assembleia sinodal, ele pronunciou-se apenas três vezes. Uma delas foi para pedir perdão, como bispo de Roma, às pessoas que se sentiram ofendidas por esse gesto. Ele não calou sobre o ato, não atacou os detratores do Sínodo, mas deixou claro que tem sido um ataque e uma ofensa contra o direito e a dignidade de muitas pessoas e culturas.
Também enfatizou que não existe idolatria quando se enriquece a oração com símbolos e gestos provenientes de culturas indígenas.
O ocorrido nos permite aprofundar e tentar desmascarar um método de comunicação que continuará atacando, frequentemente com superficialidade e quase sempre em modo fundamentalista, outros processos de conversão e mudança na Igreja e possíveis propostas políticas construtivas.
Também nos faz refletir sobre a relação entre Evangelho, religião e culturas. O Evangelho nasceu no coração de uma cultura específica da Palestina. Adaptou e adquiriu formas e expressões da cultura grega, primeiro, e romana, em seguida. Em torno deste evangelho, uma forma religiosa foi consolidada com características culturais latinas e ocidentais.
Assumiu e integrou elementos, símbolos, gestos e tradições de outras culturas, consideradas "pagãs", como o uso de templos dedicados a santos e decorados com galhos de árvores, incenso, lâmpadas e velas, oferendas ex voto para a cura de uma doença, água benta, festas e ciclos litúrgicos, uso de calendários, procissões, bênçãos dos campos, vestimentas sacerdotais, tonsura, anel usado no casamento, o olhar para o leste, as imagens, canto eclesiástico e o Kyrie Eleison. O cardeal Newman, recentemente canonizado, explicava que todos esses elementos são de origem "pagã" e foram positivamente integrados à nossa religião.
No entanto, em um mundo que nos abre cada vez mais à pluralidade de encontros interculturais, alguns católicos fundamentalistas defendem uma religião "pura" que não se deixa "contaminar" por elementos de outras culturas, demoniza-os e exorciza-os.
Por trás dessa defesa, em um momento de precariedade e incerteza sobre o futuro, está o medo de perder outras seguranças. Apegam-se às suas convicções, sem perceber o sério perigo de asfixia espiritual e racismo de suas posições.
Homens "brancos" e europeus, alegando serem fiéis à lei da religião católica, invadiram uma igreja e um lugar de oração, onde diferentes culturas estavam se entrelaçando para ouvir respeitosamente a Deus e ao Sínodo, e arrancaram uma imagem feminina, símbolo de vida, com traços indígenas, com a intenção de "purificar" a fé.
Há projetos estruturados que utilizam e manipulam esse medo e agressividade, em diferentes ocasiões e em várias partes do mundo, para atacar processos, caminhos religiosos e políticos que tentam promover a integração das diferenças, a redução de exclusão, a justiça e o compromisso contra qualquer disparidade de direitos e contra a acumulação de dinheiro e poder.
Após as estatuetas, certamente, outros objetos simbólicos serão utilizados, agigantando-os, a serviço deste plano. Uma resposta frente a essa reação epidérmica, agressiva, visceral, autorreferencial e cheia de raiva pode ser dada a partir de fatos, testemunhos concretos, experiência de vida, diálogo individual, encontro, reflexão e debate respeitoso, dando voz e autoridade sobretudo aos prediletos de Deus, as vítimas desse sistema que exclui o diferente, o mais frágil e o menos útil.
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As estatuetas e o medo induzido do diferente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU