A China e a Revolução 4.0. Uma nova hegemonia mundial? Entrevista especial com Bruno Hendler

Foto: Algar

Por: Wagner Fernandes de Azevedo e Patricia Fachin | 24 Outubro 2019

Mudanças internas, como o novo perfil da economia, a transformação do modelo político-militar e o fortalecimento do partido-Estado, explicam as transformações da China nas últimas décadas e sua relação com outros países, como os da América Latina, diz Bruno Hendler em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Segundo ele, a convergência desses três pontos tem propagado pelo mundo afora algumas “ideias-força” acerca do país governado por Xi Jinping, como a defesa do desenvolvimento econômico chinês, a visão de que o crescimento da China irá gerar ganhos mútuos para outros países e irá fortalecer as relações bilaterais, e a ideia de que a China está se desenvolvendo pacificamente. Entretanto, adverte, “é claro que a realidade é muito mais complexa do que isso” e “novas contradições tendem a emergir conforme grupos chineses consolidam laços com o exterior e, não raro, são vistos como a nova roupa do velho imperialismo”.

Entre as contradições, Hendler menciona que “a modernização militar e a postura intransigente de Beijing no Mar do Sul da China chocam-se com o slogan da ascensão pacífica. Os impactos ambientais e sociais dos investimentos chineses, bem como a ‘invasão’ de produtos made in China chocam-se com as noções de ganhos mútuos e de desenvolvimento econômico porque afetam comunidades e indústrias locais. E é precisamente o choque entre a projeção chinesa e as contradições que dela emergem que merece maior atenção”.

Para a América Latina, pontua, a ascensão da China apresenta “oportunidades e riscos” diferentes dependendo do país, mas de modo geral o interesse dos chineses no continente está atrelado ao “acesso a recursos naturais e mercados consumidores”, ao “fortalecimento de relações diplomáticas, especialmente para isolar Taiwan de seus parceiros na América Central, mas também para buscar apoio em organismos internacionais” e “parcerias estratégicas que, aos poucos, vão minando a primazia norte-americana na região”.

Autor da tese “O sistema sinocêntrico revisitado: a sobreposição de temporalidades da ascensão da China no século XXI e sua projeção sobre o Sudeste Asiático”, Bruno Hendler aposta na vitória chinesa na “corrida da Revolução 4.0”, mas a liderança chinesa nesta área, frisa, não transformará a China “em uma hegemonia mundial nos moldes da Inglaterra do século XIX e dos EUA do século XX, porque os norte-americanos continuarão como a maior potência militar do planeta. E é precisamente o embate entre a grande potência da Revolução Industrial 4.0 e a principal superpotência militar que delineará os rumos do sistema internacional daqui em diante”.

Bruno Hendler estará na Unisinos no dia 29-10-2019. Pela manhã, das 9h às 11h, no Campus da Unisinos Porto Alegre, ministrará a conferência "Investimento direto e comércio exterior. A abordagem da China para o Brasil e a América Latina".  À noite, às 19h30min, na Sala Ignacio Ellacuría em Companheiros, no Campus São Leopoldo, ministrará a palestra "A ascensão chinesa e o declínio norte-americano: caos sistêmico ou um possível G-2 sino-americano?". As atividades integram o “2º Ciclo de Estudos a China e o mundo. A (re)configuração geopolítica global”.


Bruno Hendler (Foto: Arquivo Pessoal)

Bruno Hendler é professor adjunto e coordenador do curso de graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. É doutor em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília - UnB e bacharel em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Curitiba - Unicuritiba. É pesquisador membro do grupo de pesquisa em Economia Política dos Sistemas-Mundo da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e do grupo de pesquisa LabChina, vinculado ao PEPI-UFRJ. É coordenador do projeto de Iniciação Científica "Os Complexos Regionais de Segurança no Século XXI: agendas e ameaças"; vinculado ao Núcleo de Pesquisa e Extensão Acadêmica do Unicuritiba.


Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais as motivações do interesse da China no Brasil e na América Latina?

Bruno Hendler - A China tem sido transformada por três grandes mudanças domésticas que afetam a sua interação com o exterior e que, por conseguinte, afetam a relação com o Brasil e com a América Latina. São elas: i) o novo perfil de sua economia; ii) a transformação do paradigma político-militar; e iii) o fortalecimento do partido-Estado.

Conforme mencionei em outra entrevista para o IHU, o perfil da economia chinesa mudou nos últimos dez anos. Atividades ligadas ao setor primário e às manufaturas básicas voltadas para as exportações estão perdendo espaço na composição do PIB em favor de setores de serviços, tecnologia de ponta e infraestrutura/construção civil. O pensamento estratégico também mudou: passou de um viés continental, defensivo e voltado para a proteção do território nacional para um ofensivo, marítimo/aeronaval e voltado para a projeção de poder em águas azuis. Por fim, a mudança constitucional que garantiu um terceiro mandato a Xi Jinping, o maior controle da circulação de informação, a repressão a liberdades individuais e o monopólio do poder de fato do Partido Comunista Chinês são elementos que fortalecem o controle do partido-Estado, ainda que províncias e municípios tenham alguma autonomia de planejamento e execução de políticas públicas e até mesmo de paradiplomacia.

Este preâmbulo é fundamental para entender a atual projeção chinesa no Sul Global, na América Latina e no Brasil, pois tais mudanças estão na base dos vetores de projeção externa da China e atendem a demandas muitas vezes contraditórias de classes e grupos domésticos.

IHU On-Line - Qual o papel estratégico da América Latina para a China?

Bruno Hendler - Tenho argumentado que estes três motores internos da China têm se combinado em estratégias de projeção internacional. Grupos empresariais, militares e políticos têm gestado um círculo virtuoso de política externa que, apesar de tensões internas latentes, fazem da China uma alternativa de desenvolvimento para o Sul Global.

A convergência entre eles tem dado origem a algumas ideias-força que são propagadas mundo afora e abrem caminho para a construção de novos laços com a China. Em geral essas ideias-força defendem o desenvolvimento econômico (por meio do economic statecraft chinês); a dinâmica de ganhos mútuos com instituições e fóruns encabeçados pela China e o fortalecimento de relações bilaterais (jogo de soma positiva); e, por fim, a noção de que a China é um “jogador responsável”, participa de missões humanitárias e, portanto, que sua ascensão é pacífica.

É claro que a realidade é muito mais complexa do que isso. Novas contradições tendem a emergir conforme grupos chineses consolidam laços com o exterior e, não raro, são vistos como a nova roupa do velho imperialismo. A modernização militar e a postura intransigente de Beijing no Mar do Sul da China chocam-se com o slogan da ascensão pacífica. Os impactos ambientais e sociais dos investimentos chineses, bem como a “invasão” de produtos made in China chocam-se com as noções de ganhos mútuos e de desenvolvimento econômico porque afetam comunidades e indústrias locais. E é precisamente o choque entre a projeção chinesa e as contradições que dela emergem que merece maior atenção.

América Latina

Quando se trata de América Latina temos de nos perguntar: que papel os países do continente ocupam dentro desses eixos de projeção externa da China? Quais os interesses econômicos, estratégicos e diplomáticos que os chineses buscam atender quando desembarcam na região? Quem são os chineses que têm aportado por aqui? Ou melhor, quão homogênea é a abordagem chinesa diante da variedade de relações que têm sido construídas nos últimos anos? Cada país da América Latina apresenta diferentes oportunidades (e riscos) para a China, mas em geral trata-se de: i) acesso a recursos naturais e mercados consumidores; ii) fortalecimento de relações diplomáticas, especialmente para isolar Taiwan de seus parceiros na América Central, mas também para buscar apoio em organismos internacionais; e iii) parcerias estratégicas que, aos poucos, vão minando a primazia norte-americana na região.

IHU On-Line - De que ordem são os investimentos externos diretos - IED chineses na América do Sul e no Brasil?

Bruno Hendler - Um dos principais bancos de dados sobre o assunto é o China Global Investment Tracker - CGIT, compilado pelo American Enterprise Institute. Segundo esta fonte, a América do Sul recebeu da China, de 2005 a 2019, US$ 166,31 bilhões de um total de quase US$ 2 trilhões investidos no mundo todo. Logo, a região corresponde a cerca de 8% do total dos investimentos chineses no exterior.

Já o Brasil recebeu US$ 65 bilhões, que correspondem a cerca de um terço da América do Sul e a 3,2% do total investido no mundo. Ao cruzar os dados do CGIT com os da UNCTAD [Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento], temos que os investimentos chineses estiveram na média de 10% do total de IED recebido pelo Brasil de 2009 a 2019, com destaque para 2016, quando a proporção chegou a 27% graças ao valor bruto de US$ 14 bilhões.

IHU On-Line - Qual é o impacto da aposta brasileira em continuar exportando matéria-prima? Essa opção impede o Brasil de avançar em outras áreas, como na chamada Revolução 4.0, ou essas opções não seriam antagônicas?

Bruno Hendler - Isto não é exatamente uma aposta racional e calculada, mas o resultado da disputa entre frações internas da elite econômica do país e os empresários do agronegócio têm prevalecido há muito tempo. Um dos casos mais claros desta “opção” pela agroexportação ocorreu durante o governo Temer, em 2018, quando o antigo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior - MDIC cogitou impor sobretaxas na importação de laminados de aço de China e Rússia. A ação foi vetada pela coalizão de forças dos Ministérios da Agricultura - MA e da Fazenda, que temiam retaliações cruzadas às exportações brasileiras de produtos agrícolas. À época, o então ministro da Agricultura, Blairo Maggi, afirmou: “Vamos votar não, porque meu interesse é o agronegócio. Não adianta falar que não terá ligação (caso haja a sobretaxa) com o agronegócio, porque tudo está interligado” [1].

Se o grupo da agroexportação brasileira fosse capaz de olhar para além dos seus próprios interesses de curto prazo, sim, seria possível o Brasil avançar em outras áreas sem deixar de lado as vantagens competitivas no setor primário. Porém, o país passou a ser governado por uma coalizão de elites retrógradas que têm assumido cargos de comando por meio da truculência, primeiro com o impeachment da presidente Dilma, em 2016, e depois com um processo eleitoral recheado de desinformação em 2018. Esta aliança é composta por:

i) um núcleo do judiciário messiânico-punitivista encarnado na (hoje desmoralizada) Lava Jato e associado às forças armadas;

ii) uma bancada primário-exportadora que contribui para o superávit comercial brasileiro à custa da destruição de reservas ambientais, da violência no campo e do boicote a atividades econômicas endógenas de maior valor agregado;

iii) um bloco fundamentalista anticiência que sabe muito bem como difundir suas ideias através de veículos de comunicação de massa, igrejas locais e redes sociais; e

iv) um grupo de tecnocratas que, em nome de uma suposta eficiência de mercado, tem executado, desde o governo Temer, um programa de ajuste fiscal que tende a sucatear setores básicos do Estado, como a PEC do fim do mundo na saúde e na educação.

O que os desastres de Mariana e Brumadinho e a fumaça que escureceu São Paulo têm em comum? Todos fazem parte de um arco recente de degradação ambiental puxada pela demanda chinesa por commodities, seja de minério de ferro extraído em Minas Gerais ou de alimentos produzidos na fronteira agrícola. Porém, a culpa não é da demanda chinesa per se. Outros casos pelo mundo mostram que a oportunidade de negócios com a China só se torna um risco socioambiental quando as elites locais são incapazes ou não têm interesse de construir uma agenda de barganha e negociação com o gigante asiático.

IHU On-Line - Em sua última entrevista à IHU On-Line, apontou que o governo de Bolsonaro e seus ideólogos, ao atacarem a China, o comunismo, o globalismo e o marxismo cultural, não compreendiam “que o novo sempre vem”. Porém, as relações comerciais com a China seguem em alta - um comércio de mais de 65 bilhões de dólares de janeiro a agosto de 2019. Há alguma possibilidade de arrefecimento nas relações entre os países? De que maneira?

Bruno Hendler - Apesar das bravatas ideológicas contra a China (ou talvez por causa delas), o governo Bolsonaro faz o oposto do que sugeri acima: torna-se ainda mais dependente da exportação de commodities e não constrói uma agenda de barganha e negociação com o gigante asiático. Pelo contrário, a coalizão dos grupos que está no poder garante ainda mais força para o agronegócio e aprofunda a dependência da China.

Como consequência, a China é hoje o principal destino das exportações do Brasil, sendo quase que 90% de produtos primários, com destaque para soja, petróleo e minérios de ferro. É claro que esta tendência vem do começo dos anos 2000, mas em apenas três anos, de 2016 a 2019, a parcela chinesa saltou de 20% para 28%, enquanto que nos seis anos anteriores permaneceu em torno de 18% [2].

Portanto, retomo os versos do Belchior para dizer que essa fachada de novidade do governo Bolsonaro nada mais é do que uma velha roupa colorida que não nos serve mais. Trata-se do retorno explícito ao poder de uma elite agroexportadora, de uma ideologia conservadora e de um Estado que é protagonista na punição e repressão de seus opositores e muito preguiçoso quando se trata de garantir direitos básicos à sociedade – ainda mais quando é operado pelos tecnocratas da Escola de Chicago e pelos especialistas da Escola Austríaca formados em universidades de internet.

Em suma, se esta coalizão de elites não for derrubada por suas próprias fraturas internas, teremos mais uma rodada de inserção subordinada do Brasil na economia mundial temperada por um alinhamento retórico aos EUA e uma dependência material da China. A miopia para enxergar que o novo sempre vem, neste caso, a China e a Ásia como o próximo grande centro do capitalismo mundial, pode nos levar a uma crise ainda mais profunda nos próximos anos.

IHU On-Line - Como a Nova Rota da Seda impacta as rotas comerciais da América Latina e qual a importância desse projeto para os países da região?

Bruno Hendler - A Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative - BRI, em inglês) nada mais é do que a ideia-força da política externa da China que faz convergir os três grandes motores da ascensão deste país, mencionados anteriormente. Porém, a BRI pode ser tudo e nada ao mesmo tempo. Ela não tem objetivos claros, datas-limite ou regiões-alvo específicas – e talvez esta seja a sua principal força. Sem limitações de objetivos, prazos e abrangência geográfica, qualquer projeto que envolva grupos empresariais, militares e/ou político-diplomáticos pode ganhar o “selo” BRI.

A BRI desembarcou recentemente na América Latina e diversos países têm assinado memorandos de entendimento com a China. O perfil dos projetos anunciados aponta para a prevalência da esfera econômica sobre a militar, mas a projeção chinesa sobre uma região de tradicional influência dos EUA é digna de atenção e poderá ter desdobramentos estratégicos nos próximos anos. De todo modo, é preciso aguardar a execução dos projetos específicos para avaliar seus impactos.

Projetos Chineses (Fonte: Outras Palavras)

IHU On-Line - Conforme o senhor aponta em sua tese, a China construiu-se como o “centro” no Leste Asiático. No entanto, os multitudinários protestos em Hong Kong, o imbróglio sobre Taiwan, a perseguição aos uigures e as disputas no Mar da China podem de alguma forma impactar a composição da ordem regional?

Bruno Hendler - Sem dúvida. Alguns autores mais realistas comparam o atual tabuleiro geopolítico asiático com a Europa pré-Primeira Guerra Mundial: equilíbrio entre diferentes polos de poder (China, Índia, Japão, além da projeção dos EUA e da Rússia), disputas territoriais recorrentes, economias com altos índices de crescimento e um peso considerável da geopolítica nos cálculos dos países da região. Já outros, como Giovanni Arrighi, são mais otimistas e afirmam que a pujança econômica da Ásia-Pacífico fará com que as disputas militares fiquem em segundo plano.

Os casos levantados são diferentes entre si. Xinjiang é uma província autônoma com controle exercido de fato pela China continental. Hong Kong é também uma província autônoma, mas que passa por um processo de transição de 50 anos do domínio britânico para o chinês – iniciado em 1997 e que deve ser encerrado em 2047. Taiwan também é considerada uma província autônoma pela China, mas seu governo é independente e possui relações diplomáticas de jure com alguns países e de facto com praticamente todos os membros da comunidade internacional. E o Mar do Sul da China é uma zona praticamente inabitada, composta por ilhotas, arrecifes e bancos de areia, e que tem relevância estratégica e econômica para os países da região.

Cada uma dessas questões tem nuances próprias, mas o denominador comum é a gravitação econômica que a China continental tem exercido sobre elas. Isto é, as economias da província de Xinjiang, de Hong Kong, de Taiwan e dos países que disputam o Mar do Sul da China dependem cada vez mais das cadeias produtivas e financeiras centradas na China e este será um fator decisivo para o desfecho de cada uma dessas disputas.

(Mapa: Javier Zarracina/Vox)

IHU On-Line - De que maneira a guerra comercial entre EUA e China afeta o comércio internacional? É possível, hoje, traçar alguma projeção estratégica para a América Latina sobre alinhar-se a algum polo ou vale assumir um “pragmatismo equidistante”?

Bruno Hendler - Começando pela última pergunta: não há como se pensar em uma “estratégia latino-americana” para lidar com a competição entre China e EUA, porque qualquer plano de desenvolvimento passa por um projeto de Estado nacional costurado entre elites políticas e econômicas que o controlam. Assim, o que é interessante para as elites argentinas, não será, necessariamente, interessante para as elites em Cuba, Brasil, Paraguai, Peru, Costa Rica ou México. Optar por uma ou outra potência não é o ideal, mas a régua do pragmatismo equidistante tem medidas diferentes para cada país. Talvez o alinhamento à China por países pequenos da América Central lhes seja benéfico, mas para países de grande porte como o Brasil é um tiro no pé.

Guerra comercial

Sobre a guerra comercial, é preciso entender suas raízes antes de qualquer especulação. Há décadas que os EUA têm déficit comercial com a China, mas isso foi benéfico para ambos por muito tempo. Para as empresas norte-americanas, a mão de obra do país asiático representou a queda nos custos de produção e o aumento das taxas de lucro; já para as empresas chinesas, o afluxo de capital ocidental garantiu acesso a tecnologias de ponta e a inserção nas cadeias globais de valor. Neste ciclo de interdependência (que teve seu auge nos anos 1990 e 2000), a China se tornava a fábrica do mundo e as famílias norte-americanas mantinham seu padrão de consumo exacerbado. Porém, o desgaste deste ciclo combinou-se com outros fatores que culminaram na crise de 2008. Desde então o Estado norte-americano passou a intervir de forma direta na economia – antes com o resgate das grandes corporações feito pelo governo Obama, depois com o aumento do protecionismo no governo Trump – sempre visando a geração de empregos dentro do país e a preservação de setores tradicionais como a agropecuária e a indústria bélica.

Os impactos da guerra comercial entre as duas potências são incertos, mas é provável que ambas sofram uma desaceleração no seu crescimento e que, no longo prazo, os chineses se sobressaiam porque têm sido mais eficientes em buscar alternativas. A China já não é mais o que o professor da UFRJ, Carlos Medeiros, chamou corretamente, em meados dos anos 2000, de “duplo polo na economia mundial”, isto é, que compra matéria-prima do Sul Global e exporta manufaturas para países desenvolvidos. A inserção econômica internacional deste país é, hoje, muito mais complexa e tem englobado mercados no Sudeste Asiático, Ásia Central, Oriente Médio, Ásia Meridional, África e América Latina. Se muitos países dessas regiões têm laços históricos com os EUA, suas economias dependem cada vez mais da China e esta será a encruzilhada decisiva para praticamente todos eles.

IHU On-Line - Como o senhor compreende a aproximação entre Brasil e EUA? Isso pode gerar alguma mudança na América Latina?

Bruno Hendler - O Brasil é grande e relevante demais para alinhar-se de forma automática aos EUA ou a qualquer outro país e, de fato, o que acontece dentro do território nacional tem efeitos em toda a América do Sul. A tentativa mirabolante de forjar uma aliança global entre os governos de direita e extrema direita está fadada ao fracasso, mas seus efeitos deletérios já podem ser sentidos. O Brasil, que historicamente exerceu um papel de destaque como mediador de conflitos e defensor da resolução pacífica de controvérsias, tem caminhado para a condição de pária internacional. O discurso de Bolsonaro na ONU, a forma como seu gabinete lidou com a pressão europeia no contexto das queimadas na Amazônia e a agressão verbal ao pai de Michelle Bachelet reforçam esta tese.

Não obstante, acredito que a tradição do Itamaraty prevalecerá sobre as bravatas do presidente Bolsonaro e de seu chanceler. As suas primeiras derrotas já apareceram com o possível veto à indicação de Eduardo Bolsonaro à Embaixada de Washington e o veto de Trump à tentativa de ingresso na OCDE. Porém, muito estrago ainda pode ser feito antes que a política externa do país retorne aos eixos alicerçados pelo Barão do Rio Branco.

IHU On-Line - Uma possível deposição ou mudança de governo na Venezuela pode afetar as relações entre China e América Latina? Se sim, de que forma? Ou, se não, por quê?

Bruno Hendler - A situação na Venezuela é uma incógnita, mas o que começou como um conflito civil ganhou nova escala quando potências extrarregionais passaram a atuar de forma mais direta neste país. A Rússia é a garantidora militar do atual regime de Caracas e a China tornou-se, nos últimos anos, a garantidora financeira. Porém, se os russos permanecem firmes no apoio a Maduro, os chineses têm abandonado o barco de forma sutil, retirando alguns investimentos e abandonando contratos que não foram honrados pela contraparte venezuelana.

Se, por um lado, as forças armadas brasileiras têm adotado uma postura exemplar em relação aos imigrantes/refugiados venezuelanos com a “Operação Acolhida”, por outro, a diplomacia brasileira tem se apequenado e desperdiçado uma grande oportunidade de atuação como mediadora do conflito social em nosso vizinho. De todo modo, especular sobre uma possível mudança de regime na Venezuela foge da nossa alçada no atual momento.

IHU On-Line - Como analisa a disputa entre China e Estados Unidos na “4ª Revolução Industrial” e como essa disputa pode “reordenar” o sistema internacional?

Bruno Hendler - A Revolução Industrial 4.0 envolve a automação e a comunicação das diferentes etapas das cadeias produtivas por meio de inteligência artificial, da chamada “internet das coisas”, de simuladores, impressoras 3D, Big Data, entre outros. A rapidez e a qualidade com que empresas chinesas subiram degraus nessas atividades são assustadoras: apenas em 2018, 56 empresas de Tecnologia, Mídia e TelecomunicaçõesTMT realizaram IPOs [oferta pública inicial de ações] no total de US$ 222 bilhões e as gigantes BAT (Baidu, Alibaba e Tencent) têm criado verdadeiros ecossistemas de aplicativos e serviços digitais, chegando a competir e a ultrapassar gigantes dos EUA [4]. E isto se deve não apenas aos investimentos em pesquisa e desenvolvimento, mas também à escala do mercado chinês – que é cerca de quatro vezes maior que o norte-americano.

O domínio de tecnologias de ponta é condição necessária, embora não suficiente, para a ascensão e queda das grandes potências e, dentro disso, o uso dual (civil e militar) dessas tecnologias é fundamental. A supremacia anglo-saxônica no sistema-mundo moderno, primeiro com o Império Britânico e depois com os EUA, não pode ser entendida sem o controle da tecnologia de ponta e de seu uso dual nas duas primeiras revoluções industriais – da indústria têxtil à automobilística. Apenas na terceira, com o protagonismo do Japão na eletrônica em meados do século XX, é que o mundo tornou-se menos ocidental e mais asiático, mas como este país ficou sob um consórcio ocidental tutelado pelos EUA, a supremacia anglo-saxônica teve um último respiro.

Tendo como base a literatura especializada, acredito que a China vencerá não apenas a disputa pelo 5G, mas a corrida da Revolução Industrial 4.0. Vejo que o protecionismo aplicado pelo presidente Trump faz sentido quando se volta para os setores estratégicos, mas esta tática no longo prazo não será capaz de competir com a China. Por outro lado, a liderança chinesa não se transformará em uma hegemonia mundial nos moldes da Inglaterra do século XIX e dos EUA do século XX, porque os norte-americanos continuarão como a maior potência militar do planeta. E é precisamente o embate entre a grande potência da Revolução Industrial 4.0 e a principal superpotência militar que delineará os rumos do sistema internacional daqui em diante.

Notas:

[1] Fonte: Isto é Dinheiro (Nota do entrevistado)

[2] Fonte: Ministério da Economia (Nota do entrevistado)

[3] Tecnologia, mídia e telecomunicações. (Nota do entrevistado)

[4] Fonte: China Internet Report 2019 (Nota do entrevistado)

 

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