16 Outubro 2019
"Mais do que a batina de cardeal, eu deveria usar um traje de camuflagem. Eu me considero um veterano de guerra." O cardeal Mario Zenari, 73 anos, nomeado núncio apostólico em Damasco em 2008, há vinte anos presta serviço diplomático em nome da Santa Sé apenas em países devastados por conflitos: primeiro na Costa do Marfim, Níger e Burkina Faso, depois no Sri Lanka, agora na Síria. Ele é o único núncio com título de cardeal. Originário de Verona, vem de uma família de agricultores arrendatários que vivem em Rosegaferro (Nome que em italiano significa ‘Mordisca ferro’: dura tarefa!).
A entrevista é de Stefano Lorenzetto, publicada por Corriere della Sera, 14-10-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
“O Senhor ajuda. Em 5 de novembro de 2013, um foguete caiu às 6h40 no terraço da nunciatura, onde costumo ir rezar naquela hora. Se fosse 5 metros para o lado, eu não estaria aqui para contar. O Papa sempre fala de "Igreja hospital de campanha". Aqui, me considero um núncio de campanha. Compreendi imediatamente da guerra na Síria que o fogo se espalharia pela Europa".
Até onde vai, depois que a Turquia atacar os curdos no norte do país?
A única resposta sensata foi dada pelo segundo enviado especial da ONU, o argelino Lakhdar Brahimi, quando jogou a toalha dois anos depois: ‘Estávamos todos errados. Tanto na Síria como fora da Síria’.
Quais são as verdadeiras causas do conflito?
Veja bem, no começo se poderia pensar: aqui estão os mocinhos, lá estão os bandidos. Hoje, porém, o novelo está tão emaranhado que impede qualquer juízo. Na terra e nos céus da Síria, cinco potências mundiais se enfrentam fazendo guerra por procuração. Esse conflito só pode ser resolvido em Nova York, no Palácio de Vidro.
Você já teve muitas reuniões com o Presidente Bashar Assad?
Apenas três. Dá a impressão de ser um cavalheiro. Não se pode dizer que ele se pareça com Saddam Hussein ou Gaddafi. Isso não tira que a responsabilidade pelo que está acontecendo na Síria seja dele, não de sua empregada.
O presidente afirma que está se defendendo contra os terroristas muçulmanos.
Uma antífona que se repete há anos, e em parte é verdadeira: o advento do Estado Islâmico representa um verdadeiro flagelo.
Qual é o saldo da tragédia?
É a maior catástrofe humanitária desde o final da Segunda Guerra Mundial. António Guterres, secretário geral da ONU, falou de ‘inferno na terra’. Dos 23 milhões de habitantes, 5,9 são deslocados internos e 5,6 abrigados em países vizinhos. Meio milhão perdeu a vida sob as bombas. Você conhece a parábola do bom samaritano?
O viajante que ajuda um homem deixado meio morto por bandidos na estrada para Jericó e que o deixa com um estalajadeiro, assumindo as despesas.
A Síria é como esse infeliz. Dos ladrões que a atacaram, sabemos nomes e sobrenomes. Os bons samaritanos são igrejas, ONGs e indivíduos particulares que a ajudam. Cerca de 2.000 deles foram mortos. A estalagem não existe mais: 54% dos hospitais estão barricados ou parcialmente inutilizáveis, segundo a OMS, e faltam dois terços do pessoal de saúde.
O que o núncio apostólico pode fazer?
Na Síria, existem três hospitais dirigidos por freiras, dois em Damasco e um em Alepo. Estavam fechando algumas unidades. Então, com a Fundação Avsi, lançamos a operação Hospitais Abertos, que já tratou 25.000 pacientes de graça. Não perguntamos aos pacientes que fé eles praticam; basta que sejam necessitados, uma vez que 83 sírios em cada 100 vivem abaixo da linha da pobreza. Os muçulmanos, que antes nos viam como infiéis, agora são os primeiros a falar bem da Igreja.
Você teme por sua vida?
Eu não tenho esse tipo de preocupação. Vinte anos atrás, fui nomeado arcebispo titular de Zuglio. Em junho passado, visitei essa pequena cidade na fronteira entre Carnia e Áustria. Saindo da catedral caí, fraturando o pulso direito e um dedo da mão esquerda. Ambos os membros foram engessados. Foi uma experiência instrutiva. Pensei nas crianças atingidas por um míssil que caiu em sua escola em Damasco na sexta-feira santa 2014. E revi Laurin, 9 anos, no hospital: tiveram que amputar as suas pernas. Aqueles inocentes sorriam para mim. Não basta falar: é preciso sentir.
Do jesuíta Paolo Dall'Oglio, sequestrado em Raqqa em 2013, o que se sabe?
Nada. Quando venho a Roma, visito sempre a mãe de 90 anos, as quatro irmãs e os três irmãos. E eu nunca sei o que dizer. ‘Coloque sacos de areia nas janelas’, recomendou-me o padre Paolo na última vez em que conversamos, em abril de 2013. Ele se preocupava com a minha segurança e acabou na jaula do leão.
Se o papa o chamasse de volta de Damasco, seria um afastamento doloroso?
Francisco deu à Síria a insígnia cardinalícia, não a mim. Ele não pode tirar isso dela.
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Síria. “Eu, núncio de campanha. Aqui há uma catástrofe e só a ONU poderia resolvê-la”. Entrevista com o cardeal Mario Zenari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU