03 Novembro 2019
Uma discussão sobre as estátuas amazônicas da “Mãe Terra”, exibidas durante um rito de oração nos jardins papais, é um sinal dos tempos deprimente.
Publicamos aqui o editorial do jornal The Guardian, 31-10-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
As raízes da palavra “católico” remontam ao adjetivo grego καθολικός, que é traduzido aproximadamente como “universal”. Quando nos dizem que uma pessoa tem gostos católicos, entendemos que ela tem interesses amplos que não estão restringidos por preconceitos ou dogmas seculares. Mas quão católica a Igreja Católica deveria se permitir ser?
De algum modo sob o radar secular, o papa Francisco se envolveu em outra disputa amarga com os tradicionalistas da sua Igreja. Desta vez, os objetos de disputa foram cinco figuras pequenas e de certa beleza, que representam a fertilidade amazônica e que ficaram conhecidas como estátuas da Pachamama (Mãe Terra).
Retratando uma mulher nua e grávida, ajoelhada em aparente contemplação, elas apareceram em outubro em um rito de oração com o papa nos Jardins Vaticanos, na véspera do Sínodo dos Bispos para a Amazônia.
Isso foi demais para os conservadores católicos militantes, que lamentaram esse uso de “ídolos pagãos”. Réplicas das estátuas exibidas em uma igreja de Roma foram furtadas e jogadas no Tibre.
A Igreja Católica tem uma longa tradição de incorporar e de adaptar diferentes formas de crença e prática do mundo inteiro. Muitas vezes descrita como “inculturação”, na pior das hipóteses essa abordagem pode se tornar uma forma de imperialismo religioso. Na melhor das hipóteses, ela significa uma fidelidade à crença central da Igreja de que Deus está presente em todas as culturas humanas; uma crença de que a vocação última da humanidade é ser “una”, por mais diversa que seja a sua miríade de culturas.
O Vaticano disse que as estátuas eram uma “efígie da maternidade e da sacralidade da vida”. O papa Francisco pediu desculpas em nome de Roma pelos maus tratos às pequenas figuras, que foram recuperadas pela polícia do Tibre.
Mas o cardeal conservador Gerhard Müller defendeu o vandalismo dizendo: “O grande erro foi trazer os ídolos para dentro da igreja, e não levá-los para fora”. Críticos mais selvagens, não pela primeira vez, rotularam o pontífice de “primeiro papa pós-cristão”.
A disputa pode parecer um tanto enigmática. Mas as batalhas que o papa Francisco está sendo forçado a travar na Cidade do Vaticano estão respingando na praça pública. Assim como na crise dos migrantes, na qual o papa defendeu apaixonadamente os direitos dos refugiados, essas batalhas encarnam uma luta pela ética que está impulsionando as profundas guerras culturais do Ocidente.
O papa é rotineiramente denunciado pelos conservadores católicos como um “globalista” e relativista religioso que deseja transformar a Igreja em uma espécie de versão eclesiástica da ONU. Um proeminente crítico estadunidense usou o episódio da Pachamama para denunciar o “multiculturalismo irracional”.
Essa cosmovisão teológica está dando forma a algumas das políticas mais indecentes e xenófobas da Europa, principalmente da Itália. Ela está fornecendo um carimbo espiritual para uma nova política de insularidade. A suposta necessidade de defender a “cultura cristã” se tornou um pretexto para uma cruzada reacionária contra os migrantes, os ciganos, os cidadãos LGBT e outras minorias.
A inculturação, praticada com cuidado, é uma doutrina de humildade. Ela reconhece que nenhuma cultura ou tradição tem um acesso exclusivo à verdade e ao bem, defendendo a tolerância e a abertura à diferença.
Cristãos, agnósticos e ateus de boa vontade devem defender esse tipo de pensamento. As “Pachamamas” não foram mais vistas em público desde que foram pescadas do Tibre. Elas deveriam ser postas novamente em exibição logo.
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“Ídolos pagãos” no Vaticano? Guerras culturais na Igreja devem preocupar a todos. Editorial do jornal The Guardian - Instituto Humanitas Unisinos - IHU