“Não há razão nenhuma para concluir Angra III” e “neste momento, na minha opinião e de vários que estudam alternativas energéticas, a energia nuclear está no fim da lista de prioridades como opção energética”, diz Ildo Sauer, diretor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo e doutor em Engenharia Nuclear, ao comentar a intenção do governo federal de retomar o projeto de Angra III e construir mais seis usinas nucleares no Brasil até 2050. Segundo ele, as razões objetivas dessa proposta, que ressurge em todos os governos desde 2008, já foram demonstradas: “há uma pressão do lobby da indústria nuclear internacional e das empreiteiras brasileiras, montadoras associadas, como era o caso da Andrade Gutierrez, que acabou resultando numa investigação da Polícia Federal”. Os interesses em torno da energia nuclear, afirma, estão “muito distantes dos interesses de uma política energética científica ou tecnológica relevante para o país, tanto que o líder da Eletronuclear acabou preso e está respondendo a processo. Mas isso justifica, talvez, o ímpeto com que, periodicamente, ignorando fatos objetivos em relação à viabilidade econômica, à conveniência ambiental e à presença de riscos, se pensa, em comparação com outras alternativas, sobre os benefícios de concluir uma usina ou iniciar outras”.
Na avaliação de Sauer, “é difícil compreender” o que move o governo atual e sua ala militar a proporem novos investimentos em energia nuclear, quando o Brasil dispõe de uma série de fontes alternativas. “Em geral, aparecem critérios obscuros, especialmente agora, na manifestação do ministro militar [Bento Costa Lima Leite de Albuquerque Júnior, ministro de Minas e Energia], de que investir em energia nuclear é investir em tecnologia, de que é relevante, de que temos o ciclo do combustível, de que o Brasil detém reservas de urânio e capacidade de fazer enriquecimento de urânio, e de que seria uma perda estratégica não usufruir dessa possibilidade. Pois bem, nada disso se sustenta”, assegura.
Apesar de ser contrário aos investimentos em energia nuclear, o engenheiro adverte que “não podemos demonizá-la” e defende a continuidade das pesquisas científicas e tecnológicas na área nuclear por causa dos benefícios que elas podem trazer para a medicina, a agricultura e a biologia. “Agora, dizer que temos que usar o urânio existente na Bahia, no Ceará e talvez na Amazônia e exportá-lo ou usá-lo aqui só porque ele existe, não tem sentido”, reitera.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line na semana passada, após participar de um ato em defesa da Petrobras no Rio de Janeiro, Sauer menciona que “a opção de desnacionalizar a Petrobras e a Embraer é defendida por uma fração pequena das Forças Armadas, que perderam a noção de que seu papel é relevante para garantir a soberania”. Para ele, hoje o ministro da Economia, Paulo Guedes, “é o grande inimigo do povo brasileiro”.
Crítico ao modo como os governos FHC, Lula e Dilma trataram a questão energética no país nas últimas décadas, Sauer também reprova o modo como o tema vem sendo conduzido pelo atual governo. “É isto o que o Guedes está anunciando: está entregando o pré-sal sem compreender a sua dimensão. De maneira que o plano que o governo vem anunciando é um desastre total contra o interesse público”, avalia. E lamenta: “Eu vejo com tristeza absoluta, como hienas se refestelando com sobras de um banquete futuro, governadores e senadores indo a Brasília e pedindo uma fatia daqueles 100 bilhões de reais do bônus de assinatura, esperado para entregar de 10 a 15 milhões de barris já descobertos, cuja produção vai gerar um excedente mínimo da ordem de 400 a 500 bilhões de dólares”.
Ildo Sauer (Foto: Gabriela Korossy | Câmara dos Deputados)
Ildo Sauer foi diretor executivo da Área de Negócios de Gás e Energia da Petrobras de 2003 a 2007. Desde 1991, é professor na Universidade de São Paulo. Engenheiro civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Sauer é mestre em Engenharia Nuclear e Planejamento Energético pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutor em Engenharia Nuclear pelo Massachusetts Institute of Technology. Recebeu pela USP o título de Livre Docência em 2004.
IHU On-Line - Muitos especialistas explicam os riscos de se apostar em energia nuclear. Apesar disso, o governo federal anunciou recentemente que estuda a possibilidade de construir mais seis usinas nucleares no Brasil até 2050. Por que o Estado brasileiro aposta nessa via?
Ildo Sauer – Há uma estranha tendência e cada novo governo ou novo ministério anuncia que vai retomar o programa nuclear e concluir Angra III. Foi assim quando o ministro Edison Lobão tomou posse, foi assim com os seus sucessores e é assim agora com este novo governo. Naquele tempo, meu colega Joaquim Francisco de Carvalho e eu publicamos um artigo na revista Energy Policy (2009) sobre a seguinte questão: “Does Brazil need new nuclar power pants?” [Precisa o Brasil de novas usinas nucleares?]. O debate na época visava retomar Angra III e instalar um conjunto de usinas nucleares, preferencialmente, como foi anunciado e colocado no planejamento energético da Empresa de Pesquisa Energética - EPE, e colocar essas usinas no Nordeste, próximo dos lagos das usinas hidrelétricas do Rio São Francisco.
Desde 2008 até hoje já se vão onze anos e agora recebemos este anúncio feito pelo Ministério de Minas e Energia - MME de que Angra III será retomada e concluída. As razões objetivas dessa proposta, nas vezes anteriores, foram demonstradas: há uma pressão do lobby da indústria nuclear internacional e das empreiteiras brasileiras, montadoras associadas, como era o caso da Andrade Gutierrez, que acabou resultando numa investigação da Polícia Federal, porque retomaram um contrato dos anos 1970. A construção da usina Angra III já havia sido licitada e a principal empresa contratista havia sido a Andrade Gutierrez, há mais de 30 anos. Com as investigações da Polícia Federal, do Tribunal de Contas da União e outros órgãos, ficou claro que a motivação principal foi atender aos interesses desses grupos. Estavam, portanto, muito distantes os interesses de uma política energética científica ou tecnológica relevante para o país, tanto que o líder da Eletronuclear acabou preso e está respondendo a processos. Essa é uma questão cujo resultado final tem que ser aguardado. Mas isso justifica talvez o ímpeto com que, periodicamente, ignorando fatos objetivos em relação à viabilidade econômica, à conveniência ambiental e à presença de riscos, se pensa, em comparação com outras alternativas, sobre os benefícios de concluir uma usina ou iniciar outras.
Em termos, qual é o benefício de gerar energia elétrica e ampliar a capacitação tecnológica do país investindo em energia nuclear em comparação com outras alternativas? Ficou claro, desde o começo, que essa não era uma proposição razoável de ser defendida sob esses critérios. Em geral, aparecem critérios obscuros, especialmente agora, na manifestação do ministro militar [Bento Costa Lima Leite de Albuquerque Júnior, Ministro de Minas e Energia], de que investir em energia nuclear é investir em tecnologia, de que é relevante, de que temos o ciclo do combustível e de que o Brasil detém reservas de urânio e capacidade de fazer enriquecimento de urânio, e de que seria uma perda estratégica não usufruir dessa possibilidade. Pois bem, nada disso se sustenta.
Angra III é um projeto tecnologicamente avançado para o estado da arte da década de 1970; portanto, mais de quatro décadas atrás. Foi projetado a partir da tecnologia da Westinghouse, aperfeiçoado na Alemanha e hoje em dia faz parte do conglomerado europeu Areva, um sistema industrial de produção de reatores nucleares que opera na França e que, na Alemanha, estão sendo retirados de funcionamento, de acordo com o programa anunciado pelo governo alemão logo após o incidente de Fukushima.
A montagem, a conclusão, a construção e a operação de Angra III, do ponto de vista tecnológico, não traz nada de novo, de avançado, de conhecimento adicional, de aperfeiçoamento tecnológico para o país. Do ponto de vista econômico, já foi gasto muito dinheiro com a usina, e seus defensores alegam que existem contratos e financiamentos a serem honrados e, infelizmente, isso é verdade. Mas não é assim que se pensa em economia, em planejamento e em construção do futuro. A pergunta sempre é: dado o estado de hoje, quanto ainda falta investir para concluir a usina? Quanto isso custa, supondo que o que já foi gasto está perdido, ainda que seja em dívida, porque isso é irrecorrível?
As respostas são claras. O próprio governo já vem anunciando, desde que foi feita a decisão — depois abandonada por causa dos processos judiciais — de retomada das obras: vai ser preciso um investimento adicional, fora o que já foi gasto, da ordem de 15 a 16 bilhões de reais, para a usina produzir 1.343 megawatts brutos de potência instalada, com um fator de capacidade próximo de 90% quando tudo correr bem. A usina tem que parar todo ano cerca de 43 dias para retirada de 1/3 de seus elementos combustíveis, e substituí-los por 1/3 novo, com mais reatividade. Então, é como se ela operasse cerca de 1.000 megawatts. Esse é o benefício energético. E é bom lembrar que as usinas nucleares têm baixa flexibilidade, isto é, não conseguem diminuir e aumentar a carga de acordo com o comportamento da demanda.
Se olharmos o estado da arte das outras opções tecnológicas brasileiras neste momento, fora a tradicional hidráulica, que era predominante e deixou de ser — o maior potencial para produzir eletricidade no Brasil é, sem dúvida nenhuma, a opção eólica, principalmente no Nordeste e também, em menor qualidade mas também relevante, as opções do Sul do país —, o potencial energético hoje ultrapassa em muito as necessidades.
A segunda opção que está se afirmando com custo semelhante à eólica é a solar fotovoltaica, que é distribuída sobre telhados e tem a vantagem de não necessitar de redes adicionais de transmissão e distribuição. Ambas têm custos menores para produzir a mesma quantidade de energia que Angra III produziria. Ou seja, o custo para concluir Angra III é de 15 a 16 bilhões de reais, enquanto uma instalação eólica que produziria a mesma quantidade de energia seria da ordem de 8 a 9 bilhões de reais. O fator de capacidade da energia nuclear é próximo de 90%. Na eólica, esse valor fica em torno de 50% — a eólica no padrão Nordeste tem um fator de capacidade da ordem de 45 a 50% e no Sul esse valor é um pouco menor.
A energia fotovoltaica tem um fator de capacidade menor, da ordem de 15 a 18%, mas o investimento seria semelhante para produzir a mesma quantidade de energia. Seria necessário, então, instalar algo como 5 mil megawatts de fotovoltaica a um custo de 8 a 9 bilhões de reais. Portanto, há uma diferença clara de 6 a 8 bilhões de reais em relação ao custo de conclusão de Angra III, sem levar em conta o que já foi gasto. A comparação é entre o que falta. Então, o investimento em fotovoltaica e eólica permite produzir, com o mesmo valor de investimento, o dobro da energia ou, com metade do investimento, a mesma quantidade de energia, e o benefício é semelhante.
As hidráulicas, evidentemente as bem situadas, têm a vantagem, quando há reservatórios, de servir de estabilizador das flutuações da disponibilidade da energia fotovoltaica, que é diária, com algumas oscilações em alguns períodos do ano por causa de mais sombreamento ou mais chuva. A eólica também tem variabilidade anual porque depende do regime de ventos. Mas todos os estudos feitos na USP e em outros lugares demonstram claramente que o comportamento da disponibilidade da energia eólica do Nordeste é complementar com o regime hidrológico do Sudeste, do Centro-Oeste e do Norte do Brasil, onde está o maior potencial já instalado por desenvolver usinas hidráulicas. Além disso, o potencial eólico brasileiro já ultrapassa os 500 mil megawatts e o fotovoltaico não é preciso nem citar, porque uma área menor do que o estado do Sergipe produziria a mesma quantidade de energia que hoje produzimos no Brasil.
A produção brasileira de energia hoje é de 600 terawatts/hora, mas o consumo tem uma perda de mais ou menos 15%, e chega a aproximadamente 510 terawatts/hora de consumo. Cada terawatts/hora equivale a mil gigawatts/hora ou um milhão de megawatts/hora ou um bilhão de quilowatts/hora — para mencionar todas as unidades.
Uma família brasileira consome, em média, 200, 300 quilowatts/hora por mês. O consumo per capita brasileiro, levando em conta o consumo da indústria, do setor de serviços, comércio e agricultura, dividido pela população brasileira, é de 2,5 megawatts/hora por habitante/ano. Na Europa, esse consumo é o dobro.
Temos instalado hoje 103 mil megawatts de potência hidráulica e já ultrapassamos 15 mil em termos de eólica, que é a segunda fonte mais relevante no país. A energia fotovoltaica está crescendo muito e já passou de mil megawatts instalados e tem um potencial extremamente maior do que o necessário. As usinas térmicas têm mil megawatts instalados e temos ainda por desenvolver cerca de 140 mil megawatts de energia hidráulica, que não poderá ser instalada por razões econômicas, duas leis ambientais e, acima de tudo, por razões sociais. Além disso, existem os resíduos urbanos que podem ser convertidos em biogás, gerando energia térmica e elétrica. Então, tipos de recursos não faltam.
Para dobrar o consumo, precisamos alcançar 1.100 terawatts/hora por ano de produção de energia. Isso significa que precisaríamos instalar cerca de 200 mil megawatts de capacidade eólica ou hidráulica instalada ou então fotovoltaica. Então, se quisermos dobrar o consumo, temos que fazer um exercício de remover todo o uso de combustíveis fósseis da indústria, da agricultura e dos transportes, eletrificando toda a frota. Poderíamos fazê-lo usando energia eólica e fotovoltaica combinado com hidráulica. O grande benefício da hidráulica é que os reservatórios, quando cheios de água, têm um estoque equivalente a 207 terawatts/hora e energia estocada, que pode ser guardada permanentemente e usada nos momentos e períodos em que há menos afluentes de vento ou sol. E, no período extremo, usaríamos as térmicas convencionais, de preferência usando combustível não como aquele que contratamos recentemente, carvão e óleo, mas sobretudo o gás natural, especialmente liquefeito.
Estou explicando a tipologia da matriz energética para dizer que não falta fonte renovável, não falta fonte de resíduos que podem ser convertidos em energia, não faltam opções, de maneira que do ponto de vista de necessidade energética, com enormes vantagens de custo, não há razão nenhuma para se querer concluir Angra III.
IHU On-Line - Há um interesse do Estado brasileiro em querer investir em outras fontes energéticas? Por que se tem a impressão de que há um travamento nesse sentido?
Ildo Sauer – Houve uma espécie de travamento, primeiro, porque tivemos a evolução dessas fontes somente nas últimas duas décadas no Brasil. A eólica e a fotovoltaica tiveram uma queda extraordinária de escala na indústria mundial, na China, nos EUA, na Europa e no Brasil. Isso não aconteceu na indústria do gás, que foi uma das poucas iniciativas promissoras do pós-guerra: a energia foi usada como a solução final da Segunda Guerra Mundial pelos EUA, e depois passou-se a adotar os usos pacíficos para produzir eletricidade, com a ideia de que ela teria um custo tão baixo que seria mais barato produzi-la do que emiti-la. Achava-se, assim, que a energia seria um bem público como o oxigênio. Mas isso foi um discurso; na prática se viu que não era assim.
Do ponto de vista tecnológico, um dos maiores fracassos mundiais foi exatamente essa trajetória em que aconteceu o contrário do que se esperava: a descoberta de problemas, como a dos transurânicos que são formados dentro do reator, mostrou que eles têm problemas seríssimos quando adentram o ecossistema aéreo, o solo ou o sistema hídrico, e que as radiações causam câncer. Esse é o grave problema. Então, criaram um sistema de segurança que tornou essa tecnologia tão promissora em um grande fracasso.
Dos acidentes mais graves, o primeiro, do ponto de vista econômico, colocou uma pá de cal nas perspectivas econômicas de investir em energia nuclear, porque houve perda de confiabilidade e ficou claro que aquele sistema de segurança adotado — semelhante ao de Angra III — não era suficiente. Em seguida teve o acidente de Chernobyl em 1986, que aconteceu por um erro operacional e porque a tecnologia era muito mais precária que a de Angra III.
Mas o acidente de Fukushima, bem mais recente, mostrou que todo sistema se revelou vulnerável e apresentou outra preocupação: mesmo que se avance muito mais no conhecimento e mesmo com a tecnologia dos reatores avançados, nunca chegaríamos ao patamar de segurança absoluta. A segurança absoluta também não é obtida nas outras tecnologias, nem na hidráulica nem na eólica nem na fotovoltaica, mas as consequências das falhas dessas outras não se comparam com as consequências de um acidente ou uma falha drástica do sistema nuclear, por causa da radioatividade.
Apesar disso, países como China, Japão, Coreia ou mesmo a França, dificilmente irão abrir mão da ação nuclear porque eles não têm uma alternativa economicamente mais favorável. Além do mais, o carvão, do ponto de vista da emissão de gás de efeito estufa, ou mesmo o gás natural ou mesmo o óleo combustível, são mais desvantajosos do que a opção nuclear e é por isso que o incentivo a essa energia voltou. O Greenpeace foi uma das grandes organizações que lutou contra a energia nuclear, mas a partir da consolidação dos temores do aquecimento global, ele mudou de posição e passou a defender a opção nuclear. De todo modo, é possível, sim, produzir soluções tecnológicas na área nuclear com uma concepção diferente desses reatores de Angra I e Fukushima, porque eles foram concebidos inicialmente para serem usados como tecnologia de propulsão nuclear de submarino e porta-aviões e foram adaptados para produção de energia civil.
O princípio da fissão nuclear é algo que herdamos do Big Bang: a formação da Terra nos deixou isso como uma herança que pode ser extremamente positiva, mas tem que ser usada sempre na direção de primeiro ver qual é a necessidade e qual é o balanço custo-benefício. Estou falando isso em dois sentidos. Com relação à Angra III, que é uma tecnologia superada, além de ter um custo muito superior, o dobro, ela nos deixa como herança dois problemas. Primeiro, se operarmos uma usina dessas por 30 ou 40 anos, ela deixará, nesse período, mil toneladas de combustíveis irradiados que exigirão cuidados, se forem reprocessados, durante 300 anos; se não forem reprocessados, serão dois mil anos. Deixaremos essa herança para as gerações futuras e ainda vamos pagar o dobro para ter a mesma energia. Então, a insistência em investir nesse modelo causa perplexidade.
O segundo ponto é que, apesar de o risco ser muito baixo, ele não é inexistente. Além disso, temos os rejeitos de baixo e médio nível de radioatividade que exigirão cuidados. O Brasil não resolveu ainda a destinação final dos resíduos de Angra I e Angra II — eles estão no limbo, sendo estocados dentro dos reatores de Angra I e II.
Além do mais, a geração de emprego e trabalho na cadeia produtiva eólica e fotovoltaica é muito mais intensa e favorável para gerar emprego e renda do que a cadeia nuclear. Mesmo assim, defendo que o Brasil continue avançando na pesquisa científica e tecnológica na área nuclear, que possamos concluir o projeto de reator que foi concebido cerca de três décadas atrás, dentro do mesmo projeto que vivíamos no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares e na coordenadoria de projetos especiais do Ministério da Marinha, do qual fui funcionário civil durante quatro anos. Trata-se de um reator de alto fluxo de nêutrons que permite manter o conhecimento tecnológico, projetar, operar e gerar benefícios para produzir radioisótopos para a medicina, a agricultura, ter fluxo de nêutrons para estudar as pesquisas sobre a estrutura de materiais novos nas áreas da biologia e da agricultura. Portanto, defendo que devemos continuar desenvolvendo o conhecimento nuclear, que algum dia será necessário para a produção de energia, mas parece que isso está fora do horizonte neste momento. Mas todos que achavam que poderiam predizer o futuro com certeza absoluta, estavam um pouco além das limitações inerentes do conhecimento humano.
O discurso de que precisamos concluir a montagem do reator para transferir tecnologia nuclear equivale a dizer que comprar e operar um avião é transferir tecnologia aeronáutica; não é assim. Nós aprendemos a fazer tecnologia aeronáutica projetando, construindo e operando aviões com a Embraer estatal; é diferente de comprar e operar um projeto como Angra III, cujos equipamentos principais foram fabricados na Alemanha e alguns aqui no Brasil. A montagem é mera montagem, não agrega nada.
E, finalmente, sobre o ciclo de combustíveis, o acordo que o Brasil fez com a Alemanha não permitiu trazer uma tecnologia viável. Nós, na Marinha do Brasil, desenvolvemos o enriquecimento nuclear, que é um avanço significativo: o desenvolvimento do enriquecimento via ultracentrifugação é a tecnologia usada em Resende (RJ) para produzir combustível enriquecido para Angra I e Angra II, e isso é feito no Brasil, o que é um avanço significativo. Agora, dizer que temos que usar o urânio existente na Bahia, no Ceará e talvez na Amazônia e exportá-lo ou usá-lo aqui só porque ele existe, não tem sentido. Ora, existem mais recursos disponíveis, como o sol, o ciclo eólico, o hidrológico ou a biomassa, a qual não citei antes, mas que também está presente como uma opção de energia feita a partir do bagaço de cana-de-açúcar e restos provenientes da agricultura. Temos que fazer escolhas com recursos de menor custo, menor impacto ambiental e que gerem maiores benefícios sociais — e a energia nuclear está longe disso.
Se fosse importante manter a tecnologia e a indústria nuclear, o Brasil poderia, eventualmente, até produzir combustíveis nucleares para exportação, para colocá-los em operação em outras regiões do mundo onde as outras opções energéticas são menos vantajosas. Se é o caso de valorizar a nossa tecnologia no ciclo de combustíveis, de extrair urânio para produzir valor, a opção seria de fazê-lo junto ao exterior.
O Brasil poderia ter um papel com outro significado no exterior. Eu venho defendendo há muitos anos que o Brasil errou gravemente no governo Fernando Henrique Cardoso, quando assinou o tratado de não proliferação nuclear, isto é, o Brasil se tornou um país que aceita o papel de subalterno, aceita que um grupo de países — principalmente Estados Unidos, China, Rússia, Inglaterra, e alguns outros, como Coreia do Norte, Paquistão, Índia e Israel — tenha artefatos nucleares e o Brasil não. Nós temos que usar a capacidade brasileira nuclear para pressionar todos esses países a desmontarem seus arsenais nucleares, inclusive usando o plutônio e o urânio enriquecido para produzir energia, sob o controle da ONU através da Agência Internacional de Energia Atômica. Nenhum país teria mais o controle de urânico e plutônio e quem precisasse de energia teria seu combustível disponibilizado por meio de um consórcio internacional, do qual o Brasil, com seu conhecimento, poderia participar e se beneficiar economicamente.
O Brasil deveria dar um prazo de cinco, seis ou sete anos para que haja o desmantelamento dos arsenais, ou deveria ameaçar produzir seu próprio artefato para manter o papel e reconhecimento de país de status igual a qualquer outro entre os maiores do mundo. Aliás, é só vermos o tratamento diferenciado que os americanos, apesar do conflito bélico com a Coreia do Norte — depois mudaram de tom —, têm pelo Irã, que manifestou uma posição de independência, de soberania autônoma. Em geral, quando os militares falam em fazer Angra III, no fundo, talvez, por falta de conhecimento específico ou por mística, acham que ter mais um reator nuclear aumentaria o poder tecnológico e até, sem explicitá-lo, o poder militar do Brasil, o que não é o caso, de maneira nenhuma. De modo que é difícil compreender o que os move.
Para mim, causou perplexidade quando anunciaram que queriam retomar Angra III em 2008, 2009. Ficou claro, mais adiante, que a motivação principal foi revelada pela investigação da Polícia Federal, pela prisão do presidente da Eletronuclear e tudo o que a imprensa já divulgou. Ou seja, havia um motivo escuso. Inclusive, andaram fazendo muitos trabalhos e reuniões com as populações ribeirinhas do São Francisco, dizendo que haveria energia nuclear lá, que os royalties das usinas nucleares permitiriam melhorar as condições de vida daquelas comunidades. Ora, se a região tem as maiores usinas hidrelétricas e se elas não resolveram os problemas das populações locais, a questão não é ter ou não energia; é um problema socioeconômico do local. Tentaram tornar essas comunidades defensoras da instalação de usinas nucleares, um trabalho feito, inclusive, nos governos da senhora Rousseff, que acabou sendo denunciada por professores e por movimentos ambientais.
De maneira que esse é o quadro sobre a energia nuclear no Brasil. Não podemos demonizá-la, porque ela é uma opção que precisa estar disponível, mas com racionalidade, com clareza sobre os custos e benefícios e, neste momento, na minha opinião e de vários que estudam alternativas energéticas, a energia nuclear está no fim da lista de prioridades como opção energética.
IHU On-Line — O governo federal também está finalizando a elaboração do Plano Nacional de Energia - PNE. Como o senhor avalia o PNE que está sendo elaborado? Que questões importantes estão no PNE e quais foram deixadas de fora?
Ildo Sauer — O Plano Nacional de Energia deve incluir também a área de combustíveis — petróleo, pré-sal, gás natural, biocombustíveis — e a eletricidade. Os detalhes não têm sido divulgados e, lamentavelmente, cada governo tem usado os planos para atender aos modismos do momento e, depois de um tempo, descobrimos que aqueles modismos tinham motivação. Por exemplo: o Brasil contratou, sem necessidade, de 2003 para cá, uma quantidade enorme de usinas a óleo combustível, a carvão e a gás natural, cuja operação se revelou muito mais custosa do que se tivessem contratado usinas eólicas ou, mais adiante, fotovoltaicas. Este quadro também ficou claro mais tarde, com as investigações dos leilões de reserva. Não tem que fazer leilões de reserva, pois quando contratamos energia com um certo grau de confiabilidade, ela tem que estar disponível; não é necessário fazer um leilão de reserva.
O que aconteceu foi o seguinte: contratou-se energia, mas como havia risco de faltar energia, foi contratada uma nova capacidade para funcionar como seguro e transferiu-se o custo desse acordo para os consumidores cativos. Isso tem gerado um desequilíbrio, pois 30% da energia brasileira hoje vai para consumidores livres, que pagam uma tarifa extremamente baixa. Então, há um desequilíbrio na alocação dos custos dentro do mercado regulado e o mercado que eles chamam de livre, que é o mercado espoliador contra os cativos.
É por isso que o Brasil tem hoje, para o mercado cativo, a terceira tarifa mais cara do mundo. Isso tudo foi fruto da maneira como foram feitos os planos, como foram feitos os leilões de contratação de energia, com modelos e critérios equivocados. Essa conta já passa de 150 bilhões de reais nas últimas duas décadas e ela é decorrente dos erros, equívocos ou decisões sem fundamento lógico, mas que beneficiaram muitos dos contratantes e fornecedores.
O leilão de Belo Monte foi um leilão arranjado, assim como o do Rio Madeira. Grande parte das nossas estatais, como a Eletrobras, foram usadas como muletas para viabilizar investimentos ditos “privados”, mas a parte privada também vinha do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES. Os planos têm servido muito mais para legitimar as escolhas feitas anteriormente. Espero que isso possa mudar, que haja mais transparência, mais clareza sobre os critérios de planejamento e dos leilões de contratação, e que haja um equilíbrio entre a alocação de custos entre os consumidores cativos, que são os pequenos e médios que consomem 70% da energia, e os livres, consumidores grandes, que consomem 30% da energia. Esses têm rapinado e têm sido predadores dos investimentos feitos às custas das tarifas pagas pelos consumidores cativos.
Essa situação exige uma intervenção drástica. Infelizmente, mesmo nos governos que se diziam democráticos e populares, o lobby das empreiteiras e dos investidores acabou sendo atendido em detrimento do que até hoje é o custo Brasil. É uma vergonha!
A Agência Internacional de Energia publicou, na semana passada, o ranking das maiores tarifas mundiais, e o Brasil só fica atrás de dois países; é o terceiro país com a energia mais cara do mundo, sem necessidade alguma. Isso tudo não por ausência de recursos humanos, tecnológicos ou naturais, mas pela estrutura deficiente de planejamento, de execução dos planos, de contratação, construção, operação e manutenção do sistema elétrico brasileiro.
Na área de petróleo e gás, existem as permanentes ameaças do governo de querer entregar as reservas de pré-sal, que também poderiam representar uma forma de garantir a segurança energética interna. Além disso, tem muito gás natural disponível para uso, para substituir o petróleo e impactar menos as emissões, e gerar riqueza via exportação coordenada com a Organização dos Países Exportadores de Petróleo - OPEP, a Rússia, o Cazaquistão e o México — que estão fora da OPEP —, que operam em conjunto para combater o preço elevado do petróleo, controlando o ritmo de produção. Se houver concorrência predatória, como quer a China, o pré-sal será desvalorizado e o petróleo dos outros países também. Mesmo assim, o Brasil poderia fazer seus planos de investimento na produção de petróleo, como está fazendo agora, com um leilão criminoso da chamada “cessão onerosa”.
Eu vejo com tristeza absoluta, como hienas se refestelando com sobras de um banquete futuro, governadores e senadores indo a Brasília e pedindo uma fatia daqueles 100 bilhões de reais do bônus de assinatura, esperado para entregar de 10 a 15 milhões de barris já descobertos, cuja produção vai gerar um excedente mínimo da ordem de 400 a 500 bilhões de dólares — os 100 bilhões de reais que eles vão receber agora equivalem a 25 bilhões, portanto, menos de 5% do valor futuro produzido. Logo, estão entregando o controle da produção. Era mais fácil tomar um empréstimo de órgãos internacionais, produzir o petróleo com a Petrobras e pagar o empréstimo, do que entregar essa migalha aos estados e ao governo federal. Tudo isso faz parte do plano, da estratégia energética equivocada, da mistificação que é levada à população.
Eu vejo os grandes órgãos de imprensa fazendo festa como se esse leilão fosse uma grande vitória; mas estão entregando a troco de migalhas o que vai ser produzido nos próximos 25 ou 30 anos. Se tivéssemos 500 bilhões de dólares produzidos em 20 anos, são 25 bilhões de dólares por ano que poderiam ir para os cofres nacionais — por ano, não só no leilão inicial. Tudo isso faz parte desse plano energético, e o Brasil se posiciona de maneira absolutamente irresponsável no plano internacional com relação à manutenção do valor de um dos maiores feitos da história brasileira, ao completarmos 66 anos de Petrobras.
IHU On-Line — Então, o atual Plano Nacional de Energia se difere pouco dos planos anteriores?
Ildo Sauer — Na verdade, o que Guedes anuncia, por princípio, só vai piorar a situação. Ao propor vender a Eletrobras e transferir o controle dos rios e das usinas para os interesses privados, fica claro que a prioridade é maximizar o lucro direto, imediato, quando na verdade a água tem como primeira prioridade a garantia da vida humana e animal, o saneamento, a navegação, a irrigação, o turismo e a produção de energia.
É isto o que o Guedes está anunciando: está entregando o pré-sal sem compreender a sua dimensão. De maneira que o plano que o governo vem anunciando é um desastre total contra o interesse público. Isso tem que ser enfrentado e, infelizmente, a mobilização está sendo lenta. Mas houve um alento na semana passada: estive no Rio de Janeiro, junto com o ex-diretor da Petrobras, Guilherme Estrella, e fizemos um pronunciamento defendendo a necessidade de uma mobilização urgente para evitar um desastre maior.
IHU On-Line — Como o senhor está analisando a participação dos militares no governo Bolsonaro? O senhor tem informações sobre como eles pensam a questão energética para o país e em que fontes de energia eles apostam?
Ildo Sauer — Conversei sobre isto recentemente e falo de duas perspectivas: uma depois de ter sido funcionário civil da Marinha por quatro anos e por ter convivido com uma elite de conhecimento e capacidade tecnológica, que foram os oficiais, os quais, junto com os civis, projetaram e construíram um reator que foi montado e operado. A concepção naquele tempo era ter tecnologia própria, o que significava a independência brasileira, porque o Brasil deveria ter capacitação de defesa que garantisse sua soberania na costa, no ar e nas fronteiras secas em relação às ameaças que vinham do Norte.
Durante a ditadura, ninguém ousou valorizar a capacitação energética autônoma. Sem um sistema de combustíveis e energéticos relevantes, as próprias Forças Armadas em emergência não funcionarão, porque desse modo não elas têm avião, não têm navio, não têm tanque, não têm nada. A opção de desnacionalizar a Petrobras e a Embraer é defendida por uma fração pequena das Forças Armadas, que perderam a noção de que seu papel é relevante para garantir a soberania. E soberania não é apenas garantir as fronteiras, mas, sim, garantir a autonomia do povo brasileiro, garantir sua existência material, cultural e social em equilíbrio e progresso com uma sociedade cada vez mais próspera e justa. Essa é a noção de soberania desde a Revolução Industrial para cá.
Antes, quando só existia a agricultura, soberania significava garantir o território para produzir alimentos. Com a indústria, o papel preponderante passou a ser o controle tecnológico, o controle dos recursos energéticos. A partir daí, causa perplexidade a atitude dos poucos militares que ainda estão presos a esse projeto de governo atrasado, obscurantista, detrator dos direitos humanos e que representa um retrocesso civilizatório. Ainda há, dentro das Forças Armadas, uma maioria que tem uma concepção diferente de sociedade, de governo, de poder, de tecnologia e de controle nacional e soberano sobre os recursos; essa é a minha esperança.
Os diálogos que tenho feito com alguns militares em alguns campos, revelam uma profunda preocupação em relação ao atraso desses grupos que estão encastelados no poder agora, sob a liderança de um capitão que quase foi expulso por não se comportar com a dignidade exigida entre os militares. Eu entendo que, mesmo nas Forças Armadas, deverá aparecer uma manifestação, ainda que típica, dos procedimentos de obediência à Constituição, que é um poder constituído, afinal, ninguém é questionado por uma eleição. Ela foi, lamentavelmente, numericamente adjudicada a este candidato [Bolsonaro], muito embora grande parte dos votos tenha sido de protesto pela frustração em relação aos governos anteriores. Ou seja, ele [Bolsonaro] ocupou o vácuo de uma derrota, o que representou cerca de 30% dos votos, tanto que na proposta dele tem uma fração minoritária, na ordem de 10% a 15%, de adeptos radicais, atrasados e fundamentalistas. Mas esse é o processo democrático e cabe às Forças Armadas respeitá-lo, mas também para tudo há um limite.
O grande inimigo do povo brasileiro hoje é o Guedes, e o governo é composto pela linha ultraliberal dele e pelos militares que deixaram de ser nacionalistas e passaram a ser entreguistas — o que é um fato novo. Sempre houve, minoritariamente, militares entreguistas: o [Juarez] Távora não queria a Petrobras, mas mesmo durante a ditadura, de Castelo Branco a Figueiredo, o que predominou foi o nacional-desenvolvimentismo, muito embora às custas dos direitos humanos e da destruição da democracia. Mas, do ponto de vista do desenvolvimento econômico, a atitude de todos os governos militares não tem, minimamente, comparação com o que está se passando neste momento dentro do governo brasileiro. Hoje o governo tem três forças: os fundamentalistas — ala Olavo de Carvalho —, que são atrasados, obscurantistas, baseados na intolerância e na ausência do respeito à diversidade; os neoliberais, que querem prestar o serviço de desmantelamento das bases nacionais autônomas de produção e de existência da sociedade, subordinando-as ao oligopólio financeiro internacional; e, por outro lado, a pequena elite militar que está negando grande parte do que representava a dignidade e a concepção de sociedade, de soberania e do papel das Forças Armadas, que é fundamentalmente auxiliar na construção da autonomia e da garantia da soberania para produzir uma sociedade próspera, justa e autônoma, não subordinada a nenhum interesse estrangeiro. É o contrário do que estamos vendo. Espero que haja reação já.