26 Outubro 2019
“É necessário que os pesquisadores, distantes das disputas políticas e das urgências de curto prazo, projetem um sistema coerente de impostos que substitua os velhos esquemas, que estimule o cuidado ambiental e a eficiência econômica, que garanta recursos suficientes para o financiamento do gasto público. Tudo isso é imprescindível tanto para garantir os direitos de cidadania, como para manter a progressividade e a justiça fiscal”, escreve Juan A. Gimeno, da Universidade Nacional de Educação a Distância (UNED) e membro da organização Economistas sem Fronteiras, Espanha, em artigo publicado por Ctxt, 23-10-2019. A tradução é do Cepat.
As mudanças de ciclo histórico envolvem exigências profundas de adaptação e transformação social. A evolução do mundo, nas últimas décadas, questiona quase todos os paradigmas sociais e econômicos dominantes até o momento. Presenciamos mudanças econômicas, geopolíticas e demográficas que tornam obsoletos os velhos modelos explicativos e as políticas inertes que não enfrentam as reais necessidades que essas mudanças exigem de nós.
Além disso, herdamos uma crise com extraordinários custos sociais. A cambaleante recuperação econômica continua sem resolver os altos índices de desigualdade, desemprego e precariedade trabalhista e social e a subsistência de fragilidades estruturais do modelo socioeconômico desenvolvido na última metade do século passado.
Para nós, que acreditamos em justiça fiscal, não há justiça social. É especialmente preocupante ver como essas mudanças estão afetando seriamente a arrecadação e a equidade de nossos sistemas tributários.
A tributação das empresas tende a recair exclusivamente nas médias e pequenas empresas, que precisam de uma sede física. As grandes empresas se transferem sem problemas. Um recente relatório do FMI (não parece ser uma fonte suspeita de esquerdismos demagógicos) conta com um título expressivo por si só: “O aumento dos investimentos fantasmas: sociedades instrumentais minam a arrecadação de impostos em mercados avançados, emergentes e em desenvolvimento”.
Segundo este relatório, 40% (15 trilhões de dólares) dos investimentos estrangeiros diretos no mundo, em 2017, foram “investimentos fantasmas”, ou seja, operações das multinacionais entre suas filiais para evitar o pagamento de impostos. E essa proporção cresceu mais de 33%, em menos de uma década. “Uma multinacional pode usar engenharia financeira para transferir grandes somas de dinheiro em todo o mundo, transferir ativos intangíveis muito lucrativos ou vender serviços digitais de paraísos fiscais sem ter presença física”, destaca o relatório.
O termo internacional cunhado para denominar essas estratégias de planejamento fiscal que transferem os lucros para países com baixa ou nula tributação e que, dessa forma, fogem do pagamento de imposto sobre as sociedades é BEPS (em inglês: Base Erosion and Profit Shifting). É assim que também se denomina o projeto colocado em marcha pela OCDE, a partir de 2013, que busca combater essas práticas de evasão fiscal. Mais de cinco anos depois, temos mais estudos do que realidades.
O problema anterior é agravado no caso das empresas digitais, já popularmente englobadas sob a denominação de GAFAs (Google, Amazon, Facebook, Apple e outras similares). Essas empresas operam praticamente em todo o mundo, mas não precisam do “estabelecimento permanente” que deveria vinculá-las ao pagamento de impostos em cada jurisdição fiscal. Desse modo, suas prestações ficam fora dos sistemas tributários convencionais. Além disso, muitas delas obtêm seus lucros fundamentalmente da informação que extraem de seus próprios usuários, formalmente gratuitos. E isso fica praticamente isento de impostos. A denominada “taxa Google” tenta ser uma primeira aproximação a um tratamento mais adequado dos negócios dessas empresas.
Como vemos, aproximações lentas, desordenadas e pouco eficientes ...
Ao dito anteriormente, é preciso acrescentar a crescente desoneração tributária das rendas financeiras e do capital, com evidentes rotas de evasão, manifesta pressão fiscal inferior e tratamentos de favor dos ativos mais especulativos frente às formas de poupança mais populares. Ineficiência e falta de equidade no mesmo bloco.
Como resultado de tudo isso, o peso da arrecadação dos impostos recai de forma crescente, já quase exclusivamente, sobre o trabalho assalariado, a poupança modesta e certos consumos locais. Ficam fora do pagamento de impostos justamente os capitais, os ingressos e os consumos mais ligados aos níveis altos de renda e riqueza, frente à pressão suportada pelas classes médias e baixas.
Não surpreende que a maioria da população, a que sustenta a arrecadação, não entenda a questão de que a pressão tributária seja baixa. Porque, objetivamente, para as rendas do trabalho e do consumo cotidiano, não é. O problema está nas enormes desigualdades do sistema e nos elevados e desiguais níveis de fraude e evasão.
Estes últimos crescem de tal maneira, graças em boa medida à impunidade dos paraísos fiscais, que o clamor da denúncia já se faz ouvir nas instituições internacionais. Um contundente relatório aprovado na primavera pelo Parlamento Europeu estima que ao menos 200 bilhões de euros por ano escapam da arrecadação pública europeia por causa de diversas lacunas na deficiente regulamentação e tratamentos escandalosos em favor de determinados contribuintes. Para interromper tal processo, entre outras medidas, o documento propõe a criação de uma força policial e uma unidade de inteligência europeias.
Infelizmente, a experiência mostra as enormes dificuldades que acompanham a União Europeia em qualquer tentativa de pôr fim às políticas tolerantes com a sonegação, a fraude e os paraísos fiscais.
Os fenômenos descritos significam que nossos sistemas tributários se mostram cada vez mais regressivos, injustos e insuficientes para financiar serviços públicos essenciais. O futuro parece ser ainda pior: essas fontes que sustentam a arrecadação atual são declinantes. A evolução tecnológica está propiciando uma diminuição crescente do peso da renda do trabalho assalariado e a precarização do emprego. O comércio global de bens e serviços se concentra cada vez mais nessas empresas oligopolistas que, como já vimos, fogem do pagamento de impostos impunemente. O trabalho assalariado e o comércio local vão perdendo peso crescente na economia do século XXI, o que também é sentido nas arrecadações de impostos.
De onde virão os recursos públicos no futuro? É evidente que o sistema tributário herdado do século passado não responde às circunstâncias do presente. Isso repercute em uma crescente deterioração das finanças públicas, tanto em termos de renda como de igualdade, progresso, eficiência e cumprimento de obrigações tributárias.
Tais mudanças e a preocupação, justificadamente crescente, pelas ameaças ambientais tornam necessária uma reflexão acadêmica profunda sobre como deve ser a tributação do século XXI, de maneira que possa dar resposta aos desafios mencionados.
É necessário que os pesquisadores, distantes das disputas políticas e das urgências de curto prazo, projetem um sistema coerente de impostos que substitua os velhos esquemas, que estimule o cuidado ambiental e a eficiência econômica, que garanta recursos suficientes para o financiamento do gasto público. Tudo isso é imprescindível tanto para garantir os direitos de cidadania, como para manter a progressividade e a justiça fiscal.
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Uma tributação para o século XXI - Instituto Humanitas Unisinos - IHU