19 Setembro 2019
Nesta entrevista, a autora de “Sem logo” fala sobre possíveis soluções, de Greta Thunberg, das greves de nascimento e sobre onde ela encontra esperança.
A reportagem é de Natalie Hanman, publicada por The Guardian, 14-09-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Reprodução da capa do livro
Por que você está publicando o livro “On Fire: The (Burning) Case for a Green New Deal here” [Pegando fogo: a (ardente) defesa de um New Deal Verde, em tradução livre] agora?
Eu ainda sinto que o modo como falamos sobre as mudanças climáticas é muito compartimentado, muito isolado das outras crises que enfrentamos. Um tema realmente forte que atravessa o livro são os vínculos entre isso e a crise da supremacia branca crescente, as várias formas de nacionalismo, o fato de tantas pessoas serem expulsas das suas pátrias e a guerra que é travada pela nossa atenção. São crises intercruzadas e interconectadas, e, portanto, as soluções também precisam ser.
O livro reúne ensaios da última década. Você mudou de ideia sobre alguma coisa?
Quando olho para trás, eu acho que não dei uma ênfase suficiente para o desafio que as mudanças climáticas levantam para a esquerda. É mais óbvio o modo como a crise climática desafia uma visão mundial dominante de direita e o culto de um centrismo sério que nunca quer fazer nada grande, que está sempre procurando dividir o prejuízo. Mas esse também é um desafio para uma visão de mundo de esquerda, que está essencialmente interessada apenas em redistribuir os espólios do extrativismo [o processo de extrair recursos naturais da Terra] e não em considerar os limites do consumo infinito.
O que está impedindo a esquerda de fazer isso?
No contexto norte-americano, o maior tabu de todos é realmente admitir que haverá limites. Você vê isso no modo como a Fox News cobriu o New Deal Verde – “Eles estão perseguindo os hambúrgueres de vocês!” Isso corta o coração do sonho americano –, cada geração vai mais longe do que a última, sempre há uma nova fronteira para expandir, toda a ideia das nações coloniais e colonizadoras como a nossa.
Quando alguém aparece e diz que, de fato, existem limites, que temos algumas decisões difíceis a tomar, que precisamos descobrir como gerenciar o que resta, que temos que compartilhar de modo equitativo, é um verdadeiro ataque psíquico. E a resposta [à esquerda] tem sido evitar e dizer: “Não, não, não vamos tirar as suas coisas, haverá todos os tipos de benefícios”. E realmente haverá benefícios: teremos cidades mais habitáveis, teremos ar menos poluído, gastaremos menos tempo presos no trânsito, podemos projetar uma vida mais feliz e mais rica em muitas maneiras. Mas teremos que encolher do lado do consumo infinito e descartável.
Você se sente encorajada pelas conversas sobre o Green New Deal?
Eu sinto uma enorme empolgação e uma sensação de alívio por finalmente estarmos falando sobre soluções na escala das crises que enfrentamos. Por não estarmos falando de um pequeno imposto sobre o carbono ou de um esquema de “cap-and-trade” como uma bala de prata. Estamos falando de transformar a nossa economia. De qualquer maneira, esse sistema está falhando para com a maioria das pessoas, e é por isso que estamos neste período de profunda desestabilização política – que está nos dando os Trumps e os Brexits e todos esses líderes “machões” –, então por que não descobrimos como mudar tudo de baixo para cima e fazemos isso de um modo que resolva todas essas outras crises ao mesmo tempo?
Há todas as chances de que erraremos o alvo, mas cada fração de grau de aquecimento que sejamos capazes de adiar é uma vitória, e todas as políticas que sejamos capazes de vencer e que tornam as nossas sociedades mais humanas significam que resistiremos mais aos inevitáveis e vindouros choques e tempestades sem escorregar para a barbárie. Porque o que realmente me aterroriza é o que estamos vendo nas nossas fronteiras na Europa, América do Norte e Austrália – eu não acho que seja coincidência que os Estados coloniais e colonizadores e os países que são os motores desse colonialismo estejam na vanguarda disso. Estamos vendo o início da era da barbárie climática. Vimos isso em Christchurch, vimos isso em El Paso, onde você tem esse casamento da violência supremacista branca com o cruel racismo anti-imigrantes.
Essa é uma das seções mais assustadoras do seu livro: eu acho que esse é um link que muitas pessoas não fizeram.
Esse padrão está claro há um bom tempo. A supremacia branca emergiu não apenas porque as pessoas tinham vontade de pensar em ideias para matar muitas pessoas, mas porque era útil proteger ações bárbaras, mas altamente lucrativas. A era do racismo científico começa junto com o comércio transatlântico de escravos, é uma justificativa para essa brutalidade. Se vamos responder às mudanças climáticas fortalecendo as nossas fronteiras, então é claro que as teorias que justificariam isso, que criam essas hierarquias da humanidade, voltarão à tona. Há sinais disso há anos, mas está ficando cada vez mais difícil negar, porque você tem assassinos que estão gritando dos telhados.
Uma crítica que você ouve sobre o movimento ambiental é que ele é dominado por pessoas brancas. Como você lida com isso?
Quando você tem um movimento que é predominantemente representativo do setor mais privilegiado da sociedade, então a abordagem será muito mais temerosa da mudança, porque as pessoas que têm muito a perder tendem a ter mais medo de mudar, enquanto as pessoas que têm um muito a ganhar tenderá a lutar mais por isso. Esse é o grande benefício de ter uma abordagem às mudanças climáticas que as relaciona com as chamadas questões “básicas”: como conseguiremos empregos mais bem remunerados, moradia a preços acessíveis, um modo de as pessoas cuidarem de suas famílias?
Eu tive muitas conversas com ambientalistas ao longo dos anos, nas quais eles parecem realmente acreditar que vincular o combate às mudanças climáticas com o combate à pobreza ou com a luta pela justiça racial tornará a luta mais difícil. Temos que sair desta ideia: “A minha crise é maior do que a sua: primeiro salvamos o planeta e depois lutamos contra a pobreza, o racismo e a violência contra as mulheres”. Isso não funciona. Isso afasta as pessoas que lutariam mais por mudanças.
Esse debate mudou bastante nos EUA por causa da liderança do movimento pela justiça climática e porque são as congressistas negras que estão defendendo o New Deal Verde. Alexandria Ocasio-Cortez, Ilhan Omar, Ayanna Pressley e Rashida Tlaib vêm de comunidades que receberam um tratamento injusto nos anos de neoliberalismo e além, e estão determinadas a representar, a realmente representar os interesses dessas comunidades. Elas não têm medo das mudanças profundas, porque suas comunidades precisam desesperadamente disso.
No livro, você escreve: “A verdade nua e crua é que a resposta para a pergunta: ‘O que eu, como indivíduo, posso fazer para impedir as mudanças climáticas?’ é nada”. Você ainda acredita nisso?
Em termos de carbono, as decisões individuais que tomamos não vão acrescentar nada comparável ao tipo de escala de mudanças de que precisamos. E eu acredito que o fato de que, para muitas pessoas, é muito mais confortável falar sobre o nosso próprio consumo pessoal, do que falar sobre mudanças sistêmicas, é um produto do neoliberalismo, do fato de que nós fomos treinados a nos ver como os consumidores em primeiro lugar. Para mim, esse é o benefício de fazer essas analogias históricas, como o New Deal ou o Plano Marshall – isso nos lembra de uma época em que fomos capazes de pensar em mudanças nessa escala. Porque temos sido treinados a pensar muito pequeno. É incrivelmente significativo que Greta Thunberg tenha transformado a sua vida em uma emergência viva.
Sim, ela zarpou para a cúpula climática da ONU em Nova York em um iate com carbono zero...
Exatamente. Mas isso não tem a ver com aquilo que Greta está fazendo como indivíduo. Trata-se daquilo que Greta está transmitindo nas escolhas que ela faz como ativista, e eu absolutamente respeito isso. Eu acho isso magnífico. Ela está usando o poder que ela tem para transmitir que esta é uma emergência e tentando inspirar os políticos a tratá-la como uma emergência. Eu não acho que alguém esteja isento de examinar suas próprias decisões e comportamentos, mas eu acho que é possível enfatizar demais as escolhas individuais. Eu fiz uma escolha – e isso tem sido verdade desde que escrevi “Sem logo” e comecei a receber essas perguntas como: “O que eu devo comprar, onde devo comprar, quais são as roupas éticas?”. A minha resposta continua sendo que eu não sou uma consultora de estilo de vida, não sou um guru de compras de ninguém e eu tomo essas decisões na minha própria vida, mas não tenho a ilusão de que essas decisões farão a diferença.
Algumas pessoas estão optando por fazer greves de nascimento. O que você acha disso?
Eu fico feliz que essas discussões estejam chegando ao domínio público, em vez de serem questões furtivas das quais temos medo de falar. Isso tem isolado muito as pessoas. Certamente foi assim para mim. Uma das razões pelas quais eu esperei o máximo que pude para tentar engravidar, e eu dizia isso ao meu parceiro o tempo todo, era: “O quê? Você quer ter um guerreiro ao estilo Mad Max que brigue com seus amigos por comida e água?”. Foi só quando eu comecei a fazer parte do movimento pela justiça climática e pude ver um caminho a seguir que eu pude imaginar ter um filho. Mas eu nunca diria a ninguém como responder a essas perguntas muito íntimas.
Como uma feminista que conhece a história brutal da esterilização forçada e os modos pelos quais os corpos das mulheres se tornam zonas de batalha quando os formuladores de políticas decidem que vão tentar controlar a população, eu acho que a ideia de que existem soluções reguladoras quando se trata de ter ou não ter filhos é catastroficamente a-histórico. Precisamos lutar juntos contra a nossa tristeza climática e contra os nossos medos climáticos juntos, seja qual for a decisão que decidamos tomar, mas a discussão que precisamos fazer é sobre como construímos um mundo para que essas crianças possam levar prósperas vidas carbono zero?
Durante o verão [do Hemisfério Norte], você incentivou as pessoas a lerem o romance “The Overstory”, de Richard Powers. Por quê?
Ele foi incrivelmente importante para mim, e estou feliz que tantas pessoas tenham me escrito desde então. Powers escreve sobre as árvores: que as árvores vivem em comunidade e estão em comunicação, e planejam e reagem juntas, e estamos completamente errados no modo como as conceituamos. É a mesma conversa que estamos tendo sobre se vamos resolver isso como indivíduos ou se vamos salvar o organismo coletivo. Também é raro, na boa ficção, valorizar o ativismo, tratá-lo com um verdadeiro respeito, com seus fracassos e tudo mais, reconhecer o heroísmo das pessoas que põem seus corpos em risco. Eu acho que Powers fez isso de um modo realmente extraordinário.
Qual é a sua opinião sobre aquilo que o Extinction Rebellion [movimento ambientalista internacional de resistência não violenta] já alcançou?
Uma coisa que eles fizeram muito bem é nos libertar desse modelo clássico de campanha em que estamos há muito tempo, em que você conta a alguém algo assustador, pede que ele clique em algo para fazer algo a respeito, pula toda a fase em que precisamos nos lamentar juntos, e sentir juntos, e processar aquilo que acabamos de ver. Porque o que eu ouço muito das pessoas é: “Tudo bem, talvez aquelas pessoas dos anos 1930 ou 1940 podiam se organizar bairro a bairro, ou de local de trabalho a local de trabalho, mas nós não podemos. Nós acreditamos que nos rebaixamos tanto como espécie que somos incapazes de fazer isso. A única coisa que vai mudar essa crença é ficar cara a cara, em comunidade, tendo experiências longe das telas, um com o outro nas ruas e na natureza, ganhando algumas coisas e sentindo esse poder.
Você fala sobre resistência no livro. Como você segue em frente? Você se sente esperançosa?
Eu tenho sentimentos complicados sobre a questão da esperança. Não passa um dia sem que eu não tenha um momento de pânico total, de terror brutal, de completa convicção de que estamos condenados, e então eu me empurro para fora disso. Eu me sinto renovada com essa nova geração que é tão determinada, tão forte. Eu me sinto inspirada pela disposição de participar da política eleitoral, porque, na minha geração, quando tínhamos 20 ou 30 anos, havia tanta suspeita sobre sujarmos as nossas mãos com a política eleitoral que perdemos muitas oportunidades.
O que me dá a maior esperança agora é que finalmente temos a visão daquilo que queremos, ou pelo menos o primeiro esboço disso. É a primeira vez que isso acontece na minha vida. E eu também decidi ter filhos. Eu tenho um filho de sete anos que é completamente obcecado e apaixonado pelo mundo natural. Quando eu penso nele, depois de passarmos um verão inteiro conversando sobre o papel do salmão na alimentação das florestas onde ele nasceu, na Colúmbia Britânica, e sobre como elas estão ligadas à saúde das árvores, do solo, dos ursos, das orcas e de todo esse magnífico ecossistema, e eu penso em como seria ter que dizer a ele que não há mais salmões, isso me mata. Então, isso me motiva. E me destrói.
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''Estamos vendo o início da era da barbárie climática.'' Entrevista com Naomi Klein - Instituto Humanitas Unisinos - IHU