24 Setembro 2019
Em um estudo comparativo entre a realidade das favelas do Rio e os territórios palestinos ocupados, a pesquisadora Gizele Martins reflete: “O que os moradores do conjunto de favelas da Maré viveram durante a Copa do Mundo de Futebol não é muito diferente do que vivem os palestinos. A militarização da vida é algo constante e assustador. Lá são os caças que atravessam diariamente a vida das pessoas, aqui, são os caveirões aéreos (helicópteros blindados e armados). O trágico é perceber que há uma naturalização mundial da violência que ambos os povos sofrem por parte dos poderes estatais e militares”.
A reportagem é de Alberto Azcárate, publicada por El Salto, 21-09-2019. A tradução é do Cepat.
De fato, existem várias relações e analogias que autorizam a comparação: o Batalhão de Operações Especiais Carioca treina em Israel. O Brasil é o quinto maior comprador mundial de armas israelenses. Os carros blindados que rodam nas grandes cidades brasileiras são da mesma procedência. O Rio de Janeiro, como a Palestina, ostenta seu “muro da vergonha”, construído em 2009 para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, perto do complexo de favelas da Maré. As autoridades o chamaram de "barreira acústica", argumentando que era para preservar seus habitantes do ruído dos carros - a favela existe desde 1940. Ninguém duvida que o muro foi levantado para evitar que os estrangeiros, que assistiram os eventos, soubessem que - para muitas pessoas - a cidade estava longe de ser ‘maravilhosa’.
Outros muros foram construídos em muitas outras favelas da cidade. Também os controles de entrada e saída dos habitantes pelos militares formam um cenário comparável. Além disso, anualmente, celebra-se uma grande feira de armas no Brasil, a LAAD Security, às vezes no Rio, às vezes em São Paulo, com a presença sistemática de fabricantes israelenses. Segundo especialistas, o Exército brasileiro desenvolveu um forte know how quando, em 2004, comandou a intervenção no Haiti. Ao retornar, o aplicou nas favelas cariocas da Maré, Rocinha, Jacarezinho, Alemão e, agora, no resto do país. Segundo testemunhos coletados na Maré, os militares comentam que “era mais fácil agir com os haitianos, porque aqui há muitos ativistas que denunciam”.
A estratégia de construir um Estado policial no Brasil de Bolsonaro passa pela criação de um imaginário de guerra que, ao mesmo tempo em que semeia o terror entre suas potencias vítimas, lança um apelo de garantia ao mundo empresarial e às camadas médias, num eterno campo fértil para o imperativo da segurança.
“Quando o assunto é a segurança, dizer que o Estado está quebrado instala terror na cabeça das pessoas. É uma narrativa produzida para conseguir mais recursos. Faz as pessoas acreditarem que é necessário investir em segurança, porque isso resolverá o problema da sociedade. Vendem o pânico e a sociedade acaba apoiando-os”, disse uma moradora da favela da Maré.
A crescente militarização tem várias frentes. Por um lado, tem diminuído as competências da Polícia Civil. Suas delegacias atualmente servem como intermediárias entre a sociedade civil e a Polícia Militar (PM), que é uma força de choque. Se conseguir seu objetivo, a PM estará legitimada para agir sem mediações.
Paralelamente, ocorreu uma legalização das milícias, uma vasta rede paramilitar - com a qual o clã Bolsonaro mantém uma íntima relação -, por meio da proposta de criação de uma PM voluntária. Ainda sem aprovação legislativa, a iniciativa de Wilson Witzel - governador do Estado do Rio de Janeiro - pretende criar um corpo remunerado, segundo escalas diferenciadas por idade e responsabilidades. Não parece fácil que consiga aprovação legislativa, ao menos por enquanto.
Dentro desse esquema, a PM tem cada vez mais recursos e equipamentos: helicópteros blindados, granadas, armas de guerra de última geração. Para tanto, as despesas com Segurança experimentaram um aumento exponencial. Em 2017, o Governo estadual destinou cerca de 2,6 bilhões de euros, praticamente o dobro do que dedicou à Saúde Pública.
Além disso, o Governo promove ativamente a posse e o uso de armas de fogo. De fato, a fábrica de armas local Taurus fez lobby pelo triunfo de Bolsonaro. O projeto de liberalização de armas de fogo foi freado no Congresso, mas o governo obteve autorização para algumas categorias do corpo de segurança.
Outra das medidas mais controversas permite que os policiais prestem serviços privados fora do horário de trabalho. Como se isso não bastasse, nos últimos tempos, é habitual a polícia desfilar seus batalhões pelas ruas sob o artifício de maratonas e jornadas com um perfil quase lúdico, com a evidente finalidade de mostrar seu poderio frente à sociedade. Desfilam enquanto cantam slogans de ordem e ameaças aos “bandidos”.
A militarização também é vista nas escolas. Tudo começou durante as legislaturas do PT, quando Sérgio Cabral - político do PMDB, hoje preso por corrupção - comandava o governo estadual. Foi normalizada a presença da polícia nas escolas das 44 favelas cariocas. Aproveitando as frequentes carências do corpo docente, os policiais cobriam esse vazio, fazendo música, lendo livros e revistas do Exército, como Recrutinha, que continha letras de hinos militares e desenhos de tanques e veículos de guerra para colorir. Ao mesmo tempo, inibiam alguns professores de perfil crítico a dar aulas de história.
O processo de militarização e violência policial aumentou exponencialmente, em 2018, com a intervenção militar no Rio de Janeiro, durante a presidência de Michel Temer, mas vêm de muito antes. Segundo dados do Instituto de Segurança Pública, entre março de 2016 e o mesmo mês de 2017, o número de homicídios decorrentes de ações policiais aumentou 96,7%, de 61 para 120 vítimas. E, entre janeiro e setembro de 2018, foram contabilizadas 813 pessoas assassinadas por policiais militares. Para todos os casos, a polícia apelou ao conhecido eufemismo "resistência à autoridade".
A figura de "resistência à autoridade" foi criada a partir do Ato Institucional-5 de dezembro de 1968, da ditadura militar. A imprensa a adotou para fazer suas versões oficiais e evitar a prisão em flagrante de policiais e militares autores de homicídios. Passou a ser a expressão que aludia às mortes resultantes de ações policiais.
Em 2019, o Instituto de Segurança Pública registrou 434 casos de “resistência à autoridade” – tal como se costumam denominar as mortes produzidas por forças policiais e militares – somente nos primeiros quatro meses do ano. São os piores indicadores dos últimos 20 anos, com o agravante de que com muita frequência as autópsias verificam que os disparos foram feitos a menos de um metro, na cabeça ou na nuca. Como se isso não bastasse, os militares agora estão tentando distorcer a legitimidade dos assassinatos e defendem que o conceito de "resistência à autoridade" seja substituído pelo conceito de “legítima defesa”.
Outro antecedente oriundo daquele período é a “gratificação faroeste”, um bônus monetário que premiava os policiais que mais matavam. Promoveu o surgimento de grupos de extermínio de sinistra fama que deixaram rastros de chacinas. Em 1993, a de Vigário Geral, com 21 assassinatos. No mesmo ano, a da Candelária, com o assassinato de oito crianças em situação de rua e a de Acari, com o desaparecimento de 19 pessoas.
São unidades especiais criadas em 2008 como alternativa ao fracasso de políticas anteriores de combate ao narcotráfico. Para alguns operadores do poder público e especialistas em segurança, foi uma maneira eficiente de combatê-lo, no entanto, para familiares e moradores das favelas, as UPPs representavam uma forma adicional de controle da população negra e pobre.
Nos últimos dez anos, 16.000 pessoas morreram vítimas de ações policiais nas favelas. Na Baixada Fluminense, segundo números da própria Polícia Civil, entre 2010 e 2015, ocorreram 2.046 atos de "resistência à autoridade".
Familiares e grupos do movimento Favelas do Rio de Janeiro ofereceram inúmeras histórias e depoimentos à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que visitou a cidade. Em coletiva de imprensa posterior, o organismo pediu para que o Estado brasileiro reveja a figura da “resistência à autoridade”, exortando-o a dar explicações sobre os massacres, desaparecimentos forçados e as numerosas violações cometidas pela Polícia e pelo Exército nas favelas e periferias cariocas.
Constituem uma rede paramilitar e parapolicial nascida nas últimas décadas e mantêm laços estreitos com as corporações do aparato estatal. São integradas por militares, policiais, bombeiros e oficiais, expulsos por crimes de diferentes naturezas, até assassinatos em alguns casos.
Em amplos setores da bolsa de pobreza que é a Baixada Fluminense, área periférica densamente povoada, fornecem eletricidade, gás, Internet, TV digital a um custo menor do que as redes oficiais. Possuem até ônibus com destinos de média e longa distância, inclusive um aplicativo próprio que substitui o Uber. Mandam cobradores mensalmente e quando algum proprietário se nega a pagar algum serviço, precisa assumir o risco de um cartaz na porta de sua casa que diz: “Está devendo”.
Dada a influência alcançada em algumas áreas, conseguem eleger representantes políticos que integram os corpos legislativos estaduais e municipais. Devido à sua vasta implementação, é possível dizer que operam em “territórios liberados”, uma noção própria da estratégia militar. Um comerciante nos revelou que as milícias estão começando a chegar aos bairros de camadas médias acomodadas. Não agem com a truculência que exibem em comunidades carentes, mas vendendo “segurança privada”, sob o argumento de evitar possíveis assaltos.
Controles policiais, buscas humilhantes, impedimentos arbitrários à passagem, circulação de veículos de guerra, presença de soldados armados, morte de pessoas por ações policiais são constantes na vida das populações que habitam as favelas e periferias pobres. Essa dinâmica brutal altera a vida cotidiana desses coletivos, interfere no comércio, na assistência dos moradores a seus locais de trabalho, no funcionamento das escolas e postos de saúde.
Em 2017, as escolas tiveram que suspender suas atividades 65 vezes, somente nos primeiros 22 dias letivos do ano. Ocorreram manifestações denunciando o fechamento de escolas e postos de saúde por causa dos tiroteios. Os alunos relatam que boa parte das operações policiais são realizadas durante o horário escolar, às vezes, na entrada ou saída da sala de aula. Bruna Silva é moradora da favela da Maré e mãe do estudante Marcus Vinícius, 14 anos, assassinado no ano passado, durante uma operação policial.
A mulher destacou a depressão e a angústia de muitos moradores, devido ao pânico com os disparos de helicóptero. “Nossas ruas estão cheias de marcas de balas. Meu filho só queria estudar, mas um tiro acabou com sua vida”. Segundo Olivia Morgado Françozo, psicóloga e psicanalista do Núcleo de Apoio Psicossocial às Pessoas Afetadas pela Violência Estatal, “o assassinato de um familiar pela violência estatal causa um grande impacto e altera a vida de todo o ambiente familiar. As mulheres acabam criando suas próprias redes de apoio, pois o Estado não garante atenção a essas mães e familiares”.
Os depoimentos dizem tudo: o Estado, em vez de fornecer soluções para ajudar a população mais precária, assume sua aniquilação social e física. Trata-se de uma cruzada contra os pobres em toda regra, sob o argumento perverso de acabar com o crime e o tráfico de drogas.
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Rio de Janeiro. A guerra contra os pobres: militarização e violência estatal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU