18 Outubro 2019
Raimunda e Arizete se consideram indígenas apesar de que, tempos atrás, suas famílias esconderam essas raízes por vergonha ou temor. Raimundo acredita que sua avó era kukama ou kichwa, do Peru, enquanto que a mãe de Arizete era do povo Sateré Mawé. Dizem que sua origem está em seus rostos, porém, sobretudo, em seus corações 100% amazônicos. Elas são parte da Equipe Itinerante que recorre os rios e caminhos escutando e acompanhando, como pediu seu incentivador, Claudio Perani, aos povos mais distantes, geralmente nas fronteiras onde os problemas se multiplicam e a presença é escassa.
Raimunda Paixán Bragra e Arizete Miranda Dinelli. Foto: REPAM
A reportagem é de Beatriz García, publicada por REPAM, 15-10-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
“Enquanto tiver energia para caminhar, para colocar minha mochila nas costas e para me encontrar com os povos que necessitam de uma presença amiga, estarei com eles, lutando juntos por uma vida melhor”. Raimunda Paixán Bragra “fala” em português, porém suas palavras sinceras se entendem claramente através de seu olhar sereno, segura daquilo que conta. Tem 69 anos e nasceu em uma pequena aldeia, Vila da Alegria, do estado do Amazonas, Brasil.
“Para mim, pessoalmente, é algo mais. A parte de ser um espaço interinstitucional de serviço, é um projeto de vida, onde vives o que crês porque não há um patrão ou patroa. Somos nós, homens e mulheres, que seja lutando ou concordando, mas sobretudo, tentando viver em primeira pessoa tudo o que falamos para os demais”. Arizete Miranda Dinelli fala “portunhol” e, quando lhe perguntam se depois de tantos anos encontrou isso que tanto buscava desde jovem, pensa por alguns segundos, ri e conclui: “Sigo no caminho, é uma busca constante”. Arizete tem 59 anos e procede da Serra do Cachimbo, entre os estados do Pará e do Amazonas (Brasil).
Raimunda e Arizete, duas mulheres indígenas com raízes difusas que, em sua busca para conhecer melhor suas origens na Amazônia, descobriram que o acompanhamento e o amor dos povos mais remotos da Amazônia seriam o seu modo de vida. E a preocupação delas levou-as, em 1998, a aceitar um novo desafio: fazer parte da equipe de fronteira itinerante. Foi praticamente um experimento conduzido pelo missionário Claudio Perani, s.j., de Manaus. “Caminhe pela Amazônia, ouça o que as pessoas dizem, suas demandas e esperanças, seus problemas e soluções, suas utopias e sonhos”, convidou o já falecido Perani.
“Acho que minha avó materna era do Peru, talvez kukama ou kichwa, e por causa das características faciais do meu pai e o que aqueles que o conheciam me disseram que ele era de origem guarani”, diz Raimunda. Por outro lado, a mãe de Arizete era do povo sateré mawé e seu pai, originário do nordeste do Brasil, não conhece bem. E ela não sabe disso por uma razão simples. “Como indígena, não interessava a ninguém, eles nunca conversaram sobre isso. Quando criança, eu sabia que era indígena por causa de minhas feições, estava sempre em busca e, como tinha um tio que morava com os sateré mawé, estava sempre perguntando a ele e aprendendo algumas palavras do idioma”, relata Arizete, “minha avó por vergonha e sofrimento se calava, porém um dos meus irmãos e eu sempre estávamos na busca. Era comum esconder a origem indígena, para o sofrimento. O índio é tratado como o ser sujo, feio, preguiçoso, mau ... quem gostaria de ser indígena? Quem teria orgulho de ser indígena?
Equipe Itinerante. Foto: REPAM
Índios da Amazônia são pessoas sem fronteiras. Existem famílias que, por circunstâncias, vivem em até três países diferentes. A mãe de um lado do rio, a filha do outro e a neta nesse mesmo rio, mas alguns quilômetros acima. A mesma família, mas com diferentes nacionalidades e, portanto, sujeita a diferentes sistemas e normas. Nessa lógica, um tanto ilógica, mulheres com um grupo particularmente vulnerável e expostas a situações mais que difíceis: indígenas, fronteiriças e mulheres. “A maior ameaça para elas é a exploração sexual e, em geral, das próprias mulheres, em múltiplos aspectos. Está sempre atrás do homem, a sociedade ainda está lá muito patriarcal, muito mais do que vemos na cidade. É muito perceptível em todos os países, as mulheres continuam a se considerar inferiores aos homens. Há uma desigualdade ainda maior”, diz Raimunda, acrescentando: “E, é claro, a forte militarização praticada em praticamente todos os territórios de fronteira os prejudica, as mulheres são como objetos”.
Outra questão, que anda de mãos dadas, é como construir a partir de baixo a Igreja com um rosto amazônico que o Papa pede e como, igualmente, incutir nela os benefícios e os pontos fortes da mulher indígena. Vale perguntar lá, como promover as vocações femininas na Amazônia? Por que elas ainda são uma exceção? “Certamente há muitas jovens que gostariam de ter uma vida religiosa, mas acho que os programas de formação não estão preparados. Temos planos que não consideram toda a sabedoria e experiência de vida de meninas indígenas ”, acredita a irmã Arizete. Considera uma virada relevante. A mulher amazônica é portadora de liberdade e, no entanto, a vida religiosa é apresentada como algo fechado. “Há congregações que procuram outra maneira de se formar. Esperamos alcançar o ideal: "Um modo de vida sem forma", diz ele, referindo-se a uma vida de acordo com cada realidade, governada por princípios fundamentais, mas ao mesmo tempo respondendo às necessidades diárias e reais das pessoas com quem a Igreja compromete-se.
E é aí que, em uma questão-chave, Arizete e Raimunda trocam um olhar cúmplice e, como se concordassem, concordam com a mesma opinião. “As mulheres são sempre consideradas vulneráveis, destacam-se os problemas e as ameaças que enfrentam, mas quais são os potenciais das mulheres indígenas?”. É Raimunda quem responde: “As mulheres indígenas são sábias, quando os homens vão falar em uma reunião, elas da cozinha, enquanto preparam bebidas, já lhes deram alguns palpites ou ideias a seus maridos para falar lá fora. Somos nós que guardamos os ensinamentos, as intuições, sabemos o mais sagrado... É por isso que cuidamos de nossos filhos, parceiros... ”. E Arizete conclui: "Quando a mulher indígena percebe e descobre a força que tem, nada e nem ninguém pode pará-la... ela avança e avança com determinação".
Raimunda. Foto: Arquivo Pessoal
Desde jovem, Raimunda Paixán se considera missionária. "Nasci em uma família missionária, de agricultores humildes, mas minha mãe já estava saindo de casa para ajudar outras famílias da vila", lembra ela. Muito ativa em diferentes grupos da Igreja, ela optou pela vida religiosa e ingressou em uma congregação das Irmãs Vicentinas. Ela era irmã há 19 anos, "mas descobri que não era minha casa, aprendi muito e amei o carisma das irmãs, mas precisava de algo mais livre". De lá, ela é uma missionária leiga. Foi assim que em 1988 ele ingressou no CIMI (Conselho Missionário Indígena) e, a partir daí, atendeu às suas preocupações trabalhando com Comunidades Eclesiais de Base, ribeirinhas e outras aldeias carentes, como os Yanomami. Foi precisamente uma década depois, quando ela estava praticamente saindo do CIMI para atender sua mãe doente que estava em Tabatinga (Amazonas, Brasil) que a Equipe Itinerante bateu à sua porta e... está até hoje. “Para mim, a itinerância é uma escola de experiência, de aproximação das pessoas, de saber mais sobre a realidade. Essa Equipe me deu uma visão maior do trabalho missionário nas fronteiras. Também aprendi sobre como viver com colegas de diferentes cidades, países, culturas... que me permitiu abrir minha mente para as diferentes. Eu me sinto muito bem ”, ele confessa.
Arizete Miranda é religiosa desde os 21 anos. Pertence à Congregação Nossa Senhora Cólegas de Santo Agostinho. Entre suas referências, destaca a irmã Ivone Gebara, conhecida como teóloga e filósofa feminista relacionada à Teologia da Libertação. "Ela nos ajudou como mulheres que devemos nos afirmar nafé, para nos comprometermos com a vida de ser mulher", diz ele. Ela é professora de profissão, como a mãe. Portanto, o que mais importa é visitar aldeias, como algumas no vale Yavarí, onde as crianças não vão à escola. A imposição de modelos educacionais alheios à realidade dos povos indígenas, sua sabedoria ancestral e sua cultura também o entristece. Sua chegada à equipe itinerante foi a mão do impulsor, padre Perani, que conhecia seu trabalho durante anos com a população das periferias e a convidou. “As irmãs eram muito compreensivas e flexíveis e, de certa forma, deram facilidades para me libertar e me exercitar com povos indígenas remotos”, explica ela. Em 2006, houve uma pausa, mas ela voltou à vida itinerante, com mais força do que nunca, em 2013. E ela continua... e continuará.
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“Quando a mulher indígena percebe e descobre a força que tem, nada e nem ninguém pode pará-la. Ela avança, e avança com determinação”. Entrevista com missionárias indígenas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU