23 Outubro 2019
“É hora de os países em desenvolvimento se mobilizarem. Aumentar seus recursos fiscais é a única maneira de melhorar o acesso à saúde, educação, igualdade de gênero e luta contra as mudanças climáticas”, escreve José Antonio Ocampo, presidente da Comissão Independente para a Reforma da Taxação Corporativa Internacional (ICRICT, na sigla em inglês), em artigo publicado por El Diario, 21-10-2019. A tradução é do Cepat.
Diante da indignação que existe no mundo pelos baixos ou nulos impostos pagos por algumas das maiores multinacionais do mundo, o Grupo dos 20 designou, há alguns anos, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para traçar alternativas orientadas a pôr fim a esses abusos. Em resposta, esta semana, a OCDE apresentou propostas para um novo sistema tributário internacional que poderia se impor ao mundo nas próximas décadas.
O problema é realmente sério. Nos Estados Unidos, por exemplo, 60 das 500 maiores empresas, incluindo Amazon, Netflix e General Motors, não pagaram impostos em 2018, apesar de um lucro conjunto de 79 bilhões de dólares, porque o sistema atual permite isso e, além disso, de maneira totalmente legal.
Atuam por meio de esquemas complexos, desenvolvidos por exércitos de advogados, mas o princípio é muito simples. Utilizam sua rede de filiais para declarar os lucros nas jurisdições onde possuem as menores taxas de tributação. Dessa forma, alocam prejuízos onde os impostos são relativamente altos, mesmo se esses países sejam aqueles em que a empresa realiza a maioria de suas atividades, para declarar lucros em jurisdições em que os impostos são mais baixos ou até zero, mesmo que a empresa nem sequer tenha clientes ali.
Como resultado, todos os anos, os países em desenvolvimento perdem ao menos 100 bilhões de dólares, escondidos por empresas em paraísos tributários. Em escala mundial, 40% dos lucros estrangeiros das multinacionais são desviados, de acordo com os cálculos do economista Gabriel Zucman.
Com a digitalização acelerada das economias, as quantidades desviadas aumentam constantemente, conforme destacado pelo Fundo Monetário Internacional, pela OCDE e pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD). A ação está na cabeça da OCDE, que no início de 2019 começou a estruturar propostas para que as multinacionais deixem de declarar seus lucros em filiais de sua escolha.
Após décadas de inação, o processo de mudança poderá ser muito rápido. Após a publicação, há alguns dias, de sua primeira proposta nesse campo, a organização fará uma final em 2020. Após essa data, será praticamente impossível influenciar no processo de reforma.
Portanto, é necessário levantar o sinal de alarme para os países em desenvolvimento. Não podem mais dizer que não têm voz no processo. A OCDE ofereceu um lugar na mesa de negociações, mediante a criação de um grupo chamado o “marco inclusivo”. Com 134 membros, esta é a arena onde se decidirá o sistema tributário mundial de amanhã.
Infelizmente, apesar de seu nome, não jogamos em termos de igualdade de condições neste "marco inclusivo". Os países ricos têm mais recursos humanos, políticos e financeiros para fazer com que suas opiniões prevaleçam. Como sede das grandes multinacionais, são também mais sensíveis às suas pressões. Daí a importância de propostas promovidas pelo conjunto de países em desenvolvimento que participam das negociações.
A proposta de reforma da OCDE se baseia em dois “pilares”. O primeiro é estabelecer claramente onde são gerados os lucros das empresas para fins tributários. Para a ICRICT, a comissão internacional de reforma tributária que presido, a opção ideal seria considerar que a multinacional é uma empresa única, cujos lucros totais deveriam ser tributados nos locais em que opera de acordo com critérios objetivos e não manipuláveis, como emprego, vendas, recursos naturais utilizados e usuários digitais.
Nesse campo, no entanto, as propostas da OCDE não são suficientemente ambiciosas ou equitativas, conforme explicamos em nosso último relatório. A parte dos lucros que seria redistribuída internacionalmente seria limitada à parte chamada “residual” dos lucros totais das multinacionais. Pior ainda, esse princípio se aplicaria apenas a multinacionais muito grandes e a alocação desses lucros dependeria apenas do volume de vendas, excluindo emprego e outros fatores que favoreçam os países em desenvolvimento.
O segundo pilar é a introdução de uma taxa efetiva mínima de imposto de renda para as sociedades em nível mundial. Alguns países em desenvolvimento parecem ver isso como um perigo. Temem que ao abandonar a possibilidade de usar incentivos tributários, não possam mais atrair investimentos estrangeiros. A evidência de que esses incentivos atraem investimentos é discutível, de acordo com uma pesquisa do FMI.
Ainda mais importante, se a comunidade internacional concordasse com uma taxa suficientemente elevada (e na ICRICT somos a favor de que seja pelo menos 25%, a taxa média em vigor nos países desenvolvidos), seria dado fim à corrida para baixo que estamos testemunhando, cujos únicos vencedores são as multinacionais. Isso permitiria, por um lado, eliminar a razão de ser dos paraísos tributários, mas também garantiria que todos os Estados tenham acesso a recursos essenciais para o seu desenvolvimento.
Na ausência de um consenso internacional, alguns países optaram por encontrar soluções parciais. É o caso da França, que tributará 3% do faturamento de determinados serviços digitais. Outros, como o México, estão considerando a possibilidade de obrigar plataformas como Uber e Netflix a pagar IVA sobre os serviços prestados em seu território. Embora seja uma boa iniciativa tributar receitas que agora escapam, é impossível compartimentar a economia digital e tomá-la como o único objetivo da reforma, já que cada vez mais empresas estão usando tecnologias digitais como parte de suas atividades comerciais.
É hora de os países em desenvolvimento se mobilizarem. Aumentar seus recursos fiscais é a única maneira de melhorar o acesso à saúde, educação, igualdade de gênero e luta contra as mudanças climáticas. Se os chefes de Estado e os ministros de Fazenda desses países continuarem subestimando a importância desses debates, em breve serão forçados a aceitar um novo sistema tributário internacional que não lhes convém. Os vencedores permanecerão os mesmos e será tarde demais para protestar.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Emergência Tributária Internacional - Instituto Humanitas Unisinos - IHU