18 Setembro 2019
Considerando que a obediência à primeira edição dos Dez Mandamentos tem sido aleatória, em particular no que se refere a Não Matarás e Não Roubarás, isso sem falar do Não Cobiçarás a Mulher do Próximo – desta vez, além de atualizar os conteúdos, houve a prudência de acrescentar a cada Mandamento uma nota explicativa, destinada às elites impenitentes.
O texto é de Ladislau Dowbor, economista, doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor da PUC-SP e da Umesp.
Resgatar a dimensão pública do Estado. Como podemos ter mecanismos reguladores que funcionem se é o dinheiro das corporações a regular que elege os reguladores? Se as agências que avaliam risco são pagas por quem cria o risco? Uma das propostas mais evidentes da última crise financeira, e que encontramos mencionada em quase todo o espectro político, é a necessidade de se reduzir a capacidade das corporações privadas ditarem as regras do jogo. A quantidade de leis aprovadas no sentido de reduzir impostos sobre transações financeiras, de reduzir a regulação do banco central, de autorizar os bancos a fazerem toda e qualquer operação, somado com o poder dos lobbies financeiros, tornam evidente a necessidade de se resgatar o poder regulador do estado, e para isto os políticos devem ser eleitos por pessoas de verdade, e não por pessoas jurídicas, que constituem ficções em termos de direitos humanos. Enquanto não tivermos financiamento público das campanhas, políticos que representem os interesses dos cidadãos, prevalecerão os interesses econômicos de curto prazo e a corrupção. Veja regulamentação em O Estado Empreendedor, de Mariana Mazzucatto (Portfolio-Penguin, 2014).
As contas têm de refletir os objetivos que visamos. O PIB indica a intensidade do uso do aparelho produtivo, mas não nos indica a utilidade do que se produz, para quem, e com que custos para o estoque de bens naturais de que o planeta dispõe. Contamos como aumento do PIB os desastres ambientais, o aumento de doenças, o cerceamento de acesso a bens livres, o comércio de drogas. O IDH já foi um imenso avanço, mas temos de evoluir para uma contabilidade integrada dos resultados efetivos dos nossos esforços, e particularmente da alocação de recursos financeiros, em função de um desenvolvimento que não seja apenas economicamente viável, mas também socialmente justo e ambientalmente sustentável. As metodologias existem, aplicadas parcialmente em diversos países, setores ou pesquisas. A adoção em todos as cidades de indicadores locais de qualidade de vida tornou-se hoje indispensável para que seja medido o que efetivamente interessa: o desenvolvimento sustentável, o resultado em termos de qualidade de vida da população. Muito mais do que o output, trata-se de medir o outcome. A recente Economia Donut, de Kate Raworth (Chelsea Green Publishing, 2017) ajuda muito.
Algumas coisas não podem faltar a ninguém. A pobreza crítica é o drama maior, tanto pelo sofrimento que causa em si, como pela articulação com os dramas ambientais, o não acesso ao conhecimento, a deformação do perfil de produção que se desinteressa das necessidades dos que não têm capacidade aquisitiva. Os custos de se tirar da miséria e da pobreza a massa de pessoas que vivem situações dramáticas são ridículos, frente aos custos adicionais que a desigualdade gera. E são custos ridículos quando se considera os trilhões transferidos para grupos econômicos financeiros no quadro da última crise financeira. O benefício ético é imenso, pois é inaceitável morrerem de causas ridículas milhões de crianças por ano. O benefício de curto e médio prazo é grande, na medida em que os recursos direcionados à base da pirâmide dinamizam imediatamente a pequena e média empresa, agindo como processo anticíclico, como se tem constatado nas políticas sociais de muitos países. No mais longo prazo, será uma geração de crianças que terão sido alimentadas decentemente, o que se transforma em melhor aproveitamento escolar e maior produtividade na vida adulta. A teoria tão popular de que o pobre se acomoda se receber ajuda, é simplesmente desmentida pelos fatos: sair da miséria estimula, e o dinheiro é simplesmente mais útil onde é mais necessário. O dinheiro na mão do pobre vira consumo, produção e emprego. Na mão do rico vira dívida pública e conta no Panamá. Veja País Estagnado: um retrato das desigualdades brasileiras, Oxfam.
Universalizar a garantia do emprego é viável. Toda pessoa que queira ganhar o pão da sua família deve poder ter acesso ao trabalho. Num planeta onde há um mundo de coisas a fazer, inclusive para resgatar o meio ambiente, é absurdo o número de pessoas sem acesso a formas organizadas de produzir e gerar renda. Temos os recursos e os conhecimentos técnicos e organizacionais para assegurar, em cada vila ou cidade, acesso a um trabalho decente e socialmente útil. As experiências de Maharashtra na Índia demonstraram a sua viabilidade, como o mostram as numerosas experiências brasileiras, sem falar no New Deal da crise dos anos 1930. São opções onde todos ganham: o município melhora o saneamento básico, a moradia, a manutenção urbana, a policultura alimentar. As famílias passam a poder viver decentemente; e a sociedade passa a ser melhor estruturada e menos tensionada. Os gastos com seguro-desemprego se reduzem. No caso indiano, cada vila ou cidade é obrigada a ter um cadastro de iniciativas intensivas em mão de obra. Dinheiro emprestado ou criado desta forma representa investimento, melhoria de qualidade de vida, e dá excelente retorno. E argumento fundamental: assegura que todos tenham o seu lugar para participar na construção de um desenvolvimento sustentável. Na organização econômica, além do resultado produtivo, é essencial pensar no processo estruturador da sociedade, através da inclusão produtiva. A dimensão de geração de emprego de todas as iniciativas econômicas tem de se tornar critério central. Veja o relatório da OIT, Trabalhar para um futuro mais prometedor.
Podemos trabalhar menos, e trabalharemos todos, com tempo para fazermos mais coisas interessantes na vida. A sub-utilização da força de trabalho é um problema planetário, ainda que desigual na sua gravidade. No Brasil, o setor informal situa-se na ordem de 40% da PEA. Uma imensa parte da nação “se vira” para sobreviver. Somando com 13 milhões de desempregados, são 50 milhões de pessoas. No lado dos empregos de ponta, as pessoas não vivem por excesso de carga de trabalho. Não se trata aqui de uma exigência de luxo: são incontáveis os suicídios nas empresas onde a corrida pela eficiência se tornou simplesmente desumana. O stress profissional está se tornando uma doença planetária, e a questão da qualidade de vida no trabalho passa a ocupar um espaço central. A redistribuição social da carga de trabalho torna-se hoje uma necessidade. As resistências são compreensíveis, mas a realidade é que com os avanços da tecnologia os processos produtivos tornam-se cada vez menos intensivos em mão de obra, e reduzir a jornada é uma questão de tempo. A redução da jornada não reduzirá o bem-estar ou a riqueza da população, e sim a deslocará para novos setores mais centrados no uso do tempo livre, com mais atividades de cultura e lazer. Não precisamos necessariamente de mais carros e de mais bonecas Barbie, precisamos sim de mais qualidade de vida. Veja o livro O pão nosso de cada dia: processos produtivos no Brasil, [Nota de IHU On-Line: obra do autor] (Fundação Perseu Abramo, Partido dos Trabalhadores, 2015).
A mudança de comportamento, de estilo de vida, não constitui um sacrifício, e sim um resgate do bom senso. Neste planeta de 7,8 bilhões de habitantes, com um aumento anual da ordem de 80 milhões, toda política de bom senso envolve também uma mudança de comportamento individual e da cultura do consumo. O respeito às normas ambientais, a moderação do consumo, o cuidado no endividamento, o uso inteligente dos meios de transporte, a generalização da reciclagem, a redução do desperdício – há um conjunto de formas de organização do nosso cotidiano que passa por uma mudança de valores e de atitudes frente aos desafios econômicos, sociais e ambientais. Hoje 95% dos domicílios no Brasil têm televisão, e o uso informativo inteligente deste e de outros meios de comunicação tornou-se fundamental. Frente aos esforços necessários para reequilibrar o planeta, não basta reduzir o martelar publicitário que apela para o consumismo desenfreado, é preciso generalizar as dimensões informativas dos meios de comunicação. A mídia científica praticamente desapareceu, os noticiários navegam no atrativo da criminalidade, quando precisamos vitalmente de uma população informada sobre os desafios reais que enfrentamos. Grande parte da mudança do comportamento individual depende de ações públicas: as pessoas não deixarão o carro em casa (ou deixarão de tê-lo) se não houver melhor transporte público, não farão reciclagem se não houver sistemas adequados de coleta. Precisamos de uma política pública de mudança do comportamento individual. Veja A terra inabitável, de David Wallace-Wells (Tim Duggan Books, 2019).
Racionalizar os sistemas de intermediação financeira é viável. A alocação final dos recursos financeiros deixou de ser organizada em função dos usos finais de estímulo e orientação de atividades econômicas e sociais, para obedecer às finalidades dos próprios intermediários financeiros. A atividade de crédito é sempre uma atividade pública, seja no quadro das instituições públicas, seja no quadro dos bancos privados que trabalham com dinheiro do público, e que para tanto precisam de uma carta-patente que os autoriza a ganhar dinheiro com dinheiro dos outros. A crise financeira de 2008 no plano internacional, e a crise brasileira a partir de 2014 demonstraram com clareza o caos que gera a ausência de mecanismos confiáveis de regulação no setor. O dinheiro não é mais produtivo onde rende mais para o intermediário: devemos buscar a produtividade sistêmica de um recurso que é público. A intermediação financeira é um meio, não é um fim. A intermediação financeira com juros extorsivos apenas gera uma pirâmide especulativa e insegurança, além de desorganizar os mercados e as políticas econômicas. Leia A era do capital improdutivo [Nota de IHU On-Line: obra do autor] (São Paulo: Editoras Outras Palavras e Autonomia Literária, 2017).
A filosofia do imposto, de quem se cobra, e a quem se aloca, precisa ser revista. Uma política tributária equilibrada na cobrança, e reorientada na aplicação dos recursos, constitui um dos instrumentos fundamentais de que dispomos, sobretudo porque pode ser promovida por mecanismos democráticos. O eixo central não está na redução dos impostos, e sim na cobrança socialmente mais justa e na alocação mais produtiva em termos sociais e ambientais. A taxação das transações especulativas (nacionais ou internacionais) deverá gerar fundos para financiar uma série de políticas essenciais para o reequilíbrio social e ambiental. O imposto sobre grandes fortunas é hoje essencial para reduzir o poder político das dinastias econômicas (1% das famílias do planeta detém mais riqueza do que os 99% seguintes). O imposto sobre a herança é fundamental para dar chances a partilhas mais equilibradas para as sucessivas gerações. É importante lembrar que as grandes fortunas do planeta em geral estão vinculadas não a um acréscimo de capacidades produtivas, e sim à aquisição maior de empresas por um só grupo, gerando uma pirâmide cada vez mais instável e menos governável de propriedades cruzadas, impérios onde a grande luta é pelo controle do poder financeiro, político e midiático, e a apropriação de recursos naturais. O sistema tributário tem de ser reformulado no sentido anticíclico, privilegiando atividades produtivas e penalizando as especulativas; no sentido do maior equilíbrio social ao ser fortemente progressivo; e no sentido de proteção ambiental ao taxar emissões tóxicas ou geradoras de mudança climática, bem como o uso de recursos naturais não renováveis. O poder redistributivo do Estado é grande, tanto pelas políticas que executa – por exemplo as políticas de saúde, lazer, saneamento e outras infra-estruturas sociais que melhoram o nível de consumo coletivo – como pelas que pode fomentar, como opções energéticas, inclusão digital e assim por diante. A democratização aqui é fundamental. A apropriação dos mecanismos decisórios sobre a alocação de recursos públicos está no centro dos processos de corrupção, envolvendo as grandes bancadas corporativas, por sua vez ancoradas no financiamento privado das campanhas. Leia Democracia Econômica, [Nota de IHU On-Line: obra do autor] (São Paulo: Vozes, 2008).
Travar o acesso ao conhecimento e às tecnologias sustentáveis não faz o mínimo sentido. A participação efetiva das populações nos processos de desenvolvimento sustentável envolve um denso sistema de acesso público e gratuito à informação necessária. A conectividade planetária que as novas tecnologias permitem constitui uma ampla via de acesso direto. O custo-benefício da inclusão digital generalizada é simplesmente imbatível, pois é um programa que desonera as instâncias administrativas superiores, na medida em que as comunidades com acesso à informação se tornam sujeitos do seu próprio desenvolvimento. A rapidez da apropriação deste tipo de tecnologia até nas regiões mais pobres se constata na propagação do celular e das plataformas colaborativas. O impacto produtivo é imenso para os pequenos produtores que passam a ter acesso direto a diversos mercados tanto de insumos como de venda, escapando aos diversos sistemas de atravessadores comerciais e financeiros. A inclusão digital generalizada permite destravar um conjunto de processos de mudança que hoje se tornam indispensáveis. A criação de redes de núcleos de fomento tecnológico online, com ampla capilaridade, pode se inspirar da experiência da Índia, onde foram criados núcleos em praticamente todas as vilas do país. É particularmente importante a flexibilização de patentes no sentido de assegurar ao conjunto da população mundial o acesso às informações indispensáveis para as mudanças tecnológicas exigidas por um desenvolvimento sustentável. Leia A sociedade de custo marginal zero, de Jeremy Rifkin (M.Books, 2015).
Democratizar a comunicação tornou-se essencial. A comunicação é uma das áreas que mais explodiu em termos de peso relativo nas transformações da sociedade. Estamos em permanência cercados de mensagens. As nossas crianças passam horas submetidas à publicidade ostensiva ou disfarçada. A indústria da comunicação, com sua fantástica concentração internacional e nacional – e a sua crescente interação entre os dois níveis – gerou uma máquina de fabricar estilos de vida, um consumismo obsessivo que reforça o elitismo, as desigualdades, o desperdício de recursos como símbolo de sucesso. O espectro eletromagnético em que estas mensagens navegam é público, e o acesso a uma informação inteligente e gratuita para todos é simplesmente viável. Expandindo gradualmente as inúmeras formas alternativas de mídia que surgem por toda parte, há como introduzir uma cultura nova, outras visões de mundo, cultura diversificada e não pasteurizada, pluralismo em vez de fundamentalismos religiosos ou comerciais. Leia IHU, Outras Palavras, Carta Maior, Diplô, GGN, Diálogos do Sul, Brasil 247, Guardian, Intercept e outras tantas fontes confiáveis de informação.
O copyright da presente edição revista e ampliada dos Dez Mandamentos é aberto, na linha do Creative Commons. Sendo o Alto Secretariado hoje bem equipado, dispondo das mídias sociais mais avançadas, os que por acaso tenham dificuldades técnicas na aplicação da presente versão dos Mandamentos, poderão recorrer a textos de Exegese no blog dowbor.org. Ignacy Sachs, Carlos Lopes e Ladislau Dowbor expressaram aqui transcrições pessoais, e as pessoas que encontrem dificuldades políticas na aplicação dos presentes Mandamentos deverão dirigir as suas reclamações às Instâncias Superiores. Sim, as leituras aqui recomendadas mencionam apenas os títulos, sem os autores. Na era da internet, procure, e acharás.
PS: Respeitarás a mulher, e não apenas a do próximo.
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Os Dez Mandamentos: versão atualizada para elites (Edição apócrifa revista e atualizada para o Terceiro Milênio) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU